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O PGR e o Controle Jurisdicional de Constitucionalidade das leis

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“Falar sobre a linguagem talvez seja ainda pior que escrever sobre o silêncio”, Martin Heidegger.

SUMÁRIO: regramento constitucional do estatuto do procurador-geral da República. A inicial das ações de controle. A emissão de parecer pelo PGR. O PGR como primeiro intérprete da lei. Acolhimento da interpretação do PGR pelo STF.

A Constituição Brasileira de 1988 (CF/88), a mais democrática das nossas Leis Magnas, no que tange ao controle jurisdicional da constitucionalidade das leis e atos normativos, pôs fim ao monopólio da titularidade da ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) que até então vigeu, ou seja, a autoria deixou de ser de exclusividade do procurador-geral da República (PGR).

 

O fim desse monopólio, certamente, como o fim de qualquer monopólio, veio em benefício da cidadania. O PGR encontrava, como ainda de certo modo encontra, uma série de limitações de ordem política para exercer o encargo que até então lhe era exclusivo, sendo vários os motivos que o impediam de exercer plenamente a sua função. Há de se ressaltar, em especial, que a sua liberdade de ação era tolhida pelo fato de aquela autoridade, até a CF/88, exercer um cargo de confiança do presidente da República. Simbólica e praticamente, essa condição, de certo modo, manietava o PGR, como a qualquer outro servidor na mesma situação.

A CF/88 mudou este quadro. Mesmo sendo o PGR nomeado, ainda hoje, pelo presidente da República, seu nome tem que ser aprovado previamente pelo Senado Federal e é obrigatória a sua escolha dentre membros do Ministério Público Federal. Por sua vez, a sua destituição depende também da aprovação do Senado Federal. Então, hoje, ele é, sem dúvida, mais livre para exercer essa relevante tarefa. Mas, como se disse, a Constituição ampliou o rol dos legitimados ativos à propositura de ADIn (bem como da ADIn por omissão e da Ação Declaratória de Constitucionalidade [ADC], esta criada em 1993), e, embora tenha sido um avanço da atual Constituição, devemos dizer que ela de certo modo não atingiu ainda o grau de avanço da Constituição imperial de 1824, que previa uma verdadeira ação popular constitucional para o controle de constitucionalidade, em seu art. 179, inciso XXX . De qualquer modo é um avanço em relação às outras Constituições que figuram entre estes dois extremos: a primeira e a última Constituição Brasileira.

O papel do PGR no controle jurisdicional de constitucionalidade das leis é importantíssimo. É o que se depreende do art. 127 da Constituição, quando dá as atribuições do Ministério Público, ao qual incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, além de exercer atribuição essencial à função jurisdicional do Estado. Foi posto nas mãos do PGR, que é o chefe do Ministério Público da União, o excelso instrumento por meio do qual irá exercer plenamente essas funções. Trata-se, justamente, da possibilidade de ajuizar ADIns, meio por intermédio do qual exerce o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, bem como de ajuizar ADCs. Quando falamos, anteriormente, que o PGR, de certo modo, tinha sua atividade manietada por exercer um cargo de confiança do presidente da República, dissemos isso pelo fato de que a maioria das leis produzidas nos Estados após a Segunda Guerra Mundial – e até antes mesmo já se vinha observando esse fenômeno – é de iniciativa do Poder Executivo, aprovadas, logicamente, pelo Poder Legislativo e assim, consequentemente sendo de iniciativa  do presidente da República – no caso brasileiro – fica, por isso, deveras dificultada a atuação do PGR para confrontar essa legislação expedida pelo seu nomeante. Na verdade o PGR devia e deve obediência à Constituição, mas as injunções políticas são tantas que essa obediência fica enfraquecida e muitos, ou quase a totalidade dos PGR’s que atuaram até então, eram mais fiéis ao presidente da República do que à própria Constituição: com isso perdiam todos. Hoje, a despeito de outros legitimados, o PGR mantém uma posição de bastante destaque e relevância, não só quando é autor: nesse caso, exerce a posição principal. Mas, mesmo quando ele não é o autor, é sempre ouvido antes do julgamento da ação, tendo e exercendo, assim, papel de agente ativo. Por ser sempre ouvido no processo jurisdicional de controle de constitucionalidade das leis, e sendo “uma parte” independente, como se quer e se deseja – e a CF/88 impõe –, o PGR está livre para emitir sua opinião sobre a lei submetida ao referido controle. Restou ao Advogado-Geral da União (AGU), este uma figura criada pela CF/88, a defesa da constitucionalidade da lei nos julgamentos das ADIns. Há autores, dentre os quais Gilmar Ferreira Mendes , que afirmam que “o Advogado-Geral da União não é o advogado da inconstitucionalidade”, que ele é livre para emitir sua opinião a respeito da lei sob julgamento, não estando obrigado a defendê-la quando a tenha por inconstitucional. Entendemos que essa posição é idealmente lógica, mas, na prática, inválida, isso tudo pelo que dissemos anteriormente em relação ao antigo regime a que se submetia o PGR, pois o AGU exerce também um cargo de confiança do presidente da República e, sendo uma lei produzida pelo Poder Executivo, dificilmente o AGU terá autonomia política para emitir livremente sua opinião, indo, certamente, defender a sua constitucionalidade, o que tira dele qualquer liberdade, pelo menos em relação às leis e atos normativos federais.

O relevantíssimo papel do PGR é exercido em duas oportunidades, ou até em três. A primeira quando ele é autor: ao ajuizar a petição inicial. Após o ajuizamento da ação ouvem-se as autoridades que concorreram para a edição da lei; após isso, o processo volta ao PGR para emissão de parecer sobre o caso, sendo esta a segunda oportunidade para desempenhar seu papel. É, então, quando da emissão do parecer, que o PGR irá desdobrar e desenvolver o seu entendimento jurídico sobre (in)constitucionalidade da lei combatida; a terceira oportunidade se apresenta quando oralmente sustenta sua tese em plenário.

Quem já teve oportunidade de ler a inicial de uma ação direta de inconstitucionalidade verá que ela é muito modesta, superficial. O PGR, ou quaisquer dos outros legitimados, simplesmente diz algo mais ou menos assim: a lei de número tal, artigo X esta em confronto com o dispositivo Z da Constituição. E, com isso, está proposta a inicial. Isto porque o STF é livre para esquadrinhar toda a lei e encontrar a inconstitucionalidade onde quer que ela esteja.

Também se deve ressaltar que, mesmo quando o PGR não é o autor da ação (portanto quando essa é de iniciativa de um outro legitimado), ele é obrigatoriamente ouvido, oportunidade em que oferta parecer, como já dissemos anteriormente, no qual irá desenvolver todo o seu entendimento sobre a causa em julgamento. O parecer que o PGR emite não está de modo nenhum vinculado à inicial, seja a inicial que ele mesmo ajuizou, seja aquela ajuizada por um dos outros legitimados. O PGR pode, embora aparentemente seja um contra-senso, ajuizar ADIn, e em seu parecer opinar pela constitucionalidade da lei. É claro que isso enfraquecerá a tese exposta e, de certo modo, deixa no cidadão não afeito ao mundo jurídico uma sensação bastante ruim, pois se o PGR sabia que a lei era constitucional, como diz no parecer, não precisava ter ajuizado a ADIn.

Hoje o PGR pode ajuizar ADC, não necessitando da ADIn para declarar a constitucionalidade (sem esquecer o efeito dúplice), embora nada o impeça de também na ADC por ele ajuizada emitir parecer defendendo que a lei é inconstitucional. Então, ele mantém a possibilidade de autocontradizer-se.

Mas o que se deve e se quer ressaltar aqui é o papel do PGR na interpretação da lei que ele submete ao julgamento do STF. Esse é o papel maior do chefe do MPU enquanto intérprete da Constituição. É ele que fará a primeira interpretação, o primeiro confronto entre lei e Constituição, e o fará, obviamente, ou na inicial ou no parecer. Vamos tratar, agora, apenas da atividade do PGR, enquanto parecerista, pois é no parecer que ele irá emitir e desenvolver adequadamente o seu entendimento jurídico sobre a (in)constitucionalidade da lei. Mas, para que ele diga por que entende que a lei é (in)constitucional, primeiro ele deve interpretar a Constituição e fixar a interpretação que tenha estabelecido.

Sabendo-se que “... a linguagem é o que faculta o homem a ser o ser vivo que ele é enquanto homem. Enquanto aquele que fala, o homem é: homem” .

Embora a linguagem (em suas várias modalidades) tenha sido uma criação espontânea de cada povo para se comunicar no cotidiano, ela, nem sempre, ou nunca, é isenta de dubiedade. Todas as palavras têm significados, os quais persistem mesmo quando a palavra muda de sentido. Assim, o intérprete deve descobrir os tesouros enterrados muito profundamente sob as palavras.

O PGR deve ser o primeiro agente da interpretação e da mutação constitucional.

Ao trabalhar com a linguagem constitucional, o PGR fixará: o artigo Z da Constituição diz isso. Portanto deve ser entendido desta maneira. Fixada a interpretação do dispositivo constitucional passará ele a fazer a interpretação do dispositivo legal ou infraconstitucional que está confrontando com a Constituição e aí também estabelecerá o que o dispositivo da lei significa. Fixado o sentido da lei irá o PGR confrontar a sua interpretação com a que tenha efetuado da Constituição e daí dizer onde está o vício e por que a lei é (in)constitucional. É somente após este confronto que ele terá condições de concluir, em seu parecer ao Supremo, por que defende que a lei é (in)constitucional e requerer o reconhecimento desta (in)constitucionalidade pela corte.

Embora os métodos de interpretação jurídica caibam também na interpretação constitucional, sabidamente, com as adaptações devidas, consultamos, por amostragem, as iniciais e pareceres emitidos pelo PGR, (especialmente os pareceres), e não localizamos em nenhum deles essa autoridade fazendo o confronto analítico que anteriormente foi referido, e que entendemos deva ser procedido. O cotejo entre as duas interpretações (da Constituição e da lei) é fundamental para o perfeito entendimento do possível vício de (in)constitucionalidade. O confronto tem sido feito apenas mental ou implicitamente. O PGR limita-se a dizer que a lei questionada confronta um determinado dispositivo da Constituição, deixando a interpretação dos dispositivos a cargo exclusivo do STF. É nesse modo acanhado de exposição de uma interpretação propriamente dita que acredita-se que o PGR deva avançar ou deveria avançar, levando a questão com sua interpretação bem fundamentada, toda esquadrinhada segundo seu entendimento do porquê da (in)constitucionalidade. Deve, portanto, usar na sua interpretação os métodos gramatical, teleológico, histórico, axiológico, e assim, dizer se a lei questionada é (in)constitucional.

O método gramatical que é, segundo a doutrina, o mais simples e mais elementar dos métodos, não tem sido usado, ou pelo menos usado devidamente, conforme se observou na micro pesquisa que procedemos. Ainda não vimos o PGR fazer uma análise filológica ou uma análise semântica, sintática ou pragmática do texto legal.  Não se tem efetivado, pelo menos não se conhece, o exercício dessa clara e desejada possibilidade. Embora, como dissemos anteriormente, o método gramatical não deva ser privilegiado, é por ele que se começa qualquer interpretação constitucional, sendo o texto o limite do intérprete. Então, já que o método gramatical é o primeiro a ser utilizado, que o seja plenamente. O que se tem assistido é ao PGR simplesmente afirmar que a lei é (in)constitucional e deixar que o Supremo diga o porquê. O PGR tem que ser um instigador do Supremo, mas um instigador privilegiado; privilégio decorrente, exatamente, do estudo fundamentado que ele faz da lei e da interpretação que afirma caber, é justamente neste momento que ele pode influenciar a decisão que vier a ser adotada pelo STF, o qual, certamente, não está vinculado ao parecer. Todavia, este poderá ser decisivo, se bem construído (atendendo ao binômio persuasão/convencimento), na posição que vier a ser esposada pelo Tribunal, uma vez que “o valor intelectual de uma intervenção é determinada pelo seu conteúdo” .

Em outras oportunidades poderemos ver que o Supremo também não avança muito na interpretação, ficando aquém do que se espera de uma decisão fundamentada, e se restringindo a dizer ou a utilizar o mesmo método que o PGR utiliza, dizendo simplesmente que a lei tal é inconstitucional porque afronta determinado dispositivo da Constituição e assim acaba julgando dessa maneira obscura quanto ao perfeito entendimento do sentido da Constituição e da lei.

Deve, portanto, o PGR, por meio de paráfrases, reconstituir o sentido da Constituição e da lei, afastando as imprecisões e ambigüidades naturais da linguagem, pois, se a lei fala, o faz pela boca de seu intérprete e o PGR, repita-se, é o primeiro deles.

Os romanos “colocaram a retórica no ápice da pirâmide educativa, afirmaram implicitamente que a comunicação era até o mais importante para se obter êxito na vida” , o que nos leva a afirmar que o PGR deve usar todo o seu talento retórico argumentativo para expor e assim defender a melhor interpretação. Não deve se contentar com UMA interpretação, mas com A interpretação que elegeu como a apropriada e cuja acolhida pelo STF deve buscar.

Os métodos interpretativos são quase sempre desprezados, com o que o PGR (e o próprio Supremo) presta um grande desserviço, ou não avança o que poderia e deveria avançar na problemática interpretação das leis e da própria Constituição.

No controle, o PGR deve ou deveria utilizar de todos os argumentos possíveis dentro do arsenal de que dispõe para confrontar a lei com a Constituição. Nunca sem antes deixar esquecido que, no controle jurisdicional de constitucionalidade, há uma dupla interpretação ou mesmo uma tripla interpretação. Primeiro interpreta-se a Constituição para saber o que diz (apurar o seu sentido), depois interpreta-se a lei e, por fim, faz-se o confronto entre estas duas interpretações, confronto que pode ser entendido como uma terceira interpretação, pois ele verificará onde há harmonia ou desarmonia entre os dispositivos contrastados.

Se é o intérprete que faz a lei falar, então cabe ao PGR em primeiro lugar começar a fazê-lo. Para isso disporá de todo o conhecimento doutrinário e jurisprudencial, mas especialmente do doutrinário, para desenvolver o seu entendimento sobre a interpretação que deva ser dada à lei. Sabemos que a sociedade só existe porque o homem se comunica, porque o homem fala, porque o homem tem linguagem, e dentre essas linguagens a mais importante, no caso, é a linguagem escrita, embora a oral não seja totalmente estranha, uma vez que o PGR também terá oportunidade de expor, verbalmente, sua tese. Mas estamos tratando aqui, especificamente, da linguagem escrita, pois é no parecer que ele terá tempo e oportunidade de melhor elaborar o seu entendimento sobre o que diz a lei ou pelo menos o que ele entende que ela diz, e o que ele entende certamente é o mais importante, por isso deve a sua interpretação ser trabalhada com afinco e em profundidade, utilizando todos os métodos possíveis, especialmente deverá o PGR reconstruir a lei e a própria Constituição mediante paráfrases que melhor aclarem o que ambas dizem, obviamente.

Por que é necessária a interpretação? A interpretação realmente só é necessária porque há dúvidas no entendimento do texto legal. Tendo em vista que de todo texto normativo, como, de resto, de qualquer texto, cabe interpretação, pode-se afirmar que todo texto de lei é dúbio e ambíguo e vago, e, para aplacar ou esclarecer as dubiedades, as ambigüidades e as vaguezas é que deve o PGR construir ou reconstruir, via interpretação, o dispositivo constitucional e o legal e assim proceder ao confronto entre eles.

O parecer deve ser tão bem e profundamente elaborado que induza o STF a adotá-lo como razão de decidir, para isso basta que use a persuasão lastreada na arte retórica e na argumentação.

Portanto, o PGR deve avançar no controle jurisdicional (inovando e ousando, a fim de dar uma diretriz ao STF) até para que a Instituição da qual é chefe cumpra melhor e adequadamente as relevantíssimas atribuições que lhe foram outorgadas pela Lei Maior. Neste passo, as ADIns (inicial, pareceres e acórdãos), até aqui, têm se apresentado com uma fundamentação que está mais para argumento de autoridade do que para a busca de um convencimento racional, está mais para a dogmática que para a zetética.

por Osório Barbosa e Juarez Barbosa de Lima Neto
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