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Poesia: deleite-se ou delete-me (14.08.15).

Maraãvilhosos,

 

procurador de amigos 2

 

 

Conheço a um certo tempo o livro “O amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos, mas, em preconceito ao título, nunca tinha me atrevido a lê-lo.

Até descubrir que amanuense é sinônimo de escrevente, copista, me deu um certo trabalho e isso não me impolgou a folhear e nem ler que fosse o primeiro parágrafo da primeira página.

Conversando com um amigo editor, ele me disse que seu poeta preferido é Cyro dos Anjos!

Espantado, perguntei: e Cyro dos Anjos é poeta?

Você nunca leu nada dele?

Não! Merece ser lido?

Ele é maravilhoso!

Qual livro dele você me indica?

Todos!

Rimos.

Comece pel'O amanuense Belmiro.

E o amanuense é dele?

Sim.

Nunca li, acho que levado pelo título.

Tem também o “Abdias”, muito bom!

Como?! Abdias? E isso é lá nome de livro.

Você vai gostar.

Lembrei! Tem um safoneneiro nordestino de nome Abdias. Que faz dupla com Marinês. Será que a inspiração do nome veio daí?

Não sei.

Terminada a conversa, fiquei com o Cyro a martelar-me a cabeça.

Comprei “O amanuense Belmiro”, e já no primeiro parágrafo, que eu deveria ter lido, apaixonei-me, pois também sou um devoto do chope. Diz Cyro:

 

Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, o nono, argumentando que esse talvez trouxesse uma solução geral.”.

 

Hoje, já de posse de outros livros do autor, inclusive “Abdias”, tornei-me um “cyrista” de carteirinha!

Por tudo isso, nas poesias de hoje, fiquem com algumas flores colhidas no jardim do amanuense que estão abaixo.

 

Abraços,

 

Osório

 

POEMEMOS:

 

Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, o nono, argumentando que esse talvez trouxesse uma solução geral.

 

O católico destrói a vida pelo modo mais violento. Introduz, em nosso cotidiano, a preocupação da vida eterna, sacrificando, a esta, aquela.

 

Cidade besta, Belo Horizonte! exclamou Redelvim, consultando o relógio. A gente não tem para onde ir...

Não acho! retrucou Silviano. Em Paris é a mesma coisa.

Em Paris? perguntou Florêncio. Não sabia que você andou por Paris ... É boa!

ó parvo, quero dizer que o problema é puramente interior, entende? Não está fora de nós, no espaço!

 

A euforia que o chope traz! A vida se torna fácil

 

A realidade é a aperência.

 

Foi um crime gastar as vitaminas do tronco em serenatas e pagodes.

 

Eu não podia ouvir uma sanfona.

 

Abandonei, porém, as letras agrícolas e entreguei-me a outra sorte de letras, nada rendosas. Pus-me a andar na companhia de literatos e a sofrer imaginárias inquietações.

 

Sorri para dentro de mim mesmo, com ternura.

 

"Por que um livro?" foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse propósito. "já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?" Respondi-lhe que perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo tantos. Se estivesse de bom humor, ela responderia que era por estar grávida. Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de trinta e oito anos. E isso é razão suficiente. Posta de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama autonomia no espaço. Ai de nós, gestantes.

 

O que hoje me sucedeu é bem um sinal dessa luta interior. Eu ia atento e presente, em busca de um bonde e de Jandira. Foi só ouvir uma sanfona, perdi o bonde, perdi o rumo, e perdi Jandina. Fiquei rente do cego da sanfona, não sei se ouvindo as suas valsas ou se ouvindo outras valsas que elas foram acordar na minha escassa memória musical.

Era precisamente por ali que estacionava outro sanfonista que não esmolava nem era cego, e tocava apenas por amor à arte, ou talvez para chorar mágoas. E chorava-as tão bem que cada um que o cercava sentia as suas mágoas igualmente choradas. O artista se revelava por esta forma perfeito, extraindo, dos seus motivos individuais, melodias ajustadas às necessidades da alma dos circunstantes, que ali iam buscar expressão para sentimentos indefiníveis que os povoavam e só se traduziriam por frases musicais.

Esse traço da generosidade inconsciente dos grandes artistas se encontrava no sanfonista da Ladeira do Conceição. Satisfazendo à necessidade de dar forma aos pensamentos imprecisos de suas saudades e de seus amores, lograva articular uma linguagem que nos servia a todos e que, por igual, nos falava de nossas saudades e de nossos amores; transportava-nos, assim, à atmosfera de alvoroçado bem-estar em que a gente mergulha quando encontra a definição de um sentimento e sua forma de expressão. Proporcionando ao espírito válvulas por onde se evadem as emoções que o comprimem, a expressão ― seja musical, literária ou plástica ― não só o alivia, mas também o excita.

O sanfonista da Vila traduzia para mim as coisas complicadas de minha alma. O cego, que encontrei na esquina, não o fez com a mesma eficiência, mas, em todo caso, me lembrou o outro da Iaderia de minha vila, e isso já foi muito fazer, porque assim despertou dentro de mim esquecidas harmonias.

 

E o estilo é a mulher.

 

Porventura chegou, também, à conclusão de que a vida é breve, e a arte, longa, e cuida de tratar o irmão corpo com o bom vinho e a boa vianda. Viva Florêncio, o homem sem ahismos.

 

Neste carnaval de 1935, hoje começado, mais do que nunca senti de modo tão vivo a impossibilidade de me fundir na massa, de seguir, como célula passiva, seu movmento de translação, de receber e transmitir essas forças misteriosas que nela atuam, comunicando-se de indivíduo para indivíduo e resultando, afinal, numa força uniforme, esmagadora, de onda ou ciclone.

 

Dêem-me um jacto de éter perdido no espaço e construirei um reino.

 

Mas vivam os mitos, que são o pão dos homens.

 

O véu que cobre a face real das coisas.

 

Evocações ligeiras, suscitadas por sons, aromas ou cores que recordam coisas de uma época morta.

 

 

Analisado agora friamente, o espisódio do carnaval me parece um ardil engenhoso, armado por mim contra mim próprio, nesses domínios obscuros da consciência. Tudo se torna claro aos meus olhos: depois de uma infância romântica e de uma adolescência melancólica, o homem supõe que encontrou sua expressão definitiva e que sua própria substância já lhe basta para as combustões interiores; crê encerrado o seu ciclo e volta para dentro de si mesmo, à procura de fugitivas imagens do passado, nas, quais o espírito se há de comprazer. Mas as forças vitais, que impelem o homem para a frente, ainda estão ativas nele e realizam um sorrateiro trabalho, fazendo-o voltar para a vida, sedento e agitado. Para iludir-lhe o espírito vaidoso, oferecem-lhe o presente sob aspectos enganosos encarnando formas pretéritas. Trazem-me uma nova imagem de Arabela, humanizando o "mito da donzela" na rapariga da noite de carnaval. Foi hábil o embuste, e o espírito se deixa apanhar na armadilha...

 

Depois da quarta-feira de cinzas veio-me uma aura romântica que me pôs meio lunático, dias agitados. Presumivelmente curado da moléstia, posso contar as coisas tal e qual se pausaram.

 

Pus-me a procurá-la quase com aflição e, perdendo a noção do ridículo.

 

Podem rir-se de mim, mas os namorados me compreenderão: amei, como se se tratasse de um ser real, aquilo que não passava de uma criação do espírito. A vida não se conforma com o vazio, e a imagem da moça encheu-me os dias.

 

Autor: Cyro dos Anjos em “O amanuense Belmiro”.

 

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