Certa noite, amigos e eu estávamos no boteco quando numa mesa ao lado sentaram-se duas moças, frente a frente. Fizeram o pedido e uma foi ao banheiro enquanto a outra ficou fuçando no e ao celular! Não formavam um casal, como é comum por aquelas bandas. Eram ambas muito belas e estavam bem vestidas, além de portarem acessórios de marca, logo, caros. Daí termos, “sem querer querendo”, baixado a voz e, de quando em vez, olhávamos para admirá-las, afinal, a beleza é a porta de entrada da alma. Além de fazer bem aos olhos e ao espírito. É por isso que vamos aos museus: admirar o que é belo. Apenas uma delas lanchou. Terminado o lanche, pegaram suas bolsas de marcas e se foram. Em pouco tempo o garçom, agoniado, pergunta-nos:
- Vocês viram as moças que estavam aqui?
- Elas se foram, respondeu alguém.
- Mas elas não pagaram! Espantou-se mais ainda o garçom.
Um amigo que chegava e ouviu tudo perguntou-nos:
- E vocês não fizeram nada?
Então, eu respondi:
- Elas aplicaram em nós o anestésico da beleza.
E a noite ia continuar, sem que eu percebesse o que tinha dito, até que o Benjamim perguntou para anotar:
- Qual foi mesmo esta sua última frase?
Só então notei a beleza da frase, que, digo, nem é minha, mas do Benjamim, pois se não fosse ele, ela teria morrido do mesmo modo que morrem tantas outras pelo simples fato de ninguém nelas prestar atenção!
Abraços,
Osório
POEMEMOS:
Posse do passado
“Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdições, agora, são o que é meu.
Sei que perdi o amarelo e o negro e penso nessas impossíveis cores como não pensam os que veem.
Meu pai morreu e está sempre ao meu lado.Quando quero escandir versos de Swinburne, o faço, me dizem, com sua voz. Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos. Ílion foi, porém Ílion perdura no hexâmetro que a plange. Israel foi quando era uma antiga nostalgia. Todo poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitos à véspera, que é soçobra, e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que os paraísos perdidos”.
Autor: Jorge Luis Borges, Os conjurados, Editora Três, São Paulo: 1985, p. 63.
e,
Em louvor do vinho
Serve-me daquele vinho
que mais parece um ígneo rubi
ou uma cimitarra desembainhada reflectindo os raios do sol
Daquele vinho que brilha no copo tão puro como água de rosas
tão suave como o sono
numa pálpebra sem sono
Não confundas o copo com uma nuvem e o vinho com as suas gotas celestiais
...Melhor seria
que esse vinho fosse servido entre as nuvens nas garras de uma águia
Evitar-se-iam assim
as companhias indesejáveis
Autor: Rodaki de Samarkan, Pérsia, Séc. X d.C. Em O vinho e as rosas - Antologia de poemas sobre a embriaguez, Assírio e Alvim, Lisboa, 1995, p 86.