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Freud e sua "Teoria da mente".

 

 

Freud ...

TEORIA DA MENTE

EM 1884, um jovem interno do Hospital Metropolitano, em Viena, estudava as propriedades anestésicas da cocaína. Numa comunicação preliminar, fazia notar que a ingestão de uma solução da droga produzia o entorpecimento da língua e do céu da boca. E sugeria: “Podemos esperar que esta ação anestesiante da cocaína venha a ter no futuro várias aplicações úteis.”

 Antes de prosseguir neste estudo o jovem médico, Sigmund Freud, foi visitar sua noiva, com quem não se encontrava havia dois anos. Abandonou, pois, temporariamente, a investigação.

Mas a comunicação foi lida por Koller, estudante vienense, que disse a um amigo: “Pelo que diz Freud, presumo que será possível anestesiar o olho com uma solução de cocaína.” Os dois moços deram seguimento às experiências, e ainda naquele ano ouvia o Congresso Oftalmológico de Heibelberg uma memória de Koller sôbre a nova aplicação da droga. Com este golpe de mestre, Koller conquistava para si um lugar no panteão da medicina. Havia solvido um dos problemas mais aflitivos da cirurgia.

 Se Sigmund Freud não houvesse procrastinado a ocasião de que se aproveitou Koller, talvez nunca chegasse a descobrir essa coisa infinitamente mais importante que é a psicanálise. Mas é vão especular sobre o que podia ser. O que aconteceu, sabemo-lo todos. Freud mudou de domicílio científico. Passou para um outro campo, para revolucionar o pensamento humano e trazer à luz uma grande teoria que se propõe à desvendar os mistérios da nossa mente.

 Tinha Freud vinte e oito anos quando Koller se lhe antecipou no descobrimento das aplicações cirúrgicas da cocaína. Nascido numa região que mais tarde faria parte da Tchecoeslováquia, seus pais judeus trouxeram-no para Viena com a idade de quatro anos. Foi nesse centro de cultura europeia que cresceu e se educou Freud. Foi dai também que começou a se aperceber daquela hostilidade aos judeus, que bem cedo lhe ensinou a ser independente e indiferente às opiniões alheias.

No Gyminasium, onde se distinguiu de tal forma que os mestres, em geral, o dispensavam dos exames, o jovem Freud conservou-se  à frente das classes durante os sete anos do curso. Era um estudante excepcional, de espírito aberto a todas as generalidades do saber, e já evidenciando um poder de análise penetrante e profundo. Inicialmente, houve dúvidas quanto à escolha de uma carreira. Mas a sua predileção recaía sobre a vida e os seres humanos. O estudo da medicina parecia estar naturalmente indicado para um moço com tais preferências.

 As teorias de Darwin traziam então a Europa em grande efervescência. Foram, para o jovem Freud, fonte de inspiração e entusiasmo. Começou a alimentar a esperança de que o conhecimento da natureza, já tão enriquecido por Darwin, pudesse receber novo impulso em território ainda inexplorado. O seu sonho era fazer-se instrumento dêsse progresso.

 O que o decidiu a estudar medicina foi um ensaio de Goethe, lido em conferência pouco antes do encerramento do curso ginasial. Neste ensaio Goethe tecia rapsódias à natureza, exalçando a sua imensa variedade, sua abundância infinita e seus segredos fechados a sete chaves. Foi uma impressão inesquecível. O poeta falara ao coração do jovem Freud. Agora só lhe parecia haver um caminho por onde alcançar essas magnificências, um só caminho compatível com as suas condições econômicas. Resolveu-se ali mesmo pela medicina.

 Mas a escolha feita num momento de entusiasmo não lhe correspondeu às esperanças. Em primeiro lugar, havia na Universidade de Viena uma forte corrente antissemítica, que lhe foi causa de grandes vexames; depois, o ensino médico oficial, padronizado, cheio de parcialidades e superstições acumuladas através dos séculos.

Vingariam esses obstáculos matar-lhe a ambição de penetrar os segredos da natureza ?

Afora a psicologia, os vários ramos da medicina pouco ou nenhum atrativo tinham para ele; e, ainda assim, o acesso àquela matéria predileta achava-se obstruído por preconceitos e teorias gratuitas, que a envolviam em trevas. Freud começou a dar-se conta de que os seus talentos eram muito especiais, com limitações coercitivas. Parecia-lhe que era incapaz de adaptar-se a coisa alguma. Seu entusiasmo arrefeceu temporariamente: nada lhe parecia digno da sua atenção, ou suscetível de lucrar com ela. Em consequência, descurou-se da medicina, só vindo a formar-se em 1881.

Entrementes, consolava-se com os trabalhos experimentais realizados no laboratório psicológico de Ernst Brücke. Começou alí a aprofundar as operações misteriosas do sistema nervoso. Passava horas a dissecar nervos de peixes raros, adquirindo assim sólidos conhecimentos sobre o substrato físico dos fenômenos nervosos.

Mas estas inquirições teóricas não lhe podiam dar um meio de vida. Brücke aconselhou-o a que deixasse o laboratório, procurando o serviço mais remunerativo de interno no Hospital Metropolitano de Viena. Não perdeu ali a paixão da pesquisa, que o seu novo posto lhe permitia transferir do sistema nervoso dos peixes para o dos seres humanos. E assim, em 1883 ele ingressou como investigador ativo no Instituto de Anatomia Cerebral, conservando todavia o lugar de interno no Hospital Metropolitano. Aproximava-se, pois do objeto de seu verdadeiro interesse. Ia plantando os alicerces físicos da teoria psicológica que devia elaborar um dia.

Aprofundou-se ainda mais no estudo das doenças nervosas, especialmente das de natureza orgânica, provenientes de trumatismos, malformações e defeitos constitucionais que afetavam a base física do espírito. Mas, também neste campo de pesquisas, as condições eram desanimadoras. Não se conhecia, a bem dizer, tratamento para tais doenças. O estudioso não tinha com quem aprender, devendo fazer tudo por si. A psiquiatria, esse ramo da medicina que trata dos distúrbios nervosos, gozava de pouco prestígio naquela época, se bem que por toda a Europa se começasse a sentir a necessidade de estudos niais profundos e mais científicos da mente, em suas manifestações normais e anormais.

Em 1885 Freud logrou a distinção de ser nomeado lente da neuropatologia, e, graças à recomendação de Brücke, foi-lhe concedido um auxílio considerável para viajar e aperfeiçoar em outros países o conhecimento da matéria sobre que deviam versar as suas lições.

Este encargo era a porta aberta aos primeiros passos da aventura intelectual que lhe encheria toda a existência.

 

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Em Paris (cidade que escolhera para realizar os estudos de aperfeiçoamento), o sábio médico Jean-Martin Charcot investigava a histeria em sua clínica da Sorbona. Os êxitos que alcançara com os seus novos métodos experimentais haviam-lhe espalhado a reputação por tôda a Europa. Seu estudo da histeria fôra conduzido mormente com o auxílio de hipnotismo, que lhe facultava a produção de paralisias e sintomas locais nos pacientes, por simples sugestão.

A histeria é hoje universalmente reconhecida como uma perturbação psíquica. Mas, antes de havê-lo demonstrado Charcot, tinham curso opiniões de toda sorte quanto à sua origem desde a ideia do “sangue ruim” até os “diabos” que Cristo expulsara do corpo da mulher a que se refere o Novo Testamento. A doença costuma manifestar-se por paralisias, semi-êxtases, posturas catalépticas e quejandos sintomas, caprichosos e aparentemente inexplicáveis.

Charcot afirmava, e demonstrava com os seus experimentos de hipnose, que a histeria não era um produto dos tecidos orgânicos, mas da mente. Não ia além disto; contentava-se, quanto ao resto, em descrever as grandes fases do ataque histérico (divisão que perdeu todo valor desde que se conheceu não haver nenhuma regularidade na histeria), provando que esses ataques não eram simulados, mas verdadeiras crises nervosas.

ARQUITETOS DE IDÉIAS

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Quando Freud entrou para a clínica de Charcot, começava já a considerar a possibilidade de um estudo das neuroses como espécie patológica distinta das perturbações nervosas puramente físicas, com que até então se ocupara. A sua habilidade na diagnose das doenças nervosas orgânicas já se fizera notada, granjeando-lhe uma certa reputação. Mas ele sentia que tal habilidade não lhe era de nenhum préstimo no vasto campo da neurose – esse distúrbio mental que reside exclusivamente no espírito, sem reflexo aparente sobre o corpo. Esperava encontrar na clínica de Charcot um critério mais esclarecido.

Não o encontrou, mas sucedeu-lhe algo mais importante. Estudando sob a direção de Charcot os numerosos casos de histeria que se apresentavam na clínica, Freud deu-se conta de que, nos casos cujos sintomas consistiam na paralisia e perda de sensibilidade em regiões localizadas do corpo, tais regiões não eram determinadas pela posição real dos órgãos, mas por aquela que a crença popular lhes designava. Por exemplo: um paciente queixando-se de opressão e anestesia do coração, sentia a dormência, não na região cardíaca propriamente dita, mas no sítio que o vulgo erroneamente acredita ser ocupado pelo coração. Isto, evidentemente, demonstrava a origem psíquica da doença. [Osório diz: vide, abaixo, os parágrafos: 2º, 3º e 8º]

Freud referiu sua observação a Charcot, que concordou mas não se mostrou interessado em aprofundar a psicologia das neuroses. Charcot era um cientista de espírito limitado pelos fundamentos físicos e anatômicos da sua educação. Era incapaz de dar atenção ou crédito a qualquer coisa que ficasse fora desse âmbito. Freud compreendeu então que, se havia de aprender alguma coisa, seria por seus próprios esforços. [Osório diz: até hoje, 2020, nada!]

Uma ocasião, em presença de Freud, Charcot aludiu a um fato que o espírito do discípulo ainda não estava em condições de fazer frutificar. Anos depois lhe acudiria a lembrança, revestida então da sua significação especial. Sucedeu a coisa deste modo; descrevendo a um outro médico o caso de um casal neurótico, a mulher inválida e o marido impotente, sugerira Charcot que em tais eventualidades os distúrbios sempre tinham raízes na sexualidade. Freud, que o escutava, perguntou de si para si: “Se ele pensa assim, por que nunca o diz?" Mas Charcot, apegado à tradição médica francesa, não podia admitir a sexualidade como causa de doenças. Ao espirito audacioso e desprendido de Freud, essa abstenção parecia contrária aos verdadeiros interesses da ciência. Se a futura teoria já houvesse começado a germinar no seu cérebro, a alusão não teria passado em claro. Mas Freud estava ainda na sua fase de formação, e o incidente ficou logo esquecido.

Todavia, embora não quisesse acompanhar Freud no caminho que este escolhera, Charcot deu ao moço, pelo exemplo, um código de hoje paciência, sobriedade e esforço imaginativo que muito 6. Auxiliaria na formação de seu aparelhamento mental de teorista. Charcot, como o fez ver o próprio Freud, era um vidente, um homem que considerava e reconsiderava as coisas, intensificando a impressão delas recebida, até que de súbito a inteligência se lhe iluminava: Possuía, sobretudo, a faculdade de agrupar as suas observações em sistemas bem organizados, que punham ordem no caos. Tudo isto constituía um ótimo adestramento para Freud.

 Do outono de 1885 ao estio de 1886, estudou com Charcot. Voltando para Viena, estacionou em Berlim, trabalhando vários meses na clínica infantil de Max Kossewitz, onde fez extensivas observações dos distúrbios mentais e nervosos das crianças. De novo em Viena, desposou no outono a noiva que lhe ficara à espera. Esta nova responsabilidade, acrescentada à constante pressão das necessidades econômicas, fê-lo abraçar a carreira de clínico.

 

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Era sua obrigação comunicar à Sociedade de Medicina de Viena o que tinha aprendido no estrangeiro. Dispôs-se a fazê-lo, com toda a boa fé. Falou nas provas, apresentadas por Charcot, de que certas manifestações físicas da histeria não são necessariamente físicas em sua origem, podendo ser mentais, visto que é possível provocá-las por influência mental isto é, pela hipnose. Os experimentos de Charcot com a hipnose demonstravam a possibilidade de se produzir por sugestão um sintoma histérico no homem, com intensidade não menor do que na mulher. Freud referiu tudo isto à Sociedade, em linguagem cientificamente clara. Riram e zombaram dele.

A-fim-de compreender este acolhimento é necessário saber que naquele tempo, em Viena, a psicologia, que hoje é a ciência da mente, pouco mais era que a ciência do cérebro e dos nervos. Considerava-se, por outra, o espírito humano como uma máquina, e em consequência todas as discussões se limitavam à estrutura dos lobos, divisões do cérebro, etc. Conhecer psicologia Conhecer psicologia significava, então, nada mais que dominar o aspecto físico, estudar os nervos e suas múltiplas ramificações. Resultava daí, necessariamente, que o dever do médico era tratar as várias perturbações mentais por meios exclusivamente materiais e químicos.

Em vista destas crenças, era natural que os colegas vienenses de Freud sorrissem com desdém ao ouvir-lhe declarar que Charcot havia provado de modo cabal não serem certos sintomas físicos da histeria forçosamente físicos em sua origem, podendo ter procedência mental. Era natural que desatassem a rir francamente quando ele se abalançou a afirmar que muitos males físicos eram produto do espírito.

Foi este o primeiro encontro de Freud com as fôrças reacionárias da medicina ortodoxa. De começo ficou desorientado. Mas, ao cair em si, sentiu a mesma revolta que indignara Pasteur ao ver a sua teoria microbiana tomada para alvo de hilaridade. Freud ouviu um dos doutores repudiar o caso dos histéricos masculinos com este comentário: "Mas como pode haver homens histéricos? Se hysteron quer dizer útero!” – voltando assim placidamente ao nível dos conhecimentos médicos em que se encontrava a Grécia uns três mil anos atrás!

Finda a sessão, alguns médicos procuraram Freud para lhe aconselhar que esquecesse aquelas fantasmagorias que se deixara impingir. Era moço, e um clínico sério. Para que desprestigiar-se com tais disparates? Pensasse na sua carreira.

 No meio dos seus protestos, de que cada palavra do relatório era verdadeira e verificável, Freud súbito compreendeu a inutilidade de discutir. Aqueles homens não acreditariam nele; não queriam acreditar. Começou a cristalizar-se então, no seu espírito um grande desprezo da opinião ortodoxa, desprezo em que encontrou refúgio muitas vezes nas décadas seguintes.

Não desistiu. Procurou nas clínicas de Viena casos de histeria masculina, e após muita oposição por parte dos diretores, que não queriam que ele estudasse os seus pacientes, conseguiu trazer um dêstes Sociedade de Medicina, para uma demonstração. Desta vez não podiam despedí-lo com risos. Os doutores aplaudiram, mas esqueceram imediatamente o assunto. Isto não obstou a que Freud ficasse marcado com o estigma de revolucionário e radical. Excluíram-no do Instituto de Anatomia Cerebral.

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Nem todos os médicos de Viena repudiavam Freud. Além dos  simples tolerantes, houve uns poucos que notaram o espírito operoso e esclarecido do moço, seus dotes de observador sereno e raciocinador incisivo. Destas simpatias, a mais valiosa para Freud foi a do conceituado médico de famílias, Joseph Breuer.

Breuer, amigo de Freud desde antes da sua estada na França referia-lhe as suas observações no tratamento de neuróticos e histéricos. Havia, em especial, um caso que parecia revelar a origem da histeria. Seriamente empenhado agora na solução do problema, Freud resolveu submeter o caso a novo estudo.

O paciente era uma rapariga histérica. Apresentava como sintomas ataques temporários mas recorrentes de paralisia, desordens de elocução, tendências sonambúlicas. Breuer tinha empregado a hipnose, interrogando-a sobre as suas reminiscências com o fito em aprofundar as origens da doença. Capacitou-se de que cada um dos sintomas tinha o seu ponto de partida, um momento de aparecimento. Logo que ele remontava, pelo interrogatório, ao nascimento do sintoma, este desaparecia. E foi assim que Breuer conseguiu eliminar em grande parte as perturbações nervosas da sua cliente.

As coisas, iam, pois, tomando rumo. Breuer denominara o processo de catharsis, ou purgação dos sintomas. Acreditava que a cura se efetuava pela sugestão, que canalizava para as vias normais a energia desviada no sintoma. Freud entusiasmou-se. Começou a verificar em seus pacientes a teoria de Breuer, e os dois homens colaboraram no empenho de compreender melhor esses mistérios.

Freud via-se pouco menos que impotente no tratamento dos casos nervosos. Mas o método de Breuer parecia comportar amplas possibilidades. Naquela época a terapêutica dos distúrbios nervosos consistia em aplicações elétricas, cujo valor mediocre não passava despercebido a Freud: sua eficácia, se é que a tinha, devia-se à sugestão do médico. Empregava-se também a hidroterapia, a que o pobre Darwin se vira obrigado a recorrer, mas Freud compreendera que não podia ganhar o seu sustento, nem fazer bem aos pacientes, mandando-os a uma estação de águas logo após a primeira consulta. E foi assim que a catarse se tornou um novo e auspicioso método.

Breuer desinteressara-se da sua descoberta durante vários anos após o primeiro caso. Freud perguntava a si mesmo a razão deste fato. Também ignorava o motivo de nunca lhe haver relatado Breuer o êxito final do caso - se a paciente se curara de modo completo e permanente, ou se tivera uma recaída ao cabo de algum tempo, como havia sucedido com seus anteriores ensaios de tratamento hipnótico. Mas não se deteve nestas interrogações. Entrou a aplicar intensivamente o novo método, que o recompensou com resultados notáveis. Os dois médicos resolveram escrever um livro.

Antes de publicá-lo, Freud partiu para uma nova visita à França. Desta vez foi a Nancy, onde o neurologista Bernheim operava maravilhas, ao que se dizia, com o hipnotismo. Freud, cuja habilidade de hipnotizador era medíocre, achou que a ocasião era excelente para aperfeiçoá-la. Além disto, o seu colega de Nancy devia ter abundantes materiais com que completar o cabedal de observações e conclusões embrionárias que se lhe agitava no cérebro.

 

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Em Nancy presenciou casos interessantes. Cria Bernheim que toda a virtude do hipnotismo residia na sugestão, e com este critério realizava curas dignas de nota e experimentos de ainda maior porte.

 Um destes, em particular, impressionou grandemente a Freud, pois lançava uma luz nova, sobre os materiais que iam pouco a pouco tomando forma em seu espírito. Bernheim ordenava a um homem submetido ao sono hipnótico que praticasse um ato trivial qualquer abrir um guarda-chuva, por exemplo - ao despertar, ou seja, cinco minutos depois. O paciente acordava, comportava-se de modo normal durante algum tempo, e acabava invariavelmente por ir buscar o guarda-chuva e abri-lo.

Isto, embora fosse um fato curioso, não era nenhuma novidade. O que causava assombro era que, ao lhe ser perguntado porque abrira o guarda-chuva, o paciente ficava embaraçado e esquivava a pergunta. Não porque se envergonhasse concientemente do motivo que o levara a praticar o ato: é que havia esquecido por completo tal motivo e estava incapacitado de responder.

Bernheim não ficava aquí. Sem recorrer à hipnose, fazia com que o paciente tomasse conciência da origem do seu ato. Mediante a sugestão, a persuasão reiterada, induzia-o gradualmente a recordar-se de todos os incidentes do transe hipnótico. Desfazia assim o embaraço e eliminava a necessidade da evasiva. [Osório diz: o sofista Antifonte, no século V antes da era atual já montara uma “clínica” onde oferecia o serviço de “curar pelas palavras”!]

Freud refletiu muito neste e noutros experimentos de Bernheim. Pareciam combinar com as observações que ele e Breuer tinham feito, ao trazer à consciência origens esquecidas de sintomas, pelo método hipno-catártico. Parecia existir um mecanismo mental incumbido de reprimir certas ideias desagradáveis. Tão pouco era consciente a repressão; e o fosse, não teria utilidade alguma. Parecia ser um processo automático inconsciente, que subtraia a atenção do paciente as associações desagradáveis ou revoltantes.

Mas os resultados da técnica de Bernheim não correspondiam as esperanças. Uma paciente neurótica muito inteligente, que Freud trouxera consigo de Viena, foi submetida ao poder hipnótico, reconhecidamente muito superior, de Bernheim. Freud, que só conseguira melhoras passageiras com a hipnose, supunha que o empêço residia na sua incapacidade de produzir um sonho hipnótico bastante profundo. Em consequência Bernheim tratou de fazer alguma coisa pela mulher. Foi mal sucedido, e confessou francamente a Freud que só lograva êxito com pacientes de hospital, e muito pouco na clínica particular *.

Freud voltou para Viena, ainda sem uma teoria, mas cheio de entusiasme. Já tinha um ponto de partida, a doutrina da repressão: o sintoma histérico originava-se de uma sensação, incidente ou impulso desagradável que, sendo reprimido, desviava a sua energia para o atalho do sintoma. Mas isto era apenas o começo: diante dele estendia-se um vasto território virgem a explorar.

 

* Deve-se o fato a essa tendência geral que faz com que os pacientes hospitalizados sejam mais sugestionáveis e submissos aos médicos do que os outros.

 

Freud meteu ombros à construção da teoria, munido de três princípios que tinha assentado solidamente.

Para ele era evidente que o primeiro princípio devia ser o determinismo, porque os sintomas em apreço não eram fortuitos nem desprovidos de significação. Tinham uma causa definida e uma razão para se manifestarem. Este sentimento determinista, Freud o trazia infuso desde aquele dia em que, ainda na escola, ouvira o ensaio de Goethe sobre a natureza. Nada, nesta, era obra do acaso; tudo tinha a sua lei.

 

O segundo princípio, tirou-o ele diretamente da observação dos seus pacientes. A origem procurada do sintoma não se achava na superfície, isto é, não era consciente. Atuava numa parte oculta do espírito, no inconsciente. Com esta divisão expressa do espírito em conciente e inconciente, Freud não fazia mais que sistematizar observações quotidianas. Mas que tumulto isto provocou! Os filósofos e fisiologistas da velha escola não podiam admitir que houvesse no espírito alguma coisa além do que se pode apreender imediatamente. "Como pode haver fatos mentais inconcientes?” perguntavam. “Porventura mental não significa consciente?" Freud não perdeu tempo com tal jogo de palavras. Os fatos estavam ao alcance de todos. A evidência de um só experimento hipnótico bastava para convencer de que havia qualquer coisa abaixo da superfície qualquer coisa que só se podia trazer à tona pelo emprego de meios indiretos.

A premissa final de Freud era a mais expressiva das três. Fora, também, deduzida dos casos que estudara. A repressão devia-se à qualidade desagradável do material reprimido e conservava certa ligação com este. Esta qualidade desagradável podia dever-se simplesmente a um choque sofrido, que fazia com que o fato fosse esquecido - isto é, soterrado no inconsciente ou podia acompanhar um violento conflito no espírito do paciente, como seja o amor sexual por um parente muito próximo para que a satisfação legal ou moral do impulso fosse possível.

Armado destes três conceitos - o determinismo, o inconsciente e a repressão das emoções desagradáveis na vida consciente - Freud preparou-se para desvendar os mistérios do espírito humano.

 

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Em 1895 Freud e Breuer publicaram as suas conclusões nos Studien Ueber Hysterie. Chamavam a atenção da medicina para fenômenos que pela primeira vez eram compreendidos e interpretados convenientemente. Citavam casos de histeria observados em suas clinicas, ilustrando o fenômeno da conversão, pelo qual uma experiência emocional se transformava em manifestação física, qual fosse o sintoma, que não aparentava ter relação consciente com a causa excitadora. “Os sintomas histéricos formam-se a expensas das emoções reprimidas.” Expunham nos Estudos o método catártico, apresentando grande cópia de casos em que a nova técnica era coroada de êxito.

Propunham à medicina um método comprovadamente eficaz para o tratamento de uma enfermidade de que até então nada se sabia ao certo. Mas a medicina desprezou-os. O acolhimento que o livro teve foi na maior parte pejorativo, mas ao menos os críticos reconheceram a existência da nova interpretação. A maioria da classe médica, no entanto, voltou as costas com desdém.

Esta atitude hostil da medicina oficial tinha um móbil muito mais profundo do que o conservantismo profissional. Os Estudos deixavam pressentir uma revolução que iria abalar veneráveis princípios de puritanismo e subverter valores morais fortemente implantados. O próprio Breuer tinha-se esquivado a reconhecer no estudo da histeria o fator sobre que insistia Freud, o motor primacial de todos os casos de neurose que lhe tinham passado pelas mãos: o inevitável impulso do sexo.

 Dava-se-lhe, por certo, relativamente pouco relevo. Freud ainda não aprofundara suficientemente o mistério para contemplar o monstro na sua plenitude. Breuer, quatorze anos mais velho e médico de famílias, fiel aos preconceitos e opiniões da época, protestara contra as referências à sexualidade que se haviam insinuado no livro. Não obstante, alí estava o começo.

 Ante as potencialidades desta ameaça, os poderes das trevas e da pudicícia correram às armas. O interdito lançado sobre os assuntos sexuais tinha raízes profundas. Reinava em tôda parte, na escola, no lar, na sala de aulas -- e até, com poucas exceções, no consultório dos médicos. Não era propriamente uma conspiração de silêncio contra aquilo que hoje denominamos, à boca cheia, "as realidades da vida”. Era um tabu arraigado e universal, que governava o pensamento e a alma de todas as camadas sociais.

 Aqui e acolá, uns poucos audaciosos tinham empreendido a cruzada de revelação. Havelock Ellis começava então a publicar os Estudos de Psicologia Sexual, pesquisas exaustivas e compilações de todo material que concorresse para elucidar as múltiplas faces do vasto assunto. Krafft-Ebing, na Alemanha, tinha editado a sua Psychopathia Sexualis, exclusivamente para os médicos, referindo milhares de casos de sexualidade anormal e mórbida. Edward Carpenter oferecia a Maioridade do Amor a um editor após outro, e todos recusavam imprimir o livro. Aparte estes e outros poucos precursores, as trevas da ignorância eram absolutas.

Foi para alumiar esta escuridão estigiana que surgiu Sigmund Freud, cujo espírito, por algum capricho de hereditariedade ou de ambiente, ficara imune aos disseminadíssimos preconceitos e tabus contra o sexo. Sem buscar uma causa de preferência a outras, estudara milhares de neuróticos e criara um método que permitia trazer essas causas para a luz. E agora que o seu método se achava em plena operação, com os Estudos sobre a Histeria apenas a saírem do prelo, Freud encontrava provas cada vez mais claras e precisas de que no centro de todos os sintomas estudados havia alguma sorte de reação contra a sexualidade.

 

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Freud não partira da idéia preconcebida de que o sexo tivesse importância primacial. Embora possuísse um cérebro muito mais receptivo e lúcido que o de outros investigadores, aceitara a principio a tendência corrente, que timbrava em abstrair dos fatores sexuais a neurose. Achava, então, que presumir tais fatores era um insulto aos seus pacientes. Mas, contra a sua vontade, por assim dizer, teve de reconhecer que eles se impunham constantemente à sua consideração.

Antes de dar a lume os Estudos publicou um artigo sobre a neurose de angústia. Era esta uma espécie particular de perturbação nervosa caracterizada por fobias, ou temores aparentemente inexplicáveis. Aplicou a sua técnica aos pacientes, com o fim de sondar a origem dos sintomas, e em todos os casos o paciente terminava por revelar algum abuso desmedido da função sexual. Masturbação, coitus interruptus, coitus reservatus, eram os tais abusos que se apresentavam quase invariavelmente nos casos de neurose de angústia. Cessada a prática e voltando o paciente à vida sexual normal, os sintomas desapareciam. Que outra conclusão podia tirar Freud? A origem da doença estava na função sexual. [Osório diz: eis o xis da questão! A origem “material” da tese freudiana: sexo! Especialmente o frustrado!]

No seu estudo da histeria e das neuroses de defesa, em que um sintoma qualquer é adotado como meio de fugir a uma ideia intolerável, ele acabava sempre por verificar que tal ideia estava associada a experiências e sensações sexuais. Havia casos típicos, como o da jovem que se tornou repentinamente histérica após a morte de uma irmã. O tratamento hipnótico esclareceu que o distúrbio nascera ao pé do leito de morte, quando passou pelo cérebro da moça o pensamento de que seu cunhado podia agora casar com ela. Escandalizada consigo mesma por haver, sequer durante um momento, entretido uma tal ideia, ela desenvolvera a histeria como meio de defesa. Quando a sua origem foi trazida à consciência pelo processo catártico, os sintomas desvaneceram-se. [Osório diz: kkkk. Por que rio? É que a moça já devia ter pensado no cunhado há muito tempo. Sem querer, admitamos, mas por conta daqueles processos que fazem o “pensamento pensar a gente, e não a gente pensar o pensamento”, como ensina Nietzsche. O escândalo, se existiu, se deve pela presença da moribunda.  Morte e sexo, mais uma vez, se enfrentando. Desvaneceram, mas não passaram. Ou seja, diminuíram, mas continuaram lá!]

Sempre que tratava um caso de neurose desta espécie, Freud deparava tarde ou cedo com o fator sexual. Tinha escrúpulos de generalizar. Em sua memória sobre as neuroses de defesa, afirmava apenas que "tais ideias intoleráveis desenvolvem-se em mulheres, mormente em conexão com assuntos sexuais... Em todos os casos que tenho analisado, foi sempre na vida sexual que se geraram os efeitos dolorosos... Limito-me... a declarar que até hoje não lhes descobri nenhuma outra origem.”

Debatendo ulteriormente o assunto consigo, ele compreendeu com grande clareza por que motivo as neuroses tinham causas sexuais. Não era precisamente neste terreno que a ignorância e a supressão se mostravam mais pronunciadas? Não se recusava, mais que aos outros, livre expressão aos impulsos sexuais? Era de admirar que aquela parte da natureza que entrava em conflito com a civilização fosse a região onde se formavam os distúrbios?

Julgara que seria relativamente fácil persuadir os seus colegas. Eles, por certo, deviam ter deparado vezes inúmeras com o fator sexual em suas clínicas. Sem dúvida ouviriam com avidez um homem que trabalhava num campo em que o sexo era o leit motiv. Freud resolveu esquecer as antigas desfeitas da medicina oficial e apresentar ao mundo as suas conclusões mais recentes.

Mais uma dura decepção: aquela gente não queria ouvir nada que dissesse respeito à sexualidade. Receberam-no com frieza, chamaram-lhe extremista e maníaco. Uma atmosfera de desaprovação pesava sôbre as sessões em que Freud lia as suas memórias. Até aqueles que outrora lhe davam palmadinhas nas costas começaram a mostrar-se menos tolerantes. Acoimavam-no de obscuro, lúbrico, perverso. Um detrator gabava-se, num grupo de colegas, de empregar o método de Freud na pesquisa da origem de um sintoma, mas interrompendo-se imediatamente e fazendo calar o paciente assim que ele, ou ela, começava a falar em coisas do sexo. Foi este o golpe final. Tão especiosos argumentos convenceram a Freud da sua posição  de pária, que ele devia aceitar: pertencia ao número daqueles que "perturbam o sono do mundo”.

Na persuasão de que tinha de fazer só a caminhada, aplicou-se com redobrado zelo à tarefa de desvendar os segredos do espírito como investigador independente. Desfez-se de todo temor e caminhou direito ao alvo, sem olhar para os lados. Os interesses materiais, que tantas vezes lhe haviam ditado os seus atos, passaram a um plano acessório na sua consideração. Perdeu muitos pacientes, porque os interrogava sobre a sua vida sexual. Eles escandalizavam-se, irritavam-se, ficavam abalados com aquilo e resolviam consultar um médico menos rude e inconsiderado. Seus amigos, salvo pouquíssimos, sumiram-se; "formou-se um vácuo em torno dele”.

 

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Mas que conquistas não havia já feito sozinho! Em primeiro lugar, tinha revelado o fenômeno da repressão (recalque): tudo que, nos fatos vividos, nos magoa as emoções que não podemos suportar é recalcado para o inconciente, e a energia que acompanha essas emoções encontra expressão equivalente no sintoma neurótico. Descobrira também que estes recalques estavam, ao parecer, invariavelmente ligados à vida sexual dos pacientes.

Aprendera além disto, casando a descoberta de Breuer com a doutrina de Charcot e ajuntando-lhes a sua própria interpretação, que quando se dava à emoção perturbada e reprimida o ensejo de expressar-se (pela simples narração feita ao médico) esse expediente simples bastava para descarregar a energia e eliminar, portanto, o sintoma.

Desses fatos passara a outras deduções, cada uma das quais era um passo inevitável rumo à completa elucidação da sua teoria psicológica. Já que o recalque era eliminado pela supressão da consciência mediante a hipnose, devia concluir-se que o agente repressor fazia parte da consciência. Freud adotou o “método topográfico”, traçando um esquema que devia ser um índice - puramente hipotético, está claro - dos diversos fatores da mente. Representava por tal modo a consciência como dominada pelo Ego, que susta e reprime os impulsos surgidos do inconsciente. Pertencem estes impulsos mormente à libido, um termo que Freud tomou emprestado ao latim para designar a soma total da energia associada ao instinto sexual. Com o tempo, esse critério topográfico foi-se-lhe revelando cada vez mais prestimoso na elaboração dos seus conceitos. *

O objetivo do tratamento era, pois, dar escoamento à energia prêsa no sintoma, pela repressão, trazendo para a superfície o material reprimido. Em outras palavras, fortalecer o Ego, fazendo-lhe reconhecer a fonte dos seus distúrbios e perturbações, de forma que èle pudesse dar-lhe um destino inteligente, raciocinado, conciente. Até ai, pensava Freud, ia o poder do médico. Cumpria, agora, encontrar o melhor meio de alcançar esse fim.

Começava a perceber que o seu método era insuficiente. Em primeiro lugar limitava-se ao tratamento da histeria e desordens associadas. A hipnose tinha outros inconvenientes, Muitas vezes produzia melhoras apenas temporárias. Não parecia penetrar bastante fundo no inconciente. Era, demais, perigosa, porque as pessoas hipnotizadas adquiriam frequentemente uma lassidão mental, uma predisposição geral que as tornava sensíveis à mais leve sugestão do médico, até quando se achavam no estado normal de vigília.

 

* Freud completou a “topografia da mente" com os conceitos do Ego, Superego e Id.

 

De outro ponto de vista, o método hipnótico era decididamente um entrave para o analista, no seu empenho de descobrir os mecanismos causadores da neurose. Pela eliminação da consciência, eliminava também as forças repressoras, furtando-as assim à observação. Com o emprego da hipnose, o analista punha fora do seu alcance um dos mananciais mais potencialmente ricos. Só pela observação da luta consciente contra os impulsos recalcados se poderiam colher noções importantes sobre a natureza dos impulsos e da consciência.

Cumpria também levar em consideração o fato de ele nunca ter logrado grande sucesso como hipnotizador, falha de que por certo sofreriam muitos outros analistas, aliás argutos e competentes.

Freud pensava pois seriamente em abandonar o hipnotismo e o método catártico, quando certo dia ocorreu um incidente que apressou a decisão. Uma doente, que ele vinha desde algum tempo submetendo ao tratamento hipnótico, abraçou-se-lhe de inopino ao despertar de um transe, o que teria criado uma situação em extremo embaraçosa se uma empregada, entrando inesperadamente, não viesse clarear a atmosfera. Freud não desejava a repetição de tais incidentes, que ele não podia em absoluto prever pelas informações colhidas no tratamento hipnótico. Decidiu, pois, tacitamente, não mais empregar o hipnotismo, e houve mister de recorrer a um novo método.

Lembrava-se de que Bernheim fazia uso da sugestão, animando o paciente a recordar os incidentes esquecidos do sono hipnótico. Ajudando-os um pouco, mostrando-se firme e insistente, lograva reconstruir-lhes na memória consciente as ocorrências do transe. Era claro que o paciente sabia dessas ocorrências; apenas, eram elas recalcadas por algum automatismo do espírito.

 Os pacientes neuróticos de Freud deviam também conhecer a origem dos seus sintomas. Tratava--se de descobrir um meio de trazê-la para a consciência. Com este propósito, começou a usar o método de Bernheim, insistindo em fazer o doente recordar, pousando-lhe por vezes a mão sobre a testa. Surtiu efeito: as origens esquecidas começavam a vir à tona pouco a pouco, e de súbito invadiam o espírito do doente, numa vívida rememoração.

O método tinha os seus efeitos: era muito fácil sugerir ao paciente qualquer coisa de que o seu Ego repressor se apossaria sofregamente, como substituto da verdade. Exigia grande esforço, tanto do médico como do doente. Mas dos disponíveis era o melhor, e Freud empregou-o durante algum tempo.

Abandonando a hipnose e o método catártico de Breuer, Freud mudou o nome da sua técnica. Criou, para ela, o nome de psicanálise.

 

9

 

O seu descobrimento ulterior da sexualidade e da libido infantil foi uma coisa que o mundo, com a sua fé semi-religiosa na inocência absoluta da infância, não estava em condições de receber. Fora a infância sempre considerada uma idade à parte, imune às chamadas "torpezas” do sexo e do desejo. Que na “tenra pureza da meninice” existisse qualquer coisa de semelhante às concupiscências e impulsos sexuais do adulto, era inconcebível e chocante!

 O fato é que o próprio Freud relutou em acreditá-lo. Ele também fora educado naquela tradição venerável. Mas a análise de centenas de pessoas sujeitas a perturbações sexuais conduzia-o inevitavelmente a buscar a origem de tais perturbações neste novo conceito revolucionário. A Esfinge do Sexo, à acometida do seu gênio analítico, revelara mais um dos seus segredos: ele aproximava-se progressivamente dos mistérios finais.

 Fez-se-lhe necessário expandir a ideia da libido para fazer-lhe incluir esta nova região, até então insuspeitada. A sexualidade já se não podia confinar nos limites estreitos dos desejos adultos e suas satisfações. As crianças tinham instintos sexuais - ele o sabia pelas reminiscências infantis que os seus pacientes deixavam desbordar à solicitação da análise. Mas não os tinham como os adultos. Os objetos de seus desejos eram outros. Seus impulsos eram vagos e amorfos. E - o que era mais importante - seu mecanismo repressor ainda não estava formado, e os tabus e repugnâncias dos adultos não as podiam influenciar. Eis aí, pois, um novo tipo de sexualidade, que cumpria analisar e compreender, afim de abranger a mente em todas as suas fases.

 Mas bem no início dessas novas pesquisas surgiu um percalço, ameaçando encantoar num impasse toda a sua análise, e que por pouco não inutilizou a teoria tão laboriosamente construída. Freud nunca se tinha visto na conjuntura de rejeitar as ideias de Charcot sobre a histeria como nascida de uma emoção violenta, destrutora do equilibrio psíquico. Em consequência, quando os seus pacientes entraram a contar-lhe recordações infantis de experiências sexuais violentas, sentiu-se inclinado a dar-lhes crédito. Era verdade, sem dúvida, que em muitos casos a causa direta de neurose estava na sedução do paciente em tenra infância por uma pessoa mais velha. Freud não teve dúvidas, portanto, sobre essas histórias de sedução e abuso de corpos passivos de crianças, que os seus pacientes lhe narravam com todas as minúcias. Mas, como via acumularem-se tais histórias no seu caderno de notas, começou a desconfiar.

Deu-se, em particular, o caso de uma jovem cujo pai Freud conhecia como homem de honra inatacável. Levando a sua análise até a fase das reminiscências infantis, qual não foi a sua estupefação ao ouvir da paciente que com a idade de seis anos fora violada pelo pai! Freud estava seguro de que isto não podia ser verdade. Não obstante, obtivera a confidência por processos de análise escrupulosamente meditados, comprovados e estabelecidos Seria possível que as bases de sua teoria fossem totalmente falsas? Teria cometido algum erro inicial, que invalidava todos os descobrimentos ulteriores? Tais foram as dúvidas que o assaltaram. Mas uma recapitulação cuidadosa não revelou erro nenhum.

Só havia uma possibilidade. De que a paciente não mentira estava ele certo; mas a história era fictícia, imaginária uma fantasia histérica, em suma. Devia-se, pois, afastá-la como destituída de importância? Aqui entrou em jogo o princípio fundamental de Freud: o determinismo. Se a paciente concebera essas fantasias, devia ter para tal algum motivo inconciente. A criação dessas imagens minuciosas de acontecimentos fictícios devia ter uma finalidade qualquer. Este propósito, em sendo descoberto, forneceria certamente indícios e inferências que ampliariam o conhecimento do espírito. “Se os histéricos atribuem a origem dos seus sintomas a traumas fictícios", raciocinou Freud, “este novo fato significa que tais cenas são criadas pela sua fantasia, e a realidade psíquica deverá ser levada em conta paralelamente com a realidade objetiva.”

 Em que consiste a vida sexual da criança? Os seus desejos, está claro, não são os mesmos do adulto. Dirigem-se antes a objetos indiscriminados, ao próprio indivíduo, aos seres circunstantes, aos seus pais. As fantasias evocadas pelos pacientes eram, evidentemente, elevações ao nível adulto de atividades sexuais consideradas indecorosas ou insignificantes. Apercebendo-se disto, Freud empenhou-se em aprender com os seus pacientes e, mais, tarde, pela observação do procedimento das crianças o modo por que se manifestava a sexualidade infantil.

 Viu assim confirmada a sua suposição de que a função sexual existia desde o começo da vida individual. Havia, entretanto, uma distinção a fazer: a mentalidade infantil não distingue inicialmente esse impulso de qualquer outra função vital. Comer, beber, brincar, defecar, e outros atos fisiológicos, servem todos como modos de expressão à libido que se agita na criança. Os órgãos genitais, pelos quais o adulto satisfaz a sua sexualidade, não se achando nela desenvolvidos, ainda não se tornaram o centro da atividade erótica. Mas a libido não deixa de estar presente, como a necessidade de comer e beber, e, por conseguinte, expressa-se pelos outros canais já abertos, e em pleno funcionamento, da vida fisiológica.

A libido não se desenvolve sempre de modo normal e sem incidentes. A infância está cheia de situações, experiências e desajustes, que tendem a revestir de indébita importância algum desses componentes iniciais, ou a proporcionar uma satisfação prematura do instinto, antes que o seu veículo normal esteja formado. Tais ocorrências ocasionam muitas vezes uma fixação do instinto no ponto em que se verificam, de forma tal que impede frequentemente o indivíduo de ultrapassar essa fase infantil ou prepúbere da vida sexual.

 E aqui se deparou a Freud um outro fato assombroso, cuja divulgação atraiu sobre ele mais veementes anátemas que todas as partes já conhecidas da sua teoria.

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Era esta nova pedra angular do edifício psicanalítico o complexo de Édipo.

 Transposto o estádio autoerótico do desejo sexual, - verificou Freud - a libido passava a buscar no exterior o seu objeto. Ainda na primeira infância e sob o signo das fases pregenitais, a criança começava a centralizar o se a centralizar o seu amor numa das duas pessoas que lhe estavam mais próximas: os pais.

Os meninos voltavam os seus desejos e seu amor para a pessoa da mãe; as meninas colocavam-se na mesma relação sentimental para com o pai. Nisto, por certo, não havia nada de novo ou de estranho; já fora observada muitas vezes essa fantasia romântica dos meninos a respeito das mães e das meninas a respeito dos pais.

Mas nenhum investigador procurara tirar deste fato as conclusões que ele implicava. Freud descobriu que o amor do menino pela mãe não se limitava a isso. O menino depreendeu ele das histórias que lhe contavam os seus pacientes alimentava desejos hostis com respeito ao pai, tinha ciúmes do homem que o precedia na afeição da pessoa amada, e procurava tomar-lhe o lugar.

Estes dois componentes - amor à mãe e antagonismo para com pai - vinha ele a descobri-los cedo ou tarde em todos os casos de neurose masculina que estudava. Quanto às mulheres, revelavam uma situação análoga. Compreendeu então que esta era a base de um dos grandes mitos da humanidade: a história de Édipo, o homem que, sem o saber, (inconscientemente) matou o próprio pai e casou com a sua mãe. O mito correspondia ponto por ponto ao que a pesquisa psicanalítica desvendara: Édipo, ao dar-se conta do seu crime contra a moral, da violação dos tabus contra o incesto, enlouquecera (a neurose), vazando os próprios olhos e fugindo do país.

Impressionado por esta nítida correspondência do velho conto grego com o resultado das suas investigações, Freud deu à sua descoberta o nome de complexo de Édipo. [Osório diz: é impressionante que alguns autores fazem uma inversão temporal para elogiar seus admirados, em uma total inversão do tempo! O “velho conto grego” antecede a Freud em cerca de mais de dois milênios, entretanto, é o conto que corresponde à descoberta de Freud e não esta àquele!]

Tinha agora a chave das fantasias de abuso sexual engendradas por seus pacientes: estes haviam passado a infância alimentando o complexo de Édipo. A mulher adulta brindava ao analista uma pintura, não de uma realidade vergonhosa do passado, mas do complemento dos seus próprios desejos, em que realizava a aspiração de tomar o lugar da mãe na afeição do pai. As fantasias, portanto, eram meios de satisfação desejos tornados realidade. O inconsciente, comprimido e recalcado pelas repressões do mundo exterior operando através do Ego, criava um mundo fantástico todo seu, em que os desejos se realizavam e o amor encontrava satisfação.

O tratamento analítico trouxe à luz outros gêneros de fantasia, e havia aspectos delas que reclamavam a atenção de Freud.

 

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Os pacientes contavam-lhe constantemente os seus sonhos.

Freud não lhos pedia, mas, atingido na análise o ponto em que o mecanismo repressivo era até certo ponto desfeito, o paciente começava a referir os sonhos que tinha, como se compreendesse intuitivamente que estes eram chave suplementares para os intricados mistérios da sua mente. O próprio Freud não tardou a perceber que o sonho podia ser-lhe um auxiliar valioso na análise.

Percebeu então claramente que durante o sonho, em que são afrouxados os rígidos entraves impostos pelo Ego ao inconsciente, as desejos e anseios do paciente têm uma ocasião de exprimir-se e procuraram na faculdade da fantasia um diversório que lhes está vedado durante a vigília.

Descobriu Freud um sentido nos sonhos, que por muito tempo  a ciência considerara como não sendo mais que reflexos deformados de indigestões e quejandas manifestações físicas insignificantes. Os antigos acreditavam que os deuses mandavam os sonhos para nos anunciar o futuro; na Idade Média, a função de interpretar sonhos fora relegada às bruxas. Em todo caso, não se viam neles senão ocas absurdidades, e toda insinuação de que os sonhos significassem qualquer coisa seria olhada como néscia superstição. Mas Freud reconheceu que eles tinham realmente um sentido, tanto sentido como os sintomas neuróticos, desprezados até havia bem pouco. Aferrou- se, com mais tenacidade que nunca, ao seu princípio original: que tudo na natureza tem o seu papel e a sua lei. Viu-o mais uma vez justificado, ao desvendar o mistério secular do sonho.

 Logo de início compreendeu que o conteúdo aparente do sonho não era o que este tinha de mais fundamental. Essas imagens fantásticas, desconexas e deformadas que povoavam os sonhos dos seus pacientes eram simplesmente traduções de desejos e idéias sepultadas tão fundo no inconciente quanto as origens de todo sintoma neurótico ordinário. As manifestações superficiais do sonho são símbolos, isto é, substitutos, de ideias essenciais. No sono, como na vigília, opera um mecanismo repressor, cuja função é torcer, desfigurar e tornar irreconhecível a verdade desagradável que jaz no fundo do espírito.

Em tudo que descobria, encontrava confirmação da sua grande ideia diretriz: que tudo na vida psíquica tem a sua significação. O sintoma histérico, aparentemente despropositado, as chamadas perversões, geralmente consideradas como sendo escolhas fortuitas ditadas pelos acasos da hereditariedade, haviam assumido uma significação precisa. As divagações incoerentes e quiméricas do sonho (e também os subterfúgios com que se esqueciam partes importantes deste) - todos esses fenômenos tinham a sua finalidade.

Freud ocupou-se por algum tempo com as particularidades desse processo quotidiano, comezinho, normal, conhecido pelo nome de esquecimento. Por que motivo esquecemos? Porque a coisa não tem importância? Às vezes, sim. Mas havia abundantes casos de seu conhecimento, em que eram esquecidas coisas importantes, coisas que deviam ser lembradas. Por que?

 Estudou diversos exemplos deste gênero de distração. O resultado correspondeu-lhe à expectativa: também aqui, o acaso não tinha parte no processo mental. Em todos os casos de esquecimento, a coisa esquecida estava associada em pensamento a algo desagradável: um fato, ou uma pessoa antipática. O amante esquecia a entrevista, não por causa da premência dos negócios, como afirmava à sua amante e persuadia a si mesmo, mas porque estava farto e queria desembaraçar-se dela - e o inconsciente encarregava-se de realizar esse secreto desejo, fazendo-lhe esquecer.

 Freud foi ainda além, examinando outros fatos da vida quotidiana. Nos lapsos de linguagem e de procedimento, que sempre foram tidos como acontecimentos fortuitos, descobriu ligações causais. As pequenas claudicações da língua, observações que surpreendem e divertem os ouvintes, erros de impressão, equívocos absurdos que parecem simples efeitos de infelizes distrações, até os erros de ação, em que uma pessoa se comporta como sob a sugestão hipnótica, cumprindo ordens não conscientemente ditadas - tudo isto mostrava ter origens definidas e determináveis. Eram lapsos do Ego, o agente fiscalizador do espírito, que num momento de cochilo deixava passar uma ponta de desejo inconsciente, ou bem substituía o erro à verdadeira intenção consciente - em que sempre se descobria uma associação desagradável qualquer.

 

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Na questão fundamental da sexualidade, Freud lutou completamente só. Completamente só, construiu a sua teoria, desenvolveu-lhe as potencialidades, submeteu à prova c ao exame o imenso material que ela tornava utilizável. A sua independência intelectual, que datava dos anos universitários, quando o antissemitismo o tinha segregado da comunidade espiritual, avultara, a partir de então, com as suas tribulações. Exacerbava-se Freud por vezes, outras vezes desanimava, mas estas intermitências de depressão iam rareando à medida que crescia nêle a conciência de haver feito importantíssimos descobrimentos e completado uma teoria portentosa. Sua atitude, durante certo tempo, foi de resignação, pois lhe parecia que o seu ostracismo estrangulava a teoria, e que esta não estava destinada a sair à luz. Em tal disposição de ânimo valia-lhe a certeza de que após a sua morte algum outro investigador exploraria as mesmas regiões misteriosas, encontraria os seus trabalhos e tiraria proveito deles.

 Entrementes continuava a trabalhar.

Publicou em 1900 as suas teorias sobre o sonho. O livro foi recebido com a maior indiferença. Não que lhe faltasse importância: tinha até demais! Apareceu uma que outra referência nos periódicos científicos, tão pressurosos, habitualmente, em anunciar tudo quanto é material novo. E, o que era curioso, a própria classe médica, que professava desprezo pelos trabalhos de Freud, porfiou então em refutá-los. Escreveram-se livros que se propunham a demonstrar os erros das suas idéias – dessas mesmas idéias que eles não tinham querido mencionar nos seus jornais. A despeito de tal oposição, as doutrinas de Freud foram-se tornando conhecidas, embora de modo vago e sob um aspecto deformado. Poucos, na verdade, se davam ao trabalho de ler-lhe os livros e estudar-lhe os argumentos. Escreveu alguém um volume inteiro contra a teoria freudiana do sonho. Mais tarde, esse homem confessou a Freud que nunca lera A Interpretação dos Sonhos: dissera-lhe um conceituado clínico que não valia a pena.

 Na esteira dessa teoria do sonho, Freud lançou outro livro em que expunha as suas descobertas no campo dos erros e distrações quotidianas. Deu-lhe o título de Psicopatologia da Vida Quotidiana. Esta obra atraiu alguma atenção, e ulteriormente veio a granjear grande popularidade para a psicanálise.

Em 1905 as teorias da sexualidade foram dadas a lume em forma completa e coesa. Foi então que Freud começou a suscitar franca hostilidade. As acusações afrontosas, que até então eram feitas entre quatro paredes, por assim dizer, passaram para a praça pública. Terminara a fase das escaramuças. Surgidos à plena luz o complexo de Édipo, a sexualidade infantil e toda a teoria do sexo como origem das neuroses, declarou-se guerra aberta a Freud. Desabaram na sua cabeça as imprecações e ataques de toda sorte. Denunciaram-no como degenerado, pervertido, cretino, maníaco do sensacionalismo - termos que hão de lembrar ao leitor os libelos lançados a Copérnico, Darwin e Pasteur.

Embora rugisse ainda em torno dele. a tempestade de anátemas, sarcasmos e críticas, a sua batalha estava finda. Durante mais de dez anos suportara sozinho o assalto, mas em 1902 começou a fomar-se um grupo de moços sob o seu estandarte. Havia Freud angariado pouco a pouco um novo círculo de amigos, em substituição dos que tinham fugido com horror da sua pessoa contaminada maioria desses amigos novos eram colegas. Mandavam-lhe doentes, chamavam-no a conferência e procuravam difundir-lhe as obras. Alguns deles submeteram-se pessoalmente ao tratamento psicanalítico. E um, em particular, demonstrou sua gratidão formando uma agremiação de moços independentes, com a expressa finalidade de estudar, praticar e divulgar a psicanálise.

O grupo começou a reunir-se regularmente em casa de Freud, todas as quartas-feiras à noite, para discutir pontos de psicanálise. Cada um relatava suas observações e expunha os casos da sua clínica. Freud presidia. Lia-se uma comunicação, e todos os presentes deviam tomar parte na discussão. Foi este o núcleo da Sociedade Psicanalítica de Viena. Entre os seus componentes estavam Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Otto Rank e Isidore Sadger.

Foi-se alargando gradualmente a influência deste grupo. As doutrinas freudianas começaram a ganhar terreno na consciência da classe médica. Viena ia sendo conquistada pouco a pouco, e também no estrangeiro a psicanálise fazia progressos. Como era de esperar, cada avanço era acerbamente impugnado pela ciência oficial. Nenhum país foi mais veemente no ataque a Freud do que a própria Áustria. Lançou-se mão das armas mais detestáveis. Os apóstolos foram alvo de opróbrio, de baixas injúrias e desalmadas calúnias. Em torno da nova ciência parecia ter-se erguido uma muralha de condenação.

 Mas em 1906 houve uma súbita mutação de cena. A psicanálise tinha ganho terreno, inadvertida pelos seus próprios promotores. Veio da Suíça a notícia de uma grande vitória para a teoria.

 

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A emoção de Darwin, ao receber a célebre carta de Alfred Russel Wallace naquele dia memorável de junho de 1858, não podia ter sido maior que a de Freud quando lhe chegou às mãos uma carta enviada por Eugen Bleuler, o grande clinico suíço. Wallace escrevera a Darwin solicitando-lhe auxílio: o caso de Freud foi algo diferente. Bleuler escrevia ao teorista de Viena para informá-lo de que a psicanálise estava sendo assiduamente estudada na Suíça, e de'que a Clínica Burgholzli de Zurich a empregava com proveito. Para um homem empenhado em luta tão prolongada e desigual, isto era um estímulo de primeira ordem, que seria reforçado ao depois (janeiro de 1907) com a delegação, pela clínica de Zurich, do dr. Eitington a Viena, para estudar nas próprias fontes o método freudiano.

 Destes sucessos originou-se volumosa correspondência entre Freud e os seus prosélitos suíços. Particularmente prestimosas foram as atividades de Karl Gustav Jung, então interno da Clínica Burgholzli, o qual convocou o primeiro Congresso Psicanalítico de Salzburgo, incluindo representantes de Genebra, Londres e Estados-Unidos. Predominaram aí, como era natural, os grupos de Viena e de Zurich. Sem falar em seus fecundos debates, o congresso tornou-se notável por haver fundado o primeiro Jahrbuch (anais) de estudos psicanalíticos, redigido por Freud e Bleuler e editado por Jung.

Conquistadas assim para a psicanálise as merecidas credenciais de ciência internacional, Freud, em colaboração com Jung, dispôs-se a levar avante a batalha. No outono de 1909 foram ambos aos Estados Unidos, para fazer conferências sobre psicanálise no Instituto Politécnico de Worcester. Infortunadamente, o excessivo entusiasmo dos americanos causou mais dano que proveito à teoria. Ninguém o compreendeu melhor do que Freud. Sua viagem à América decepcionou-o. Tornou logo a Viena, para prosseguir nas pesquisas e no combate.

Neste começos, as ideias freudianas se iam disseminando por todo o mundo. Em 1911, segundo Havelock Eliis, as teorias do médico vienense eram pregadas na Áustria, Suíça, Estados-Unidos, GrãBretanha, India, Canadá e Austrália. Criaram-se ramos da associação em Zurich, Berlim, Viena, Munich, Budapest e Londres. A Associação Psicanalítica Americana foi fundada em 1911 por A. A. Brill.

A psicanálise, que deixara de ser obra exclusiva de Freud, encontrou outros campeões, outros investigadores para comprovar e enriquecer as descobertas que o tinham conduzido à formulação da teoria. Assumiu esta o aspecto definido de um movimento cooperativo. O campo era tão vasto que Freud fora obrigado a deixar intacta uma parte considerável. Seus discípulos tomaram a si a exploração desses territórios virgens.

Mas Freud conservou-se na dianteira do movimento. Assegurada a vitória, não pensou em descansar sobre os louros. Não quis transferir para os ombros dos numerosos discípulos que angariara, e a quem respeitava e admirava, a missão de fazer avançar a ciência criada por ele. De qualquer modo, a vitória não fora conquistada de todo. Havia ampla colheita a fazer de novos argumentos, provas e pormenores. Ele voltou-se, pois para o desenvolvimento daquelas ideias que, no primeiro arranco para a grande meta, só pudera examinar de relance.

Uma destas particularidades era a teoria da libido. Definira-a ele originariamente como sendo a energia ligada aos instintos sexuais, mas fora obrigado a modificar e a expandir este conceito. A sexualidade infantil levou-o a reinterpretar a libido em termos que, ultrapassando amplamente as expressões do desejo adulto, incluíam a vasta escala de manifestações emocionais agrupadas sob os nomes de amor, amizade, afeição e paixão. Verificou que os seres humanos possuíam em próprio a faculdade da sublimação, que lhes torna possível descarregar uma porção da sua libido por vias outras que não a sexual. A energia do atleta, do homem de negócios, do profissional, do artista, foi em consequência tida como uma transferência da libido.

 De um novo conceito que formara sobre a sexualidade infantil, extraiu Freud uma explicação mais direta da sublimação. Antes de se constituir o complexo de Édipo, antes mesmo do indivíduo ter suficiente conciência de si mesmo para poder distinguir entre o pai e a mãe, havia uma fase em que a libido ficava encerrada no eu. A esta fase chamou Freud narcisismo, evocando o mito grego do jovem Narciso, que se enamorou da própria imagem refletida num lago. Este estádio narcísico, ao que ele verificou, jamais desaparece por completo em toda a vida de uma pessoa, mas persiste debaixo de várias manifestações.

 

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Em menos tempo que o que medeia entre duas gerações, a teoria de Freud alastrou-se pelo mundo inteiro. Com trinta anos apenas de existência, já deu frutos no campo da educação, da medicina, da antropologia, da filologia, da filosofia, da biologia, da mitologia, da história, da religião, da estética, da sociologia, das leis, e em muitos outros campos de pesquisa científica. Sua influência se fez sentir em todos os ramos da literatura, deixando cunho particularmente profundo na biografia e no drama.

 A 6 de maio de 1936 o mundo festejou o octogésimo natalício de Freud. A-pesar-das dificuldades que há em aquilatar a obra de um contemporâneo, as principais publicações científicas reconheceram generosamente a influência universal das suas ideias. Do anonimato havia-se ele alçado pouco a pouco à popularidade e à fama. A cidade de Viena fê-lo cidadão honorário, é em 1935 Freud foi eleito membro, também honorário, da Sociedade Médica Real de Londres. Reconhece-se hoje francamente que “nenhum outro homem deu maior estímulo ao estudo e à compreensão dos fenômenos psicológicos”. No seu editorial dedicado ao aniversário, o Journal of the American Medical Association expressou-se nestes termos: “A posição de Freud como grande criador está consolidada. As grandes épocas, na medicina, são definidas pelos grandes inovadores. Assim como nós ligamos o nome de Vesalius à anatomia, o de Harvey à fisiologia, o de Virchow à patologia e o de Pasteur à bacteriologia, Freud virá a ser olhado como o inaugurador de uma nova orientação em psiquiatria – um analista dotado de "profunda compreensão da mentalidade primitiva".

 A psicanálise fez mais do que fornecer novos materiais à ciência, à arte e à literatura. Com a sua interpretação inédita dos fenômenos mentais, deu-nos uma nova concepção do mundo.

 Um de seus grandes efeitos foi demonstrar e impor irrefutavelmente o conceito de que tudo na natureza tem um sentido. Foi ainda mais longe, fazendo com que até os nossos pequenos lapsos de linguagem, os gestos insignificantes de nossas mãos, as imagens fantásticas de nossos sonhos, assumissem importância e valor. Apagou assim da vida quotidiana o cunho de trivialidade, enchendo-a de intenções e significações.

 A literatura e a sua crítica foram enriquecidas em grau superlativo pelas idéias freudianas. E' quase supérfluo citar exemplos tão conspícuos como o Ulisses de James Joyce, a Recordação das Coisas Passadas de Marcel Proust, as novelas de Arthur Schnitzler, os dramas de Eugene O'Neil, a poesia de Robinson Jeffers, a crítica de Ludwig Lewisohn, a Montanha Mágica de Thomas Mann obras todas que devem muito de sua orientação e uma parte considerável do seu material, ou diretamente a Freud, ou à geral invasão da atmosfera intelectual pela essência da doutrina freudiana.

Também é digno de relevo o fato de haver Freud demonstrado que a mente normal está submetida às mesmas leis e mecanismos que a anormal, constituindo a diferença no fato de que o neurótico cede a uma tensão que a personalidade normal é capaz de vencer e ajustar às suas conveniências. Â acusação, que se lhe faz, de tentar provar que todo o normal é patológico, pode Freud responder que, por outro lado, também demonstrou ser normal o próprio patológico. [Osório diz: digo isso faz tempo! Muito antes dessa leitura sobre Freud, realizada em junho de 2020]

 

Afim de condensarmos num parágrafo a sua contribuição para a inteligência da natureza humana, frizaremos que Freud transformou por completo a ciência da psicologia, ciência que era antes dele um seco e árido acúmulo de fatos mal compreendidos e sem utilidade. Encontrou a psicologia no estado de um mecanismo morto e fê-la funcionar; encontrou-a automática e mudou-a em dinâmica. Freud fez frutificar os seus trabalhos, primariamente uma simples técnica de laboratório, num guia da vida humana, do seu comportamento e da procura da felicidade, Por tudo isto foi ele chamado o Colombo do Espírito!

 

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Mas o sistema de Freud, não passou sem sofrer rudes ataques. Tinham estes, naturalmente, por alvo principal o papel preponderante que ele dava à sexualidade. Não há negar, contudo, que Freud pagava muitas vezes pelas temeridades e inexatidões dos seus discípulos [Osório diz: o mesmo se aceita de Sócrates, mas dos Sofistas não! A estes se nega a não responsabilidade pelos atos de seus discípulos]. Só depois de publicado o seu último livro foi que muitos críticos reconheceram não haver ele afirmado jamais que todos os sonhos tivessem origem sexual. Era uma generalização dos seus discípulos, pela qual o responsabilizavam [Osório diz: o autor não informa se Freud chegou a repreender seus discípulos ou calou-se!]. É verdade que ele deu muito mais relevo à sexualidade que qualquer de seus antecessores: era natural, conforme frisou Freud, que os distúrbios da neurose nascessem do instinto sexual, por ser esta precisamente a área sobre que se exerce a repressão. Não há inibição das outras funções naturais do corpo. Era, por certo, de esperar que a emoção a que se recusa livre expressão fosse a fonte de todas as perturbações que surgissem.

A tendência freudiana para a impressão nas definições foi debatida por Havelock Ellis. Termos como narcisismo, auto-erotismo, complexo de Édipo, segundo apontou Ellis, são frequentemente empregados na literatura freudiana com variadas conotações, se bem que nos escritos do próprio Freud toda modificação do sentido de uma palavra seja explanada antes de se adotar.

Foi sempre necessário agrupar e interpretar, embora às tentativas, o material bruto de uma ciência antes que se pudesse aspirar a uma visão compreensiva. Com este propósito, recorre o cientista à hipótese auxiliar - a explicação provisória que introduz uma aparência de ordem no caos. Esta hipótese poderá ser rejeitada posteriormente. Ac homem que dela se utiliza cumpre, já se vê, fazê-la flexível para que possa adaptar-se aos novos fatos que surgirem de futuro. Temporariamente, desempenha a função de um andaime. Tais "hipóteses experimentais” encontram-se em muitos conceitos de Freud, como o Ego, o Id, o preconciente, e as várias sugestões apresentadas por ele na esfera da religião e da literatura.

Os críticos de Freud foram muitas vezes tardos em compreender o papel da hipótese experimental. Estabelecer o preceito dogmático de que em ciência não é lícito fazer generalizações antes que estas se possam demonstrar e estabelecer em todos os seus particulares, é, reconhecidamente, rigorismo excessivo [Osório diz: parece que o autor muda ao sabor das suas simpatias! Ele reclama que as teorias de Freud não foram aceitas inicialmente, mas agora, praticamente, justifica que teorias não podem ser aceitas sem maiores pesquisas e testes!]. Se Copérnico se houvesse pautado por este dogma, nunca teria elaborado a sua teoria; e seguramente Hutton, Malthus, Marx e outros se teriam perdido numa selva de dados contraditórios. É preciso fazer suposições. E a faculdade genial de fazê-las o mais próximas que é possível da realidade constitui a marca distintiva do espírito teorizador.

Fonte: Arquitetos de ideias, Ernest R. Trattner, tradução de Leonel Vallandro, Globo, Porto Alegre, 1944, p. 277/301.