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A perda de identidade do juiz.

A perda de identidade do juizGilberto de Mello Kujawski

A perda de identidade do juiz.

Nalini beija mão

Gilberto de Mello Kujawski

Todos nós estamos cansados de falar e de ouvir falar na crise do Judiciário. Clama-se pela reforma do Judiciário, invocando defeitos estruturais e organizacionais, causas processuais e conjunturais, políticas e culturais, etc. O que se esquece, o que se omite e não chama a atenção de ninguém é o fator humano, a capacidade do juiz como operador do direito.

O livro de José Renato Nalini A Rebelião da Toga (Millennium, 2006), com prefácio do ministro Enrique Ricardo Lewandowski, representa um marco no enfoque da crise do Judiciário, trazendo para o primeiro plano o fator decisivo daquela crise, que não reside nem na desatualização das leis, nem na precariedade da máquina judicial, e sim nesse fator humano, demasiado humano, que por constrangedor se cala - a perda de identidade do juiz.

José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professor de Ética Geral e Profissional na Faculdade de Direito da Faap e de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito UniAnchieta, além de colaborador eventual desta página do Estado, não é um profissional qualquer. Por onde ele passa, deixa a marca de sua personalidade atuante, sistematizadora e generosa. Assim foi na presidência do Tribunal de Alçada Criminal. Reorganizou administrativamente aquele órgão judicial, informatizou-o totalmente e fez crescer, como nunca antes, sua eficiência. Fez do Tribunal da Alçada paulista uma instituição modelar para todos os tribunais do País. Assim foi na sua forte contribuição como ambientalista. Depois de seu livro Ética Ambiental (Millennium, 2001) o tratamento da questão ambiental não foi mais o mesmo.

Agora, com a edição deste livro lúcido, corajoso, elucidativo sob vários aspectos, Nalini inaugura abordagem inédita da crise da Justiça, com a proposta de centrar sobre o juiz o elenco das transformações do Judiciário, superando, assim, os limites e a abstração da reforma estritamente normativa. A figura do juiz será o eixo sobre o qual vai girar a reforma do sistema judiciário, sem desconsiderar a legislação e a estrutura da máquina judicante. “Desde logo se afaste a idéia de subversão.” Explicando melhor: “Rebelião no melhor sentido que se pudesse atribuir a tal verbete. Reação à inércia. Repúdio ao imobilismo. Recusa a uma função subalterna a inúmeros fatores externos e impedientes da realização de uma justiça humana mais aproximada ao ideal nutrido pelo homem comum.”

Não vamos esperar dos legisladores nem do governo a iniciativa para sanear e pôr de pé a Justiça em nosso país. O pensamento de Nalini é apelar, diretamente, para os operadores do direito, os juízes, convidando-os a dar o primeiro passo para resgatar a íntima vinculação do direito com a ética e devolver o magistrado à moldura para ele desenhada na própria Constituição. Os juízes, como responsáveis diretos pela aplicação da lei, são os destinatários primeiros do apelo do desembargador Nalini, apelo que é também um incentivo à mobilização da classe para que tome em suas mãos o organismo depauperado da instituição e tente reanimá-lo, reassumindo com vigor o papel demiúrgico reservado pela nossa cultura ao homem que dá voz e movimento à letra inerte dos códigos. “Em lugar das iniciativas de cúpula, o protagonismo do profissional da base”, propõe nosso autor.

O esvaziamento da figura do juiz ocorre num quadro de progressiva degeneração dos representantes do Executivo e do Legislativo. Presidente da República, ministros, governadores, parlamentares não mais respondem aos fins para os quais foram eleitos. Sua maior preocupação é com seu projeto pessoal de poder, e não com o projeto do País ou da Federação. Neste clima em que os detentores do poder traem seu compromisso institucional com o povo, dificilmente o juiz poderia manter a integridade de suas funções originais. Esclarece Nalini: “A perversão da lei faz com que ela só exprima interesses. O juiz passou a encarnar o papel de garantidor desses interesses e vê-se questionado em sua função. Contamina-se do desprestígio que debilitou o moderno produto dos Parlamentos. Já foi o tempo em que o Judiciário estava acima de todas as críticas, dúvidas ou suspeitas e de que o respeito era o primeiro sentimento a se devotar à Justiça.”

A crise de identidade do juiz trouxe a perda de sua auto-estima. “O Judiciário é um Poder”, clamava outro dia, com certa arrogância, dedo em riste, um ministro do Supremo. Sim, meu caro magistrado, mas o juiz já não encarna nenhum poder. Poder significa capacidade legítima de decisão, e o juiz brasileiro, transformado em simples sombra burocrática, já não tem nem a coragem, nem o discernimento, nem a independência para tomar decisões legítimas.

A questão é saber se esse anêmico material humano terá condições de responder ao desafio lançado pelo autor de A Rebelião da Toga. Este pensa é no futuro, nas novas gerações que poderão ser mobilizadas para operar a reforma do Judiciário sem esperar pela política. Um passo inicial - segundo Nalini - seria inspirar-se nas estratégias de trabalho da iniciativa privada, acabando com o formalismo e o arcaísmo da Justiça. Outro passo essencial seria a preparação do candidato antes do ingresso na magistratura e, depois, reciclagens constantes e aperfeiçoamento contínuo.

A perda de identidade do juiz o aprisiona à condição de simples “autoridade judicial”, e nada mais. Não basta. Para o juiz recuperar na íntegra seu legítimo papel constitucional e exercer com plenitude sua missão tem de se investir das funções de agente do poder e ainda agente da pacificação social. Somente ao se integrar na tríplice responsabilidade de autoridade judicial, agente do poder e agente da pacificação, o juiz vai retomar sua plena dignidade.

Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia
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Estadão, 15.03.07.