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Corrupção: o mercado como uma propriedade pública fundamental.

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Corrupção: o mercado como uma propriedade pública fundamental.

 

Ao Professor Joaquim Falcão, FGV-RJ.

 

 

Confesso que nunca tinha pensado no mercado como uma propriedade pública fundamental, até porque meu ramo de estudo, a princípio, seria outro.

 

Entretanto, melhor analisando a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CR – encontramos os seguintes dispositivos relacionados ao tema ora analisado:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

...

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

 

A livre iniciativa é, portanto, um princípio fundamental. As grandes perguntas a serem respondidas são: como haver livre iniciativa num ambiente dominado pela corrupção? Até onde vai uma liberdade em tal ambiente?

Quando trata da Ordem Econômica, dispõe a CR:

 

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

...

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

 

É possível falar-se em livre concorrência em ambiente dominado pela corrupção e pelos cartéis?

Nesses ambientes, sempre opacos, justamente necessários para que possam prosperar, como exercer-se uma efetiva defesa do consumidor?

O livre exercício de uma determinada atividade econômica, mesmo que não necessite de autorização de órgão público, pode efetivamente ser livre em um ambiente corrompido, onde os recursos estatais são canalizados ilicitamente apenas para os comparsas de corrupção?

E,

 

Art. 172. A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros.

 

Estará o capital estrangeiro, tido por necessário ao desenvolvimento nacional, devidamente protegido em ambiente corrompido?

E,

 

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

 

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

...

III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

§ 3º A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

 

Todo esse arcabouço constitucional, pelas dificuldades criadas e impostas, apenas dificultam sobremaneira qualquer fiscalização por parte de empresas interessadas e dos cidadãos, via ação popular, sendo esta tão difícil de ser instruída quanto maior for o interesse do próprio Estado em esconder suas práticas lesivas ao patrimônio público.

Embora “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só seja permitida” nos casos indicados, certo é que o Estado ainda é, e parece que sempre foi e será, o maior comprador de bens e serviços até onde se estende a sua soberania, vindo daí, certamente, a mais importante disputa política para dominá-lo e, assim, canalizar os recursos disponíveis para tais fins.

A CR impõe o estabelecimento de Estatutos para as suas empresas, mas estes têm a mesma dificuldade de fiscalização quanto as leis em geral e a própria Constituição, fazendo aqueles que deviam permitir tal exercício os maiores malabarismos para evitar que o público tome conhecimento de suas práticas.

Além do mais, o Estado não se fiscaliza e impede com todas as suas forças que a sociedade o faça, pois não há transparência nos negócios públicos das empresas, recorrendo seus administradores, sempre, às razões de “sigilo comercial”, tudo com o beneplácito de quem sabe que isso não é necessário/verdadeiro, mas não corrige tal prática!

As licitações que deveriam garantir igualdade entre concorrentes, regra geral, começam sendo fraudadas já na formulação do edital, que dirige a vitória para o grupo a quem seus formuladores estão ligados!

A simples venda do edital, em muitos casos, é dificultada sobre maneira, tudo para afastar a disputa.

Os acionistas minoritários, pela CF, recebem um tratamento privilegiado, mas, na prática, não resistem às investidas do sócio controlador, o Estado, que sempre impõe suas decisões sem qualquer beneplácito inclusive à razão, passando, assim, tais acionistas, à mera condição de assistentes de suas próprias ruínas.

As avaliações de desempenho, mesmo quando mal sucedidas, podem levar a uma permanência do status quo, sob o pálio de que a situação é passageira e preparatória “para dias melhores”!

Nenhuma regulamentação tem garantido um efetivo e proveitoso relacionamento entre empresas estatais e sociedade. Aqueles se impõem com a força que lhes dá o Estado sobre qualquer cidadão que ouse saber de algo que passa em suas entranhas, sempre sob a mesma cantilena: sigilo empresarial!

E,

 

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

 

A burla ao art. 174, acima, chega ao ponto de a fiscalização, o incentivo e o planejamento tornarem-se instrumentos de pressão, pelo poder da compra de bens e serviços, capazes de transformar as empresas privadas escolhidas como beneficiárias da corrupção como sujeitas ao que planeja e decide o Estado para elas!

Penso que a corrupção, no dizer aristotélico, é ínsita ao homem, o acompanhando como uma sombra!

Quando o espermatozoide fecunda o óvulo o ser humano começa sua trajetória rumo ao fim num processo incessante de corrupção.

Entendo, por isso, que a tipificação dos crimes que hoje chamamos de corrupção não ajuda muito na compreensão do inexorável e do crime.

No Código Penal encontramos:

 

Corrupção passiva

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)

 

§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

 

§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

 

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

 

E,

 

Corrupção ativa

Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)

 

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

 

Embora os artigos não mencionem a palavra corrupção, eles são nominados como tais: corrupção ativa e corrupção passiva.

Na corrupção ativa o particular oferece ou promete uma vantagem ao “servidor público”.

Na corrupção passiva o “servidor público” solicita ou recebe uma vantagem que lhe é oferecida.

A princípio, esses comportamentos, solicitar ou aceitar oferta, não tem nada a ver com corrupção, pois não são necessários, inexoráveis, como se disse. Os crimes não ocorrerão se não ocorrer a solicitação ou a oferta. Já o processo corruptivo não pode deixar de ser, “ele não pode ser freado”.

Portanto, uma nomeação mais apropriada para esses crimes talvez ajudasse a melhor compreendê-los!

Pelos dispositivos apenas acima transcritos, conclui-se que nos crimes de “corrupção”, tanto na ativa quanto na passiva, há o envolvimento de funcionário ou servidor público! Se não houver a participação de funcionário público, não há corrupção!

Para a existência do crime, portanto, o corrupto (aquele que solicita ou aceita vantagem indevida) tem que ser funcionário público.

É esse relacionamento entre corruptor e corrupto que leva todos a verem, inicialmente, como era o meu caso, o mercado como um bem público sim, público por “pertencer” ao Estado, já que por ele gerido e violado por um seu funcionário!

Mas, olhando-se com mais vagar, ver-se-á que o mercado vai mais além, pois ele é também um ambiente privado onde os entes que nele atuam (empresas) não são estatais (o Estado apenas exerce “fiscalização, incentivo e planejamento”, sendo este apenas indicativo para o setor privado). Na verdade, as empresas são os atores principais nesse mercado, o Estado apenas o regula.

O dano a este mercado começa a ocorrer quando o regulador, que é também o maior comprador, se alinha, criminosamente, com uns em detrimento dos demais. Ou seja, sem lisura, tornando-se, assim, não um regulador, mas um comparsa no crime.

O Estado pode “ajudar” (fraudando) umas empresas em detrimento de outras, sendo que, muitas vezes, as que são lesadas com o conluio são até mais preparadas/qualificadas que aquelas que acabam contratando com o Estado! Tudo isso num claro desrespeito a regra licitatória.

Ora, quando o Estado, ao agir criminosamente causa prejuízo ao investidor (nacional e estrangeiro) que tem recursos investidos nas ações dessas empresas postas no mercado, causa imenso prejuízo à credibilidade e higidez do mercado de capitais, afastando, com isso, os financiadores das empresas de um modo geral que poderiam atuar no mercado nacional!

As empresas que devem, por atuarem no mercado financeiro por suas ações postas à venda via bolsa de valores, e que, assim, seria um bem de muitos, da sociedade, acabam sendo transformadas em “propriedade” de alguns, de poucos, em especial de corruptos e corruptores, em especial por atuarem no mercado, bem de todos, sem qualquer transparência.

A corrupção é tão prejudicial ao próprio mercado, que ora chamo de “privado”, aquele onde as empresas privadas deveriam atuar em igualdade de condições, que os próprios sindicatos dessas empresas têm enorme dificuldade em defender os interesses de seus filiados, haja vistas que aquelas empresas beneficiadas com a corrupção também são suas afiliadas!

Façamos, rapidamente, um sobrevoo sobre o tema do qual ora dissertamos e a realidade brasileira no momento (2015):

Mesmo que não existisse o Estado, mesmo que a atividade econômica vivesse em um “anarco-capitalismo” a “corrupção” dos agentes econômicos lesaria a sociedade exatamente da mesma forma que lesa com a participação de agentes do Estado, levando, com isso, a um aumento de custos da economia como um todo. Tal tema requer um estudo mais aprofundado, não cabendo aqui fazê-lo.

Contudo, apenas para resumir o que se quer dizer, suponha-se que a Petrobrás fosse uma empresa privada, em que o acionista controlador não fosse a União, mas sim o Zé Zuckerberg, melhor ainda, o Zé Zuckerberg fosse o único dono da Petrobrás, desta forma não teriam acionistas minoritários para perder seus investimentos.

Todo o desvio que ocorreu na Petrobrás aconteceu exatamente da mesma forma que ocorreria na empresa privada do Zé: superfaturamentos, licitações fraudulentas etc...

No caso da empresa do Zé ninguém seria preso. Suponhamos que o dono tinha ciência de tudo o que acontecia, mas deixou que, mesmo assim, tudo transcorresse como transcorreu.

A empresa privada do Zé Zuckerberg estaria lesando a sociedade?

Será que só porque o dono é o Zé Zuckerberg em vez da União a economia nacional não estaria sendo lesada? A população, como um todo, não estaria sendo lesada?

Estaria! Exatamente da mesma forma! Qualquer que fosse a natureza da empresa (pública ou privada), a sociedade arcaria com os prejuízos.

Os prejuízos para a sociedade, para a economia nacional, independem, portanto, do fato da corrupção do sistema estar ocorrendo em empresas estatais ou privadas. Em ambos os casos o prejuízo se reflete no preço do produto vendido, na redução do recolhimento de tributos etc.

A Petrobrás tem que repassar todo o custo do seu prejuízo/desvio para os preços, o resultado é que os combustíveis, por exemplo, no Brasil, têm o preço mais alto das Américas e, ainda assim, a Petrobrás “reclama” que seus preços estão defasados (nos EUA, por exemplo, o galão, 3,8 L, custa US$ 2, ou seja, cerca de 0,50 por litro, ou R$ 2,00 por litro, aqui custa o dobro, e lá todas as empresas do ramo petrolífero estão tendo lucros e não reclamam). Assim, resta claro, que a sociedade é quem paga por esses desvios. Consequentemente, o recolhimento de tributos, especialmente o IR da empresa, está muito aquém do que deveria ser, já que os resultados foram deteriorados pela corrupção generalizada.

Enfim, tanto faz, em termos econômicos, que seu tecido se corrompa no âmbito de empresas estatais ou privadas, pois os danos à sociedade serão os mesmos.

E no Brasil o sistema financeiro privado é aparentemente extremamente corrupto, desvia ilicitamente do restante da sociedade, daqueles que dele não se beneficiam.

A Bolsa de Valores é dirigida por aliados que tem na Comissão de Valores Mobiliários outras pessoas ligadas às interessadas diretas nas práticas lesivas.

Bancos são sócios da Bovespa (a nossa bolsa de valores) e quando são flagrados em crimes contra investidores nenhuma providência correicional é adotada.

A Bolsa de Valores tem sido um óbice para o crescimento econômico nacional. A sua falta de credibilidade afastou os investidores e o resultado é que o país está privado da mais eficiente forma de fomento da atividade econômica: a atração de sócios via abertura de capital. O Brasil, 8ª economia mundial, tem hoje tantas empresas de capital aberto quanto a Mongólia, 129ª economia mundial, mas com apenas 3 milhões de habitantes!

Para a retomada do crescimento econômico é fundamental que a Bovespa readquira a credibilidade perdida.

Encaremos, ainda, o Estado também como uma empresa que vende compulsoriamente seus serviços ao restante da sociedade. Se o Estado é corrupto, seus custos aumentam, e, da mesma forma como ocorreu na Petrobrás, ele acaba tendo que aumentar seus preços (tributos).

Se os combustíveis custassem no Brasil o mesmo que custam nos Estados Unidos, a “roda econômica” giraria muito melhor. Os fretes seriam mais baratos, a comida seria mais barata, as pessoas consumiriam mais serviços, como turismo, desgastariam mais, pelo uso, seus veículos particulares e dariam mais serviços às oficinas, que demandariam mais peças, os bares venderiam mais, as indústrias também etc. Ou seja, o alto custo do desvio impacta toda a atividade econômica do país.

Da mesma forma, se o Estado vendesse mais barato os seus serviços (carga tributária), certamente o nível de investimentos seria maior. Ocorre que ele não consegue reduzir suas despesas, então ele tem que buscar no restante da sociedade o que lhe falta, seja via aumento da carga tributária, seja via expansão monetária, que resulta em inflação de demanda. Ocorre que, aumentar a carga tributária na atual circunstância, pode também alimentar a inflação, via aumento de custos dos agentes econômicos”.

O melhor que se pode fazer, para o bem de todos, sociedade, Estado e empresas, é impor e garantir a imposição da isonomia, da igualdade, efetiva e real entre as empresas, mas, para isso, o Estado não pode lutar sozinho contra a corrupção, ele precisa ser ajudado nessa tarefa.

Mas como conseguir isso, pois, aparentemente, o capitalismo impõe a sobrevivência dos mais fortes, dos mais adaptáveis?

Penso que a primeira providência que o Estado tem que adotar é deixar de ser opaco, sendo essa uma grande e boa iniciativa, pois com ela virá o esforço fiscalizatório da sociedade e das demais empresas interessadas nas vendas para o setor público, o maior consumidor, como se disse.

A lei de acesso à informação ou lei da transparência (Lei nº 12.527/2011) está aí e é um grande instrumento posto a serviço da proteção ao mercado que ora abordamos.

Em sendo o mercado respeitado como um fim em si mesmo, para esse propósito, as concorrências serão mais justas e, até, mais baratas, pois a elas acorrerão, inclusive empresas internacionais.

Tudo é uma questão de fiscalização, especialmente por parte do Estado que deve, para o seu próprio bem, permitir-se ser fiscalizado.

Terminemos com um excerto literário que, cremos, caber sobre o tema. É da obra “As dez vidas do senhor Cardano”, de José Carlos Mello (Ed. Octavo) e diz:

Lobistas são pessoas realistas, conhecedoras do que há de pior na alma humana, cínicas, sem polimento, vulgares, comportam-se com civilidade nas abordagens iniciais a seus alvos, tão logo estreitam as relações, mudam suas atitudes: não chocam ninguém. As autoridades também deixam de lado as posturas ensaiadas e assumem seu verdadeiro caráter.

Os dois amigos participavam das reuniões, opinavam, sugeriam e aprovavam as decisões. Adotavam o comportamento deles esperado, afinal, no mundo da política e dos negócios escusos as representações se adaptam ao momento.

Os roteiros são flexíveis e os papéis se alteram à medida que a peça se desenrola. Um personagem austero, no começo pode ser o bobo da corte, no final, sóbrios tornam-se ridículos, incorruptíveis viram desonestos, pudicos aderem à devassidão.

A única verdade é que ninguém melhora no decorrer da encenação. Somente os que conseguem a proeza de se adaptar ao papel do momento sobrevivem e continuam em cena.

Carlos ocupava uma função desimportante quando foi chamado a coordenar um projeto que envolveria grandes investimentos.

Em reunião do cartel, o assunto veio à baila:

Será um contrato valioso, ele tem que ser nosso. O encarregado, um tal de Carlos, quer abrir uma concorrência internacional. Temos que impedir. Isso derrubará os preços. Algum de vocês conhece esse sujeito?

Eu conheço, é meu amigo.

Ótimo. Pedro, faça uma visita a ele. Sensibilize-o. Faremos de tudo para levar essa obra.

Pedro, que bom vê-lo. Precisamos repetir os nossos jantares.

É claro! Gostaria de apresentar meu colega, Troilo de Taunay y Taunay.

A sondagem permitiu sentir as boas intenções e a ingenuidade do interlocutor.

Pedro, não abrirei mão da concorrência internacional. As empresas nacionais cobram quarenta por cento a mais para fazer a mesma coisa. Como elas querem esse contrato, baixarão os preços e executarão os trabalhos.

O cartel não gostou do que ouviu, o líder expressou a indignação dos demais:

Se perdermos para alguém de fora, estaremos desmoralizados. Quem levará a sério nossos compromissos? Nossa palavra? Você não deveria ter levado Troilo, um desconhecido para ele. Procure-o novamente e ele se abrirá. Proponha três por cento, podendo chegar a cinco, não se esqueça de que, desencadeado o processo, teremos que remunerar uma dezena de pessoas, a começar pelo chefe dele, o governador, e reservar algum para nós.

Marcaram o encontro, conversaram amenidades, lembraram coisas boas do passado, somente na sobremesa o assunto foi tratado de forma objetiva. Pedro foi direto aos cinco por cento, dizendo que um era para ele e quatro para o Carlos.

Reuniu o cartel, contou seu feito e aguardou os cumprimentos.

Fiz a proposta de três, ele se mostrou irredutível, aceitou cinco.

Excelente, Pedro. Ficará caro, o sobrepreço será pelo menos vinte por cento. Vamos comunicar aos nossos patrões, ao governador, aos aliados no Congresso. A assessoria de imprensa deve preparar uma nota elogiando a decisão tomada, ressaltando a preservação de interesses e empregos brasileiros.

Vamos começar a promover esse sujeito, falou o decano, o velho surdo.

No fim da semana, estupefatos, leram uma entrevista do Carlos justificando a concorrência internacional, ressaltando a importância da redução dos preços.

Passados quatro dias, Carlos foi chamado pelo governador:

Tenho pensado muito em como estou subutilizando o seu talento. Vou promovê-lo, você será meu secretário para assuntos internacionais, precisamos divulgar nossas belezas e negociar novos financiamentos externos. Gostei muito da sua entrevista, principalmente na questão da redução dos preços. Parabéns.

Carlos entendeu, agradeceu, prometeu empenho e se pôs a conhecer o mundo. Pedro foi repreendido pelo cartel, pelos patrões e não foi mais ouvido. Permaneceu onde estava para não promover alguma vingança, ainda tinha amigos poderosos e informações importantes.

Tão logo assinassem o contrato, ele seria demitido.

Procurou Carlos, pediu desculpas, dizendo que entendeu mal seu aceno de cabeça, interpretou-o como aprovação ao proposto. Ambos sabiam que ali acabavam as suas carreiras.

O cartel não queria um embusteiro em seu meio, sua presença o desacreditaria perante os governantes, e esses não queriam conviver com um auxiliar tão desprovido de sensibilidade política.

Pedro sabia que seu destino estava traçado. Nos jogos do poder não há espaço para gente desatenta. Carlos pensou deixar o serviço público e fazer algo mais sério, mas acabou ficando onde estava.

O mal-estar causado foi divulgado a todos os governantes, se transformou numa lenda, num mau exemplo, ele jamais foi chamado a decidir assuntos importantes ou desimportantes.”

 

É a vida imitando a arte!

 

 

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