Escritos de Amigos

Você está aqui: Home | Artigos

Em defesa do positivismo jurídico

 Direito e Justiça cegueira

Não é necessário frequentarmos Faculdades de Direito para nos darmos conta de que quem faz as leis é o Legislativo e quem as aplica são os juízes. Em nosso tempo – hoje, aqui, agora – o legal e o justo (Direito e justiça) não se superpõem. Fazer e aplicar as leis (lex) e fazer justiça (jus) não se confundem. O Direito é um instrumento de harmonização/dominação social e a justiça não existe por aqui, só floresce no Paraíso!

 

A cisão enunciada na frase atribuída a Cristo – a César o que é de César, a Deus o que é de Deus – torna-se definitiva no surgimento do chamado Direito moderno, erigido sobre uma afirmação a atribuir-se a Creonte, no tempo da paideia: prefiro a ordem à justiça! Em suma: os homens, na esfera em que estamos, não produzem justiça, só lá em cima há jus!

 

As leis produzidas pelo Estado prestam-se a assegurar ordem, segurança e paz, especialmente segurança em que os interesses dos mais fortes sejam assegurados... Não obstante devesse ser assim, cá entre nós, nos dias de hoje – como na canção de Roberto Carlos –, juízes sem preconceito, sem saberem o que é o Direito, volta e meia fazem suas próprias leis.

 

Há uma distinção, fundamental, entre a dimensão legislativa e a dimensão normativa do Direito. Texto e norma não se identificam. A norma jurídica é produzida pelos juízes ao interpretarem textos normativos, resulta da interpretação!

 

Mais, interpretação e aplicação não se realizam autonomamente: o intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso, de sorte que a interpretação consiste em tornar concreta a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação.

 

A norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do Direito. Caminhamos do texto até a norma jurídica, em seguida dela até a norma de decisão, a que determina a solução do caso. Só então se dá a concretização da norma, que envolve também, necessariamente, a compreensão da realidade. Pois a norma é determinada histórica e socialmente.

 

O texto normativo é uma fração, não é ainda a norma. É abstrato e geral. A realidade constitui o seu sentido, que não pode ser perseguido apartado da realidade histórico-social. Na norma estão presentes inúmeros elementos do “mundo da vida”. O ordenamento jurídico é conformado pela realidade.

 

Outro ponto essencial está em que os juízes não podem, os juízes devem, em cada caso, fazer o que devem fazer – não o que os outros esperam que eles façam. A interpretação é uma prudência, o saber prático, a phrónesis a que refere Aristóteles na Ética a Nicômaco. Daí falarmos em jurisprudência, não em jurisciência. A prudência é razão intuitiva, que não discerne o exato, porém o correto – não é saber puro, separado do ser. O Direito é uma prudência!

 

Eis, pois, a regra: a decisão jurídica correta a ser tomada em cada caso há de ser aquela que o juiz entende, em sua consciência, que deve (não que pode) tomar. O grave está em que cada caso comporta mais de uma solução correta, nenhuma exata.

 

Além de tudo, a interpretação do Direito não consiste somente em transformarmos textos em normas. O intérprete há de compreender os textos e a realidade, pois o Direito é um dinamismo contemporâneo à realidade. Ao intérprete – vinculado pela objetividade do Direito, não pela minha ou pela sua justiça – incumbe não apenas ler, compreender os textos, mas também a realidade.

 

Mas não é só, pois há uma diferença essencial entre justiça e Direito, lex e jus. Os juízes aplicam o Direito, não fazem justiça. O que caracteriza o Direito moderno é a objetividade da lei, a ética da legalidade. Não me cansarei de repetir que os juízes interpretam/aplicam a Constituição e as leis, não fazem justiça.

 

Por conta disso tenho insistido no fato de que tenho medo dos juízes. Em especial dos juízes dos nossos tribunais, que insistem em substituir o controle de constitucionalidade por controles de outra espécie, quais os da proporcionalidade e razoabilidade das leis e da ponderação entre princípios. Enquanto a jurisprudência do STF estiver fundada nessa ponderação – isto é, na arbitrária formulação de juízos de valor – a segurança jurídica estará sendo despedaçada! Ao leitor interessado no assunto sugiro que leia meu voto na ADPF 101, cometido ao tempo em que pratiquei a magistratura. Felizmente, o tempo não volta para trás e hoje desfruto a felicidade de me aproximar desses tribunais unicamente como advogado. Há uns meses – não resisto à tentação de contar o que então aconteceu –, saindo de um almoço num restaurante ao lado de minha casa, um sujeito me cumprimentou chamando-me de “ministro” e respondi dizendo-lhe que estava equivocado, aquele outro barbudo é meu sósia!

 

Os juízes aplicam o Direito, não fazem justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender Direito, não a justiça. Esta, repito, é lá em cima. Apenas na afirmação da legalidade e do Direito positivo a sociedade encontrará segurança e os humildes, proteção e garantia de seus direitos de defesa.

 

A independência judicial é vinculada à obediência dos juízes à lei. Os juízes, todos eles, são servos da lei. A justiça absoluta – aprendi esta lição em Kelsen – é um ideal irracional; a justiça absoluta só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus.

 

Ao cabo destas expansões o que me dá paz é ler, na Bíblia, o profeta Isaías (32,15-17): quando alcançarmos a Restauração Final, “uma vez mais virá sobre nós o espírito do alto. Então o deserto se converterá em pomar, e o pomar será como uma floresta. Na terra, agora deserta, habitará o direito, e a justiça no pomar. A paz será obra da justiça, e o fruto da justiça será a tranquilidade e a segurança para sempre”. Move-me a esperança em que a defesa do positivismo do Direito me faça no futuro chegar lá.

Autor: EROS ROBERTO GRAU, ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, FOI MINISTRO DO STF (O Estado de S. Paulo, 12 Maio 2018).

 

 

Fonte da imagem:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=inicial.

 

“É preciso estudar até morrer”!

 

 

Faz tempo que deixei de assistir novelas, eu que já fui um “novelista militante”!

 

Sendo assim, com má vontade fui ler uma entrevista de Aguinaldo Silva, um autor de novelas (aliás fiquei sabendo na matéria que a novela “Roque Santeiro” é de sua autoria, eu que jurava ser do Dias Gomes! Lendo e desaprendendo!), publicada em um jornal, quando me deparei com essa pérola dita por ele:

 

O que falta?

 

Estudar, os dramaturgos precisam estudar sempre. Veja os americanos. Eles são bons por isso. Ninguém escreve uma peça que vai ser produzida sem que tenha passado por uma escola, sem que tenha escrito muito e principalmente que tenha errado muito. E eu até hoje estudo. Acabo de comprar um livro da Stella Adler sobre a entrada do realismo no teatro americano, quero entender esse processo. Admiro muito aquela geração que fez da prática uma forma de ensinar. É preciso estudar até morrer.”

 

Fiquei moirrendo de vontade de voltar às novelas por conta dessa linda lição de vida do autor!

 

Obrigado por essas palavras Aguinaldo Silva! Por elas, você já está na Academia Osoriana de Letras, cuja sede fica no meu coração!

 

Inté,

 

Eis a entrevista completa:

 

 

“ArCênico: 'Sinto falta hoje de uma boa dramaturgia brasileira', diz Aguinaldo Silva

Dramaturgo, escritor, roteirista e jornalista falou sobre a abertura de seu teatro em SP

Prestes a completar 75 anos em 7 de junho, o autor das novelas Tieta e Roque Santeiro passeia orgulhoso pelo teatro que leva seu nome, Casa Aguinaldo Silva de Arte, ou simplesmente Casa. Pernambucano de Carpina, Silva voltou, no ano passado, a morar em São Paulo depois de 30 anos e trouxe para a cidade seus cursos de formação de atores para teatro, cinema e televisão, além do masterclass de roteiro.

 

O autor falou ao Estado na véspera da abertura do teatro, na rua Major Sertório, e criticou a dramaturgia brasileira contemporânea. E adianta que, em seu teatro, deve entrar na programação um standup comedy mensal chamado A Noite das Mina, só com travestis. “Para manter o espírito da região”, brinca.

 

Por que decidiu financiar a nova peça de Marilia Gabriela?

 

Somos muito amigos e senti que ela tinha se apaixonado pela peça (‘Casa de Bonecas - Parte II’, de Lucas Hnath, no Sesc Consolação, no início de agosto). Como estava encontrando certa dificuldade para montar, pedi para ler e fiquei empolgadíssimo. Acho um crime essa peça não ser montada aqui e, mais ainda, da maneira ideal. Nós temos muitos hipermilionários que não fazem isso e, alguns, depois de insistirmos bastante, decidem contribuir por meio da Lei Rouanet, o que não adianta muita coisa. Eu posso fazer isso, posso fazer meus cursos masterclass e até financiar prêmios de roteiro, como também já banquei. Consegui coisas na vida e acho que preciso de alguma maneira devolver. Quem sabe abre um caminho pra gente lá em cima? (aponta o céu)

 

Tem ido ao teatro?

 

Sempre, mas, como tem muita peça em cartaz, geralmente vou por indicação. Vejo tudo o que posso, menos musicais. Está se gastando muito dinheiro com musicais pobres em qualidade em que se faz muito carnaval em torno deles. Te pergunto: para quê um musical sobre Ayrton Senna (‘Ayrton Senna, o Musical’)? Não tem dramaturgia, são só fogos de artifício.

 

Estamos sem uma boa dramaturgia hoje?

 

Acho que sim, sinto falta hoje de uma boa dramaturgia brasileira. De vez em quando, vemos algumas coisas interessantes, como uma peça que assisti na SP Escola de Teatro, na praça Roosevelt, chamada As Quarenta e Duas. Era uma peça linda, tão bem ensaiada, produzida e dirigida que era hipnótico. Mas não tinha dramaturgia, apesar de linda. O que era aquilo, afinal? Não era nada. A gente vê muito isso. Ou coisas como O Diário da Frida Kahlo. Aquilo não é teatro, né? Simplesmente transpor o texto do diário para o palco e não criar uma dramaturgia não é teatro. A gente tem muito isso. Claro que há coisas muito boas, mas é preciso garimpar.

 

O que falta?

 

Estudar, os dramaturgos precisam estudar sempre. Veja os americanos. Eles são bons por isso. Ninguém escreve uma peça que vai ser produzida sem que tenha passado por uma escola, sem que tenha escrito muito e principalmente que tenha errado muito. E eu até hoje estudo. Acabo de comprar um livro da Stella Adler sobre a entrada do realismo no teatro americano, quero entender esse processo. Admiro muito aquela geração que fez da prática uma forma de ensinar. É preciso estudar até morrer.”

 

Fonte: OESP, 24.05.18.

 

 

A despeito de elucidativo em poucos pontos, o artigo do jornalista citado no título deste escrito é muito banal! Chega quase a ser bobo!

 

O autor afirma que a Itália funciona com ou sem governo, o que é uma tremenda falta de visão ou má-fé, pois não pode ser atribuída sua afirmativa a sua "ignorância", já que ignorante ele não o é!

 

Clóvis Rossi chega a ser injusto, pois omite aqueles que fazem a Itália funcionar "mesmo sem governo", como ele diz.

 

E quem faz a Itália funcionar mesmo "sem governo"?

 

Você que é imigrante, tente entrar na Itália "sem governo" para ver o que acontece!

 

Vou ficar neste único exemplo para não ser cansativo.

 

É claro que a Itália, desde a data citada pelo jornalista, NUNCA ficou sem governo, como ele diz!

 

Lá estão os médicos, os bombeiros, os juízes e a polícia, por exemplo, a cumprirem o seu papel.

 

E quando tais Instituições cumprem com seu dever, não é o Estado governando? Claro que sim!

 

O que acontece, muitas vezes, é a Itália ficar, momentaneamente, sem um chefe de governo, o que é quilometricamente diferente de "não ter governo"!

 

A injustiça do jornalista, a que me referi, é praticada contra os servidores públicos italianos, quem são quem faz o governo não só existir, mas funcionar.

 

O corpo de servidores públicos italianos não deixam que, nas ocasiões de crises políticas quanto à escolha dos chefes de governo, o "governo não exista", ao contrário, são a prova de que o governo existe sim!

 

Para que educar o cidadão mostrando que os servidores públicos são úteis a eles, não é senhor Clóvis? Melhor mantê-los na ignorância para que as reformas que interessam às empresas jornalísticas sejam aprovadas com o incentivo de muitos incautos.

 

Parabéns pela desinformação!

 

Inté,

 

 

Eis o artigo ao qual me refiro:

Itália funciona, com ou sem governo

 

A sociedade toca a vida, seja qual for o governante

 

A Itália poderia servir como estudo de caso para o desencantado Brasil. Trata-se do país provavelmente recordista mundial de instabilidade política, a ponto de ter tido 65 governos nos 72 anos de República, aliás comemorados neste sábado (2).

Não obstante, o país progrediu extraordinariamente nesse longo período. Saiu da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) derrotada, humilhada e devastada.

Em tempo relativamente curto, em se considerando a destruição sofrida, recuperou-se a ponto de se tornar a sexta maior economia do mundo.

Estatísticas frias à parte, a qualidade de vida é admirável.

Diz da Itália, por exemplo, George Steiner, ensaísta e crítico literário, professor na mitológica Universidade de Cambridge: “Para o melhor ou para o pior, sob uma legião de governos conduzidos por um punhado de políticos excepcionalmente hábeis e cínicos, a Itália tem sido uma das mais estáveis sociedades no Ocidente. E, talvez, a mais humana”.

Desconfio que Steiner está se referindo à “dolce vita”, essa maneira despreocupada e tranquila de levar a vida.

Em outro ensaio, este sobre a Europa, o crítico diz que a Europa se define por seus cafés, desde “o café favorito de [Fernando] Pessoa em Lisboa” até “os balcões [de cafeterias, claro] de Palermo”, no sul da Itália.

Completa: “Desenhe o mapa dos cafés e você terá o essencial da ideia de Europa”. Da ideia de Itália, também. Pode ser uma visão ingênua, talvez elitista, mas para quem nasceu, cresceu e viveu a maior parte do tempo no frenesi de São Paulo, é uma ideia extremamente sedutora —capaz de sobrepor-se ao caos político que ocupa as manchetes.

É sintomático que, depois de uma semana de turbulência nos mercados financeiros, a bolsa de Milão tenha subido na sexta-feira (1º) apesar de dois partidos populistas — inimigos dos mercados — terem finalmente assumido o governo de número 66 da Itália no pós-guerra.

É por essa resiliência da “ideia de Itália” que digo que pode servir de exemplo para o Brasil.

Suspeito que a força da sociedade italiana e de sua cultura permita ao país viver razoavelmente bem apesar dos governos que entram e saem ao ritmo de motel.

A sociedade toca a vida, com ou sem governo. No Brasil, fica eternamente à espera de que um governo faça o país andar (ou, na maioria das vezes, o arruine).

O problema, agora, é saber se essa “ideia de Itália” consegue resistir à coligação entronizada neste sábado entre um populismo de esquerda (o Movimento 5 Estrelas) e um de direita, ainda por cima, xenófobo e fascistoide (a Liga, ex-Liga Norte).

É contra a natureza. Pesquisa do Centro Pew mostrou, no fim de 2017, que apenas 13% dos italianos adultos têm uma opinião favorável tanto da Liga como do Movimento 5 Estrelas. Não é, pois, um casamento por amor. Pior: 46% têm visão desfavorável de ambos.

No caso da imigração — cavalo de batalha da Liga — 75% de seus simpatizantes consideram os imigrantes um peso, quando, para 40% dos votantes do Movimento 5 Estrelas, são uma força para a economia.

Além disso, os dois movimentos declararam guerra à Europa, à qual a Itália está atada por compromissos que transcendem governos e que limitaram eventuais aventuras dos governantes.

Se a Itália resistir também a essa nova aventura, precisaríamos estudar seus segredos, cafés à parte."

 

Fonte: Clóvis Rossi (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi/2018/06/italia-funciona-com-ou-sem-governo.shtml)

A felicidade!

(Sócrates e Platão e o nada, como sempre!) 

Felicidade Tunica e eu

SÓCRATES: "COMO PODEREMOS TER FELICIDADE?"

 

Logo em um dos primeiros diálogos, Eutidemo, escrito sem dúvida um pouco antes de 400 a.C., a questão é colocada diretamente: "Será que na verdade não desejamos todos nós, os homens, ter felicidade?" Seria insensato negá-lo, responde Clínias. "Pois bem, passemos então ao que se segue: já que desejamos ter felicidade, como poderemos ter felicidade?"2 E esse é o início de 2.400 anos de debates. Pela primeira vez, sem dúvida, é expressa a afirmação do desejo universal e legítimo de uma felicidade terrestre. Resta saber por quais meios se pode satisfazer esse desejo. Sócrates enumera, para rejeitá-las, todas as receitas populares: riqueza, saúde, beleza, poder, nascimento em berço de ouro; nenhum desses bens, que não dependem de nós, poderia garantir a felicidade. Apenas a sabedoria pode. Mas a sabedoria pode ser aprendida? Como é frequente nos diálogos platônicos, a discussão derrapa; digressões, problemas correlatos, distinções encobrem o assunto e o Eutidemo, o primeiro grande debate sobre os meios para ser feliz, termina sem resposta [Osório dia: Platão e o nada!]. A coisa está mal engatada.

 

Platão voltará ao tema, alguns anos mais tarde, no Górgias, de um ângulo um pouco mais teórico. O resultado não é muito mais convincente. A felicidade, diz Sócrates, se experimenta na satisfação de um desejo, e "não é acertadamente que se fala da felicidade das pessoas que não conhecem a necessidade", o que Cálicles aprova: "Se for assim, efetivamente, as pedras, na verdade, gozariam de uma felicidade sem igual".3 Mas o desejo é uma falta; logo, um sofrimento; enquanto não é satisfeito, a felicidade está excluída. Porém, uma vez satisfeito, não há mais desejo, e se a felicidade é o fato de satisfazer um desejo, se não há mais desejo, não há mais felicidade. Todos podem constatar: se tenho fome, desejo comer, não estou feliz; quando comi, não tenho mais fome, estou saciado, não desejo mais, e também não estou mais feliz. E a mesma coisa com a sede, o sexo, o cansaço. No máximo, pode-se dizer que durante o brevíssimo processo de satisfação do desejo, experimento o prazer. Mas prazer não é felicidade, pois ali se mistura uma falta: "Não é, portanto, o fato de experimentar um prazer que os faz ter felicidade".4 O paradoxo é que a felicidade precisa do desejo, ao passo que o desejo exclui a felicidade. Estamos novamente no impasse.

 

Platão estuda mais uma vez o problema em um diálogo da maturidade, O banquete. Por uma vez, é um banquete sério: nada de álcool - bem, não muito -, ainda mais que os participantes estão mal recuperados da bebedeira da véspera: “Todos eles combinaram de não consagrar a presente reunião para se embriagar, mas beber apenas como entretenimento”. Nada de mulheres, tampouco: mandam a flautista “tocar flauta para ela mesma”. É que o assunto da discussão é importante e muito masculino: o elogio de Eros, o deus do Desejo e do Amor. Os participantes rivalizam em entusiasmo por essa simpática divindade. Amor, diz Fedro, é o deus "mais poderoso para conduzir os homens à aquisição da virtude e da felicidade";5 só ele nos proporciona “a felicidade completa”, confirma Erixímaco; isso é verdade, diz Pausânias, mas na verdade há dois Eros: o "popular", vulgar, que inspira em alguns o desejo até pelas mulheres, e o Eros nobre, que proporciona a felicidade àqueles que “não amam senão os meninos assim que começam a ter inteligência, o que acontece mais ou menos quando a barba desponta”.6 Aristófanes aprova: “O meio para nossa espécie alcançar a felicidade seria, para nós, dar ao amor seu acabamento, isto é, que cada um tivesse relações com um amado que seja propriamente o seu”.7 E sobre isso ele tem sua teoria: o célebre mito dos andróginos. No início, o ser humano era duplo: quatro pernas, quatro braços, dois rostos, dois órgãos sexuais, ora, idênticos, ora opostos, macho e fêmea. Depois os deuses, sempre desconfiados em relação àquele ser um pouco forte demais com seus oito membros e seus dois cérebros, decidiram cortá-lo em dois, reorganizando a disposição dos órgãos, operação delicada da qual Aristófanes, que com certeza bebera um pouco além da conta, nos dá uma descrição detalhada extremamente cômica. Desde então, todo mundo procura sua metade para unir-se a ela, duas metades às vezes masculinas, às vezes femininas, às vezes um macho e uma fêmea; e a felicidade nada mais é do que encontrar sua metade.8

 

Tudo isso é muito interessante, diz Sócrates, que então interfere e expõe seu próprio mito, pelo qual modera o entusiasmo de seus interlocutores a respeito da felicidade. Sua história não deixa nada a desejar em extravagância em relação à de Aristófanes. Quando do festim de aniversário de Afrodite, conta ele, Expediente, o filho da Invenção, fica completamente bêbedo; chega a Pobreza, que mendiga; vendo o estado de Expediente, ela diz a si mesma que seria bem útil ter um filho dele. Ela o seduz e assim foi concebido Eros, filho da Pobreza e do Expediente. Meio humano, meio divindade, é um "demônio", um espírito intermediário. Como filho da Pobreza, ele é desejo, desejo dos bens divinos que são o Belo e o Bem, isto é, desejo de felicidade. Como filho do Expediente, nunca lhe faltam estratagemas para atingi-la, mas, sendo apenas semideus, ele se engana frequentemente de objetivo. O desejo nos faz crer que a felicidade se encontra lá onde não está, nos bens materiais, no sexo, na violência. Para atingir a verdadeira felicidade, a posse Belo e do Bem, o desejo deve ser educado, processo longo e sofrido que deságua na sabedoria. No Fedro e em A república, Platão utiliza uma metáfora erótica adequada: o apaixonado pela sabedoria, ao fazer amor com a verdade, atinge o orgasmo da felicidade.

 

Não há certeza de que essas especulações nos ajudem muito a ser felizes. Aliás, a discussão é interrompida bruscamente pela chegada de um grupo de festeiros conduzidos por Alcebíades: é a irrupção das paixões e dos prazeres grosseiros, diante dos quais a razão e a espiritualidade não têm grande peso. De manhã cedo, todos os convivas estão adormecidos e curtem sua ressaca, menos Sócrates, que continua a discorrer sobre a comédia e a tragédia perante os últimos ouvintes, que sucumbem por sua vez:

 

Eles se deixavam forçar, sem acompanhar muito bem, e deixando pender a cabeça. Foi Aristófanes quem adormeceu primeiro, depois Agaton, quando então já era dia. Depois disso, tendo-os feito dormir como crianças, Sócrates se levantou e foi embora.9

 

Assim, para Platão, a felicidade está na busca do Bem e do Belo, o que é vago e concretamente não leva muito longe. Mas ele viu bem que essa exigência de sabedoria pessoal não bastaria: a felicidade depende também de todo um contexto político, econômico e social. Cabe ao Estado criar condições favoráveis à felicidade dos cidadãos. O principal mérito de Platão é ter sido o primeiro a ver que a felicidade é um problema cuja solução é tanto pessoal como coletiva, no cruzamento da Psicologia com as Ciências Sociais, a Moral e a Política. Será muito difícil até mesmo para um sábio ser feliz em um Estado anárquico ou ditatorial onde reina a miséria; ao contrário, o habitante de um Estado harmonioso, justo e próspero não poderá ser feliz se for depressivo ou dissoluto. Uma das lacunas nos estudos sobre a felicidade será com frequência interessar-se apenas por um dos dois fatores: o individual ou o coletivo. Platão abordou os dois, infelizmente de maneira pouco convincente. Acabamos de ver que sua concepção de felicidade em termos de moral individual chegava a dizer seja que a felicidade se autodestrói pela satisfação do desejo, seja que ela só pode ser alcançada por uma ínfima elite depois de longos e sofridos esforços na busca muito aleatória do Belo e do Bem.

 

PLATÃO: A FELICIDADE PELA VIRTUDE OBRIGATÓRIA

 

Seu estudo do aspecto coletivo não é mais encorajador. Para ele, o regime menos apto a garantir a felicidade dos cidadãos é a democracia. Esta não pode operar senão pela demagogia, que favorece a banalização dos vícios, a licença dos modos, e que escraviza o povo ao lhe dar a ilusão da liberdade. Os dirigentes, incompetentes e corruptos, monopolizam o poder embotando o povo pelo pão e pelos jogos, o que é contrário às exigências rígidas da felicidade pela Moral. O que é necessário é um regime autoritário dirigido por sábios e filósofos que tenham os meios de impor as medidas morais que levam à felicidade. Uma espécie de despotismo esclarecido ou mesmo tirania: o que poderíamos censurar na tirania a serviço do Bem? Não nos esqueçamos de que Platão pertence a uma família aristocrática reacionária da qual vários membros [Osório dia: Platão era tio de Crítias, um dos tiranos e sobre o qual ele nunca escreveu uma linha, embora esse seu sobrinho fosse, também, um sofista, exceto quando à cobrança de honorários, que não exigia!] fizeram parte dos Trinta Tiranos que acabaram com a democracia ateniense em 404-403a.C, e que na sequência, em Siracusa ele apoiou o tirano Dionísio, de quem gostaria de ter sido o mentor. Após fracassar, de volta a Atenas, funda a Academia, onde ensina os outros como ter sucesso onde ele próprio falhou. [Osório diz: eis o retrato de Platão]

 

Seu regime ideal, a tirania dos sábios, que de certa forma tornaria obrigatória a felicidade, foi exposta em A república, a primeira grande utopia da literatura ocidental. A utopia é um tipo de substituição da idade de ouro, um sonho de sociedade feliz, elaborada de início em oposição à situação presente - percebida como ruim - para eliminar os males. A utopia carrega a marca de uma classe social, que embora seja democrática, anárquica, aristocrática ou tirânica, é sempre um mundo hiperorganizado, planejado. Ela é concebida como um espaço limitado, isolado, quase sempre cercada por um muro, ou fica em uma ilha. Mesmo em suas pretensões mais libertárias, elimina a individualidade, pois tem dois inimigos: o livre-arbítrio e o tempo. Sociedade perfeita, não tolera a evolução, que não pode ser outra coisa senão degradação: a perfeição não se melhora. Ela está, portanto, paralisada em um eterno presente. Por outro lado, visto que é regida por leis perfeitas, está fora de cogitação tolerar iniciativas pessoais ou críticas. O ideal coletivo sufoca os valores individuais. Importa medir desde já as consequências dessas características, pois elas marcarão toda a história da busca da felicidade: longe de se completar, os caminhos individuais e os coletivos em direção à felicidade se opõem. Uns vangloriam o pleno desenvolvimento da pessoa, o que supõe a liberdade individual; os outros pregam um ideal coletivo que, para funcionar bem, exige a renúncia à liberdade individual. Liberdade ou igualdade: é preciso escolher; uma exclui obrigatoriamente a outra. Este será o quebra-cabeça de todos os pensadores políticos até os dias de hoje: encontrar um acordo harmonioso. Harmonizar, na falta de um ser ideal, pois é impossível garantir a integralidade simultânea desses dois valores. "Liberdade, igualdade" é um slogan absurdo e ingênuo. A balança pende obrigatoriamente para um lado ou para o outro, em alternância. O mesmo se passa com a busca da felicidade: uns a procuram pela via libertária: outros, pela via igualitária. Raros, e em situação bem desconfortável vão ser os que buscarão um acordo. Uma coisa é certa: se a felicidade exige coexistência dos dois, ela é impossível; ao menos, a felicidade perfeita é.

 

A maioria dos filósofos da felicidade explorará a via individual, a única que depende de cada um, pois a via coletiva está na mão dos políticos, que raramente são filósofos. Por esse motivo, os pensadores que vislumbram as condições sociais da felicidade fazem-no sob a forma sonhada da utopia. Será que eles creem na possibilidade de realização de seu modelo? “A utopia é a verdade de amanhã” dirá Victor Hugo; e Lamartine: “As utopias não são mais do que verdades prematuras”. Discurso de românticos. Em geral, os topistas quase não têm ilusões; sua cidade ideal está como que suspensa entre o passado e o presente, vaga promessa (ou ameaça), miragem de uma idade de ouro em um porvir sem futuro. Num mundo desses, dizem que os homens seriam felizes - ainda mais seguros por saberem que seu sonho nunca será submetido à prova dos fatos. O que é duplamente inquietante para a felicidade: ou ela é condenada a continuar um sonho, ou, logo que o sonho começa a se realizar, torna-se pesadelo. A via social rumo à felicidade seria também um impasse?

 

Hipódamo de Mileto, no século V antes de nossa era, é considerado o primeiro grande utopista. Seu objetivo declarado é garantir a felicidade e a virtude dos homens criando um quadro de vida perfeitamente racional que reproduz a harmonia cósmica. Longe de reconhecer uma contradição entre as aspirações individuais e o ideal coletivo, ele pensa que existe uma correspondência profunda entre a alma racional e o macrocosmo. A felicidade nascerá da implantação de uma organização que reproduza essa harmonia. Arquiteto, legislador, filósofo, ele tem uma visão global da cidade perfeita que ele vislumbra como um conjunto de dez mil habitantes divididos em três classes: artesãos, agricultores e guerreiros, vivendo em bairros separados e funcionais. A cidade é geométrica, com uma rigorosa planta em tabuleiro, como no Pireu. Ele começa a construí-la em Mileto, destruída por um terremoto. Seus projetos não sobreviverão a ele.

 

Com Platão, a cidade ideal que garante a felicidade é objeto de uma descrição detalhada. Os elementos, dispersos em vários diálogos – A república, As leis, Timeu, Crítias -, formam um conjunto bastante coerente em que pesem algumas contradições de detalhes. Não são os sonhos de um rapaz, mas obra da maturidade e da velhice, elaboradas em uma época difícil de transição, em que Atenas perdeu sua soberba, corroída pelos conflitos políticos. E preciso reconstruir algo sólido e indestrutível. Não é um sonho de poder e de riqueza, mas de virtude e de razão. O poder e a riqueza de um Estado não fazem a felicidade dos cidadãos, diz Platão: vejam a Atlântida, superpotência de tecnologia avançada e com um nível de vida muito superior ao de Atenas. Essa cidade hegemônica foi engolida: os deuses, principalmente Zeus, não gostam de ver os homens se tornarem poderosos demais. Sempre a mesma história: a hybris, orgulho excessivo, exaltação da vontade de poder, dá origem à arrogância e termina em catástrofe. A Atlântida é a versão grega da torre de Babel: os homens, por essa vez, haviam decidido fazer algo em comum, mas isso Deus não pode tolerar: "E Iahweh disse: 'Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo das iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles". Isso é perigoso: “Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros" (Gênesis, 11:6-7). É o próprio Deus que introduz a divisão e a desordem: dividir para reinar, esta será sempre a tática dos deuses. Ou então eles destroem pelo fogo (Sodoma e Gomorra) ou pela água (o Dilúvio, Atlântida). Não importa como, em todas as mitologias, as potências divinas jamais admitem que os homens garantam sua felicidade pela satisfação de suas paixões.

 

E o "divino" Platão concorda com os deuses. A cidade feliz que ele vislumbra é a cidade do Belo e do Bem, da sabedoria e, portanto, da austeridade, nos antípodas do luxo de Atlântida [Osório diz: ele pensava no luxo da Atenas de Péricles!]. Ele está perfeitamente consciente da necessidade de outorgar as aspirações individuais e a organização social para garantir a felicidade. Se os deuses parecem contraditórios, a seu ver, é porque o homem se deixa guiar por suas paixões e por seus baixos instintos, em vez de seguir os conselhos de sua alma espiritual. O indivíduo que se deixa guiar pelas paixões do corpo está em erro; ele é doente; é uma marionete cujos fios são os prazeres:

 

As afeições nos puxam como barbantes e, opostas como são, arrastam-nos no sentido inverso uma da outra para ações contrárias, sobre a linha divisória entre a virtude e o vício.10

 

A cidade ideal será organizada de modo a curar o homem de suas más paixões, e assim recolocá-lo no caminho da verdadeira felicidade. A aparente contradição entre as aspirações individuais e as exigências coletivas se desvanecerá a partir do momento em que o indivíduo e o Estado forem dirigidos de acordo com os princípios razoáveis do Belo e do Bem.

 

Concretamente, isso se traduzirá por um governo aristocrático nas mãos dos sábios, os “guardiões”, cuidadosamente selecionados e formados. A sociedade será dividida em classes estritamente hierarquizadas, ficando embaixo os produtores (artesãos e camponeses), que garantem a existência material do conjunto. Vinte mil habitantes, dos quais 5.400 cidadãos, cada um com um nível de vida modesto. Comunidade das mulheres, eliminação das crianças raquíticas as ou malformadas logo ao nascerem; as outras são imediatamente tiradas dos pais e educadas em comum. Proibição de inovar proibição de mudar: a perfeição é imutável. Sendo os guardiões filósofos totalmente dedicados à beleza, ao bem e à virtude, a cidade funcionará de modo harmonioso, e cada um, por não desejar nada além da beleza, do bem e da virtude, será satisfeito: o paraíso! A idade de ouro! A felicidade!

 

A felicidade exige o sacrifício da liberdade: tal é o sentido da utopia platônica. Aristófanes não concorda. Em As aves, também ele imaginou a cidade da felicidade: Nefelococigia. Aqui pode-se, ao contrário, fazer tudo o que se quer: é a cidade libertária, a cidade da fantasia, da imaginação. Puro divertimento do espírito: essa cidade dos pássaros, nas nuvens, não tem nenhuma consistência, e uma vez mais os deuses interferem: eles ordenam o desmantelamento desse sonho.

 

Desde o século V portanto, estão definidos os dois tipos extremos de utopia que não cessarão de se confrontar e que têm a pretensão, cada um, de garantir a felicidade: o mundo hiperorganizado, regulamentado, vigiado, que assegura a igualdade pela restrição coletiva, e o mundo sem coerção, onde o único senhor é a natureza, a serviço do indivíduo livre. Igualdade ou liberdade, comunismo ou anarquismo, Estado ou comuna, coletividade ou individualidade, as utopias não serão nada mais do que variações sobre os temas enunciados por Platão e Aristófanes. Porém, nos fatos, a felicidade permanece mais hipotética do que nunca.

 

 

Fonte: A idade de ouro - história da busca da felicidade, Georges Minois, tradução Christiane Fonseca Gradvohl Colas, Unesp, 2010, p. 40-47.

1 Tucídides, La guerre du Péloponnèse, II, 41

2 Platão, Euthydème, 278.

3 Ibid., Górgias, 492e

4 Ibid., 497 a.

5 Platão, Le banquet, 180 b

6 6 Ibid., 181 d

7 Ibid., 193 c

8 Ibid., 190-3

9 Ibid., 223 d

10 Platão, Les lois, 644e

 

Eu e di em foto de época papai e ramiro 1Eu e di em foto de época papai e ramiro 2

Os bucheiros

(um memorial de infância)

 

Áureo Nonato

 

Não me recordo se o Aurélio e o Chico Branquinho fizeram a mesma viagem que eu fiz, mas me parece que papai, consciente de sua impossibilidade de ser "marchante" de gado, como "seu" Marques ou o "seu" Andorinha, dos quais ele comprava os miúdos que tratava no curri e os vendia no Mercado Público, sempre com a nossa ajuda e de mais dois ou três empregados, tinha como propósito nos preparar para realizar o seu sonho impossível.

 

O "seu" Antonio Branquinho, neste particular não foi ajudado pela sorte.

 

Seus filhos homens, a começar pelo Chico Branquinho, eu, Aurélio, Aristides e Tonico, o mais novo, não eram, nunca foram jamais seriam comerciantes ou negociantes, pois falava em todos nós mais alto o coração.

 

Eu, desde pequeno, era um rebelado com aquela espécie de trabalho: troca de comida por dinheiro.

 

Do que eu gostava mesmo era de sonhar, de fazer longos passeios, de ver filmes de cinema, de aventuras, de ler livros, revistas e tudo o que me caia as mãos, até histórias-em-quadrinhos e as estórias de Trancoso, do Jeca-Tatú e do Zé-Macaco, além dos almanaques do Biotônico Fontoura, do Capivarol e aquele das pílulas-de-vida do Doutor Ross, e o da Bristol!

 

O único que ainda hoje permanece no ramo e no mesmo nível que papai deixou o trabalho é o Aristides. Seus dois filhos homens Adelson e Antonio, não deram para a coisa e seguiram outros caminhos.

 

O Tonico   Antonio Nonato dos Santos Filho – o mais novo, este eu o levei, ainda menino, para o Rio de Janeiro. Hoje ele está em Brasília, servindo no Estado Maior das Forças Armadas, no posto de Primeiro-Tenente do Exército. Está casado e com três filhos: dois rapazes, Antonio Cecílio e Ricardo, e uma menina, Patrícia.

 

O Aurélio, este foi o que mais se aproximou de nosso pai, em sua dedicação ao ofício de vender vísceras no Mercado, juntamente com seus filhos Arthur, Adhemar e Nathanael. Estes, porém, não quiseram prosseguir no negócio do pai e do avô. O Arthur, cedo prestou concurso para o Banco do Brasil e de imediato conseguiu uma transferência para o Rio, onde terminou seus estudos de contabilidade e casou. O Adhemar, este também entrou, por concurso, para o Banco do Brasil. O mais novo, Nathanael, ficou em Manaus e, hoje, já casado, tem um bom emprego numa multinacional da Zona Franca de Manaus. Tendo já completado os seus 59 anos, Aurélio resolveu aposentar-se e viver da renda de algumas de suas propriedades e terrenos.

 

O Chico Branquinho, nosso irmão mais velho, filho do primeiro matrimonio de papai, foi outro que não passou daquilo que aprendeu com o nosso pai.

 

Boêmio inveterado, era ele bem um personagem típico das estórias da "vida-real' que Nelson Rodrigues tão bem soube transpor para a nossa literatura.

 

Todas as noites se embrenhava ele lá pelas bandas da "zona fria" da Cidade, onde funcionavam os cabarés La Hoje, Verônica e o Rosa de Maio e outras casas do baixo meretrício. Sua mesa ficava apinhada de jovens "mariposas" atraidas pela comida e bebida sempre a farta. Depois, já alta a madrugada, ele levava para suas casas, em seu grande jipe, aquelas que não conseguiam se "arrumar" com algum caboclo endinheirado ou um comerciante qualquer.

 

No dia seguinte, na sua banca do mercado, ele distribuía, de graça, comida para as que iam a sua procura.

 

Lembro-me de um fato, isto lá pelos princípios dos anos 50, por ocasião de uma das minhas idas a Manaus, que me impressionou muito pelo desprendimento e astúcia demonstrados.

 

Estava ele, pachorrentamente sentado numa daquelas cadeiras-de-vime do Pavilhão, nas proximidades da Matriz e da antiga estação de bondes, quando ali cheguei para um encontro à noite depois do jantar.

 

Em menos de meia-hora chegaram e passaram por ele umas quatro mulheres já trintonas. Abraçavam-no efusivamente e sentavam-se por alguns momentos num dos braços da cadeira.

 

Era o suficiente para que eu observasse que, sem darem muito na vista, elas metiam a mão em seus bolsos, do blusão ou da calça, e retiravam notas de 10, de 20 e até 50 cruzeiros.

 

Foi quando eu então lhe fiz uma observação:

 

- Chico, as mulheres estão levando o teu dinheiro, rapaz!

 

Um vasto e complacente sorriso se estendeu por todo o seu rosto e calmamente me confessou:

 

- Esse é delas. O meu está aqui, debaixo da bunda.

 

De fato, ele trazia sua enorme carteira sempre bem recheada no bolso fundo trazeiro de sua calça.

 

Baixinho e gordo, ele era preferido e amado pelas pobres e infelizes "mariposas".

 

Quando morreu, antes de completar os 60 anos, seu enterro levou ao cemitério dezenas e dezenas de mulheres que choravam um choro triste e sentido.

 

Não deixou nada para a família – sua esposa Coló e seus dois filhos: Raymundo e Marinha – além da casa onde residia, dada a ele pelo papai, e uma pequena casa de negócio alugada para terceiros e que nunca prosperou.

 

Todo o seu dinheiro, que ganhou vendendo bucho e que não foi pouco, ele o gastou, segundo seus companheiros de trabalho e de farras, ajudando o Sul América Sport Clube a se firmar como o melhor clube do bairro de São Raymundo e em divertimentos alegres com mulheres.

 

Já o "bucheiro" – era assim que chamavam os que exerciam a profissão de vendedor de vísceras ou miúdos – Antonio Branquinho, meu pai, esse não era comerciante, e jamais seria, embora tivesse prosperado bastante em seu ofício.

 

Seu tino aguçado e perspicaz, como que para compensar-lhe a falta de instrução, dava-lhe margem a pensamentos e conselhos de âmbito universal e que nos são úteis até hoje, por onde quer que andemos.

 

Era um romântico. Um amante das coisas belas e singelas. Participava sempre de grupos folclóricos como “Os Índios” e "Marujadas".

 

Frequentava sempre, acompanhado de mamãe, os grandes bailes da Sociedade Beneficente Espanhola, cuja sede era quase pegada à Casa Dias, ao lado do Quartel do 27.0 BC; os do Ideal Clube e do Luso.

 

Guardou, até morrer, há nove anos, uma espada usada por ele nas "marujadas" e um par de "sapatilhas" de veludo que ele calçava especialmente para os bailes de gala. Nessas ocasiões, vestia-se com a melhor correção, usando "smoking" ou "fraque" com calça cinza listrada ou terno completo, isto é, calça, colete e paletó de casemira ou de linho, para casamentos e outras solenidades.

 

Era também um homem bom. Uma prova: sempre que sobrava rins, fígado, maricas, tripas, carne-de-cabeça e bucho – e isso era quase todos os dias – ele nos fazia trazer para casa e distribuía aos moradores, na maioria pobres, da Rua da Sede e da Rua São Francisco, com as quais a nossa casa fazia esquina. Dava ainda presentes e mais presentes para os seus incontáveis afilhados, além de dinheiro.

 

Isso, no entanto, não impediu que nos últimos anos de sua vida, já com mais de oitenta anos, velhinho e esclerosado, mas sempre forte e firme em suas infindáveis andanças por quase todas as ruas do bairro, ele fosse apupado e apedrejado até, por alguns moradores daquelas ruas cincunvizinhas à nossa casa.

 

Fonte: Áureo Nonato, “Os bucheiros – um memorial de infância”, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, Manaus, sem data, p80-83.

 

... dizeres de Osório:

 

Ao ler o escrito acima de Áureo Nonato, a quem, menino, em Manaus, cheguei a vê-lo caminhando pelas ruas, mas sem nunca ter assuntado com ele, que já me parecia “velho”, cansado e sem aparência de bom humor.

 

Isso se deu lá pelos anos de 1985/6, creio.

 

Agora, em 2018, adquiri o livro dele (vejam a história da aquisição em: https://www.facebook.com/OsorioBarbosa2/videos/1674167182666358/?hc_ref=ARQ46EHIfa3Y5KCXBVgpPbtS-L_LjmJfeI_GFlOHb3Ati7W2ncGol45NAwBkHqjOLgIe me deliciei com a leitura do texto que dá nome à obra!

 

Da leitura me apaixonei por seu irmão Chico Branquinho!

 

Que mestre em saber aproveitar a vida! Quero muito ser igual a ele, ter sua sabedoria e seu despreendimento!

 

O pai deles (Antonio Branquinho) lembrou por demais o meu pai em sua bondade extrema, embora meu pai fosse também “peralta”!

 

Tenho uns escritos que contam minhas memórias de minha infância em Maraã, as quais vinha guardando para divulgar em uma oportunidade que julgasse apropriada – uma dessas que, inúmeras vezes, talvez nunca cheguem –, quando fosse atingido por raios benfazejos!

 

Como Áureo, fala em mim “mais alto o coração”, também e, sendo assim, acho que a oportunidade é agora ou agora!

 

Obrigado a Áureo, obrigado Chico Branquinho e, por todos, Antonio Branquinho, pois os dois últimos são, um retrato de Juarez Barbosa de Lima pintado por quem nunca o conheceu!

 

E, se tinta sobrou, “acabei eu mesmo” sendo rabiscado!

 

Inté,

 

 P.S.: alguém sabe me dizer o que é "curri" e "maricas"? Grato,

 

 

O poeta!

Imagem linda poética e poeta

 

O poeta. Que imagens essa pequena palavra evoca? Como acontece comigo, talvez apareça na sua imaginação um homem com olhos chamejantes, uma expressão longínqua, cabelo esvoaçante, trajando vestes folgadas. Ou uma mulher, de pé numa rocha ou em outro lugar elevado, contemplando a distância. O ar tem nuvens, mar, vento e tempestade. Ambas as figuras estão sozinhas. “Solitárias”, como define Wordsworth, “como uma nuvem.”

Pode haver uma aura de loucura - os romanos chamavam isso de furor poeticus. Muitos dos nossos grandes poetas (John Clare e Ezra Pound, para pegar dois dos absolutamente maiores), com efeito, passaram períodos de suas vidas em instituições psiquiátricas. Vários escritores contemporâneos passam mais tempo no divã do psicanalista do que no escritório do agente literário.

O crítico Edmund Wilson tomou emprestada uma imagem da antiguidade para descrever o poeta. Ele era, disse Wilson, como Filoctetes na Ilíada. Filoctetes era o maior arqueiro do mundo. Seu arco era capaz de vencer guerras. As coisas estavam indo mal para os gregos no cerco de Troia. Eles precisavam de Filoctetes. Mas o haviam banido para uma ilha. Por quê? Porque Filoctetes tinha uma ferida que fedia tanto que ninguém suportava ficar perto dele. Ulisses foi enviado para trazê-lo à Troia sitiada. Porém, se os gregos queriam o arco, eles também precisavam aguentar o fedor. Essa, no entender de Wilson, é a imagem do poeta - alguém necessário, mas com quem é impossível conviver.

Tendemos a pensar no poeta como não apenas solitário, mas — em essência — como um forasteiro. Uma voz na imensidão deserta. O poeta, disse o filósofo John Stuart Mill (cuja vida tinha sido transformada por sua leitura da poesia de Wordsworth), não é “ouvido”, mas “entreouvido”. A relação mais importante do poeta não é conosco, leitores, mas com sua “musa”. A musa é uma empregadora cruel. Enche o poeta de inspiração (a palavra sugere “sopro sagrado”), mas não lhe dá dinheiro algum. Ninguém espera ficar pobre com tanta confiança quanto a pessoa que faz versos - daí a expressão “mansarda de poeta” (a mansarda é um sótão miserável). Quem já ouviu falar de uma “mansarda de médico” ou “mansarda de advogado”?

O poeta Philip Larkin afirmou certa vez que o poeta canta com o máximo de doçura quando, como ocorre ao lendário tordo, o espinho se aperta com máxima força contra seu peito. Mas não é uma questão de dar mais dinheiro aos poetas, ou de remover os vários espinhos de seus peitos. Outra imagem, desta vez de George Orwell, ilustra o ponto graficamente. Orwell gostava de retratar a sociedade como uma baleia. Era da natureza desse monstro desejar engolir seres humanos - como, na Bíblia, a baleia engole Jonas vivo. Jonas não é mastigado e comido pelo leviatã, ele é aprisionado “na barriga da baleia”. Era dever do artista permanecer “fora da baleia”, na definição de Orwell: perto o bastante para vê-la (ou “arpoá-la” com sátiras como seu próprio A revolução dos bichos), mas não, como Jonas, para ser engolido por ela. O poeta é o artista para quem é mais necessário manter distância das coisas.

A poesia antecede em muito qualquer literatura escrita ou impressa. Todas as sociedades que conhecemos - histórica e geograficamente - têm seus poetas. Seja lá como for que o chamemos - bardo, escaldo, menestrel, cantor, rimador -, o poeta sempre teve a mesma relação difícil de “forasteiro/integrante” com a sociedade.

Na sociedade feudal, os nobres gostavam de ter seus menestréis particulares (junto com seus bobos da corte) para entretenimento deles e de seus convidados. Sir Walter Scott escreveu seu melhor poema, A balada do último menestrel (1805), sobre o tema. Desde o século XVII, a Inglaterra tem seu poeta laureado, um versejador nomeado pelo monarca e membro da casa real. Mais recentemente, os Estados Unidos também começaram a nomear seus poetas laureados. Antes de 1986, eram chamados, esquisitamente, de “Consultores de Poesia da Biblioteca do Congresso”. O termo “laureado” remonta à Grécia e à Roma antigas, e significa “coroado com folhas de louro”. O laureado (sempre um homem) ganhava sua coroa de folhas travando combates verbais, como um gladiador, com outros poetas. (Os rappers, bardos dos nossos dias, ainda disputam essas batalhas em estilo livre.) O primeiro poeta laureado oficial da Inglaterra foi John Dryden, que ocupou o cargo sob Carlos II, de 1668 a 1689, embora pareça não ter sido especialmente consciencioso quanto a suas responsabilidades. Dali em diante o poeta laureado foi, por séculos, uma espécie de piada. Um que ocupou o cargo, por exemplo, foi Henry Pye (laureado entre 1790 e 1813). O estudo da literatura é minha profissão há tantos anos que nem me preocupo mais em contá-los, mas não consigo trazer à memória um único verso de Henry James Pye. Não me envergonho.

Com excessiva frequência, o escárnio era o que o poeta laureado podia esperar, junto com a honra duvidosa do título e o pagamento irrisório que o acompanhava (tradicionalmente, algumas moedas de ouro e uma “pipa”, ou barril, de vinho do porto). Quando Robert Southey (laureado entre 1813 e 1843) escreveu um poema sobre o recém-falecido rei Jorge III sendo saudado no céu por um São Pedro bajulador, chamado Uma visão do julgamento (1821), Byron o demoliu com A visão do julgamento (você vê a - ligeiríssima - diferença?), encarado como uma das maiores sátiras do idioma. Quando o escreveu, Byron estava exilado na Itália, tendo sido escorraçado da Inglaterra por suposta imoralidade. Qual dos dois poetas é lembrado hoje? O integrante ou o forasteiro? Sir Walter Scott (...) declinou da honra da laureação (em favor de Southey) porque, segundo afirmou, o cargo grudaria em seus dedos como uma fita adesiva, impedindo-o de escrever com liberdade. Scott queria sua liberdade poética.

O poeta que teve êxito no cargo e no papel do “poeta institucional” - o poeta totalmente dentro da baleia de Orwell mas apesar disso escreveu grande poesia, foi Alfred Tennyson (1809-1892). Coisa incomum para sua época, Tennyson viveu além dos oitenta, duas décadas mais do que Dickens, cinco décadas mais do que Keats. O que poderiam eles ter feito com esses anos tennysonianos?

Tennyson publicou seu primeiro volume de poesia quando tinha meros 22 anos. Apresentava vários poemas que ainda integram sua melhor produção lírica, como “Ivlariana”. Alfred se considerava, nesse período, um legítimo poeta romântico - o herdeiro de Keats. Pela década de 1830, porém, o Romantismo havia desvanecido enquanto movimento literário vital. Ninguém queria um Keats requentado. Seguiu-se um longo período estéril em sua carreira - a “década perdida”, como a chamam os críticos. Foi um período na imensidão deserta. Ele se libertou de sua paralisia e, em 1850, aos 41 anos, produziu o mais famoso poema do período vitoriano - In Memoriam A.H.H., inspirado pela morte de seu melhor amigo, Arthur Henry Hallam, com quem, especula-se, sua relação era tão intensa que poderia ter sido sexual. Provavelmente não, mas intensa, do modo “viril” aprovado pelos vitorianos, por certo foi.

O poema é feito de versos curtos, narrando dezessete anos de luto. Os vitorianos pranteavam a morte de um ente querido por um ano inteiro - com roupas escuras e com papel de carta de margens escuras; as mulheres usavam véus e joias especialmente sombrias. Nesse poema de luto, Tennyson meditou sobre os problemas que mais atormentavam sua época. A dúvida religiosa afligia a segunda metade do século XIX como uma doença moral. Tennyson afligia-se ainda mais do que a maioria. Se havia um céu, por que motivo não nos regozijávamos quando uma pessoa querida morria e ia para lá? Elas estavam indo para um lugar melhor. Mas In Memoriam segue sendo, em essência, um poema sobre o pesar pessoal. E afinal, conclui o poema, apesar de toda a dor, “É melhor ter amado e perdido / Do que nunca ter amado em absoluto”. Quem, tendo perdido uma pessoa amada, desejaria que ela nunca tivesse existido?

A rainha Vitória perdeu seu amado cônjuge, Alberto, para a febre tifoide em 1861. Ela usou “trajes de viúva” até o fim da vida, quarenta anos depois. Confidenciou ter encontrado grande consolo na elegia do sr. Tennyson para seu amigo morto, e, por força disso, os dois, poeta e rainha, tornaram-se admiradores mútuos. Tennyson não foi só um poeta vitoriano - foi o poeta de Vitória. Nomeado poeta laureado da monarca em 1850, ele ocuparia o cargo até morrer, 42 anos depois.

O grande projeto de seus últimos anos foi um poema enorme sobre a natureza ideal da monarquia inglesa, Idílios do rei, uma crônica em verso do reinado de Arthur e dos Cavaleiros da Távola Redonda. Tratava-se, claramente, de um tributo indireto à monarquia inglesa. Tennyson escreveu, como todos os poetas laureados escrevem (até o dinâmico Ted Hughes, ao ocupar o cargo a partir de 1984), certos versos bem maçantes. Mas também escreveu, como poeta laureado, alguns dos melhores poemas públicos da literatura inglesa, dos quais o mais notável é “The Charge of the Light Brigade” (“A carga da brigada ligeira”. (N.T.)) (1854), comemorando um assalto sangrento e absolutamente desesperançado de cerca de seiscentos soldados da cavalaria britânica contra um grupo de artilharia russo durante a Guerra da Crimeia. As perdas foram tremendas. Um general francês, observando a carga, comentou: “É magnífico, mas não é guerra”. Tennyson, que leu o relato do combate no Times, saiu-se com um poema, escrito em grande velocidade, que capta os cascos trovejantes, o sangue e a “magnífica loucura” de tudo aquilo:

 

Canhão à direita deles,

Canhão à esquerda deles,

Canhão atrás deles

Troando no vento;

Sob a fúria do imenso arsenal,

Prostrados herói e animal,

Eles, em luta sem igual,

Romperam os dentes da Morte Saindo da Boca Infernal,

Tudo que restava deles,

Dos nossos seiscentos.

Em seus últimos anos, Tennyson desempenhou o papel do poeta de modo majestoso, com cabelo esvoaçante, barba e bigode suntuosos e um conjunto espanhol de capa e chapéu. Por baixo do figurino e da pose, porém, Tennyson era o mais metódico dos autores, tão ávido por dinheiro e status quanto um homem comum. Ele subiu até o topo do mais escorregadio dos postes literários para morrer como Alfred, Lord Tennyson, e mais enriquecido por seus versos do que qualquer outro poeta nos anais da literatura inglesa.

Ele se vendeu? Ou foi um ato de equilíbrio bem pensado? Muitos amantes da poesia enxergam um contemporâneo vitoriano, Gerard Manley Hopkins (1844-1889), como um tipo de poeta “mais verdadeiro”. Hopkins foi um padre jesuíta que escrevia poemas no pouco tempo livre de que dispunha. Já se disse que sua única ligação com a Inglaterra vitoriana foi o fato de que respirou seu ar. Hopkins admirava Tennyson, mas sentia que sua poesia era o que chamava de “parnasiana” (Parnaso sendo a montanha dos poetas na Grécia antiga). Com franqueza, sentia que Tennyson se rendera demais “indo a público”. O próprio Hopkins teria preferido morrer em vez de publicar um poema como In Memoriam para o luto de qualquer homem ou mulher do povo.

Hopkins queimou vários de seus poemas altamente experimentais. Seus assim chamados “sonetos terríveis”, nos quais lutava com a dúvida religiosa, são privados ao extremo. Provavelmente, nunca foi sua intenção que outra pessoa os visse além de seu amigo mais íntimo, Robert Bridges. Bridges (ele mesmo destinado, por ironia, a virar poeta laureado em 1913) decidiu, quase trinta anos depois, publicar os poemas que Hopkins lhe confiara. Eles são considerados obras pioneiras daquilo que iria, alguns anos após sua morte, ser chamado de modernismo e mudar os rumos da poesia inglesa.

Quem, então, foi o poeta mais verdadeiro, o “público” Tennyson ou o “privado” Hopkins? A poesia sempre foi capaz de achar espaço para os dois tipos.

 

Fonte: John Sutherland (“Uma breve história da literatura”, tradução de Rodrigo Breunig, L&PM, Porto Alegre: 2017, p. 163/169).

Eros de tradução

Eros de revisão

 

                        J.K. Rowlings virou J.A. Rowlings em alguns exemplares do 1.º romance da série Harry Potter

 

Foi de propósito. Digitei “eros”, mesmo, mas é bastante provável que você, na pressa ou na distração, tenha entendido “erros de revisão”. Acertadamente. São desprezíveis as falhas tipográficas que os próprios leitores podem corrigir, fazendo uso da lógica ou induzidos por locuções consagradas, como, por exemplo, “erro de revisão”. A bem dizer, todo erro de revisão é, antes de tudo, um erro de digitação - ou de datilografia, como antigamente se dizia e cometia - que o revisor encarregado de reconhecê-lo e eliminá-lo deixou passar.

 Os gringos têm um vocábulo enxuto e consanguíneo para identificar lapsos tipográficos: typos. Os franceses empregam “coquille” (literalmente, concha) e nós, gralha, gato e pastel. Até por ser o mais antigo, gralha afinal venceu a concorrência.

 No mais recente Bloomsday, semana passada, ao reavivar na memória um episódio ocorrido com James Joyce, ocorreu-me inventar um calemburgo que só tem graça em inglês: “This is not a typo, but a word in progress”. (Literalmente: “Isto não é um erro tipográfico, mas um neologismo em andamento”.) Pois, acredite, há gralhas que vêm para o bem. Como prova o aludido episódio envolvendo Joyce.

 Estava o escritor irlandês a ditar Finnegans Wake ao conterrâneo Samuel Beckett, que então o secretariava, quando alguém bateu à porta e Joyce ordenou “come in” (entre). Concentrado em seu afazer, Beckett incluiu o “come in”, automaticamente, no texto que anotava. Embora não fizesse, nele, o menor sentido, Joyce tanto apreciou o erro que o manteve na edição final de sua “obra em andamento”.

 Mas quase sempre a gralha é um transtorno, uma calamidade. “É o único erro humano que, a meu ver, merece pena de morte”, prescrevia Otto Lara Resende, desavindo com revisores desatentos desde que na edição portuguesa de O Retrato na Gaveta flagrara um “ânus” onde originalmente sobrevoava um anu, o pássaro, pouco importa se cuculiforme.

 Segundo Eduardo Frieiro, que há 76 anos coletou uma série de gralhas históricas, não existe livro que não tenha sido vitimado por vacilos de tipógrafos e revisores. Claro que existem, mas são cada vez mais raros. Em outros tempos, com outro espírito, outra economia e mais leitores, as editoras investiam forte na contratação de editores, supervisores de textos e técnicos em checagem. Para abater custos e queimar etapas na produção de um livro, vários desses intermediários entre o, por assim dizer, manuscrito e o texto final foram sendo eliminados e precariamente substituídos por corretores automáticos e similares prodígios da era digital, exímios na troca de um erro por outros.

 O computador ajudou menos do que se pensa. “O uso do processador de texto resultou num declínio substancial na disciplina e atenção do autor”, constatou o editor chefe da Little, Brown and Company, Geoff Shandler. “Os manuscritos ficaram mais longos e mais desleixados, apesar de bem impressos.” Ou seja, os autores não são apenas vítimas daqueles a quem Otto Lara ameaçava com a pena capital. F. Scott Fitzgerald cometia erros primários de ortografia em seus originais. Nesse e em outros exemplos de grandes escritores, tais tropeços são irrelevantes porque corrigíveis. Escrever bem e escrever corretamente são departamentos distintos.

 Nem as Sagradas Escrituras, cuidadas com devoto desvelo por escribas e tipógrafos, escaparam da maldição. Pelo menos cinco de suas versões, impressas entre meados do século 16 e começo do século 19, chegaram às mãos dos fiéis com intrusos cochilos, alguns constrangedores, como a ausência de um não no Sétimo Mandamento (liberando a roubalheira) e a falta de outro naquela epístola aos coríntios que veda aos perversos a entrada no Reino dos Céus.

 Segundo consta, a primeira grande vítima de uma gralha, entre nós, foi o poeta Cláudio Manuel da Costa, cuja obra introdutória do Arcadismo no Brasil saiu, em 1768, com um vistoso typo (“Orbas” em vez de “Obras”) na folha de rosto: Estampada na capa, chamaria ainda mais atenção, como aconteceu com a tradução dos Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, editada pela Artenova, nos anos 1960, com um ele a mais no sobrenome do poeta.

 Em alguns exemplares do primeiro romance da série Harry Potter, J.K. Rowling virou J.A. Rowling, e foram prontamente recolhidos pela editora. Não eram tantos quanto os 80.000 exemplares do romance Liberdade, de Jonathan Franzen, que chegaram a ser impressos a partir de uma versão sem as alterações e correções do autor, e postos à venda em livrarias. Franzen descobriu a mancada enquanto lia um trecho do livro, durante um programa de entrevistas na TV britânica. Imagine a cena. Imagine o choque do autor. Imagine o prejuízo da editora.

 Sorte teve a editora Garnier, cuja negligência no controle de qualidade da segunda edição das Poesias Completas de Machado de Assis, em 1902, beneficiou-se de uma brigada de corretores amigos do autor, que a nanquim emendaram, em mutirão, cada “cagara” que usurpara o pretérito mais-que-perfeito do verbo cegar numa estrofe do poema Advertência. Por outra versão da mesma história, Machado teria corrigido tudo sozinho. É possível. As tiragens de livros de poesia já eram bem módicas naquela época.

 Dia desses repassei os olhos numa rara e autografada primeira edição de Angústia, de Graciliano Ramos, que herdei de Lúcio Rangel, amicíssimo do Velho Graça. Publicado em 1936 pela José Olympio, com o escritor encarcerado pelo Estado Novo e outra ortografia em vigor no País, tamanha era a quantidade de gralhas no texto que Graciliano, depois de posto em liberdade, pegou de volta o exemplar presenteado a Lúcio, entulhou suas margens de correções a caneta e, com nova dedicatória, devolveu-o ao amigo.

 Não sei quanto vale tal preciosidade no mercado bibliográfico. Um dos exemplares das poesias de Machado corrigidas a nanquim estava sendo oferecido, pouco tempo atrás, por R$ 900 na Estante Virtual. Café-pequeno se comparado aos livros coalhados de typos disputados em leilões lá fora. Em 15 de junho, a citada primeira edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal, com o nome da autora grafado errado, foi arrematada por £ 10.000. Ano passado, um exemplar do mesmo livro com a palavra “philosopher” sem uma das letras na contracapa foi comprado por um empresário londrino por £ 43.750.

 

Autor: Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo, 24 Junho 2017.

 

Capa 2

COMO A MENTE FUNCIONA

STEVEN PINKER

 

 

PREFÁCIO

 

 

 

Qualquer livro intitulado Como a mente funciona deveria começar com uma nota de humildade; começarei com duas.

Primeiro, não entendemos como a mente funciona - nem de longe tão bem quanto compreendemos como funciona o corpo, e certamente não o suficiente para projetar utopias ou, curar a infelicidade. Então, por que esse título audacioso? O linguista Noam Chomsky declarou certa vez que nossa ignorância pode ser dividida em problemas e mistérios. Quando estamos dian­te de um problema, podemos não saber a solução, mas temos insights, acu­mulamos um conhecimento crescente sobre ele e temos uma vaga ideia do que buscamos. Porém, quando defrontamos um mistério, ficamos entre maravilhados e perplexos, sem ao menos uma ideia de como seria a explica­ção. Escrevi este livro porque dezenas de mistérios da mente, das imagens mentais ao amor romântico, foram recentemente promovidos a problemas (embora ainda haja também alguns mistérios!). Cada ideia deste livro pode revelar-se errônea, mas isso seria um progresso, pois nossas velhas ideias eram muito sem graça para estar erradas.

Em segundo lugar, eu não descobri o que de fato sabemos sobre o fun­cionamento da mente. Poucas das ideias apresentadas nas páginas seguintes são minhas. Selecionei, de muitas disciplinas, teorias que me parecem ofe­recer um insight especial a respeito dos nossos pensamentos e sentimentos, que se ajustam aos fatos, predizem fatos novos e são coerentes em seu con­teúdo e estilo explicativo. Meu objetivo foi tecer essas ideias em um quadro [9] coeso, usando duas ideias ainda maiores que não são minhas: a teoria computacional da mente e a teoria da seleção natural dos replicadores.

O capítulo inicial expõe o quadro geral: a mente é um sistema de órgãos de computação que a seleção natural projetou para resolver os problemas enfrentados por nossos ancestrais evolutivos em sua vida de coletores de alimentos. Cada uma das duas grandes ideias – computação e evolução – ocupa a seguir um capítulo. Analiso as principais faculdades da mente em capítulos sobre percepção, raciocínio, emoção e relações sociais (parentes, parceiros românticos, rivais, amigos, conhecidos, aliados, inimigos). O último capítulo discute nossas vocações superiores: arte, música, literatura, humor, religião e filosofia. Não há capítulo sobre a linguagem; meu livro anterior, O instituto da linguagem, abrange esse tema de um modo complementar.

Este livro destina-se a qualquer pessoa que tenha curiosidade de saber como a mente funciona. Não o escrevi apenas para professores e estudantes, e nem somente com a intenção de "popularizar a ciência". Espero que tanto os estudiosos como o público leitor possam se beneficiar de urna visão geral sobre a mente e o modo como ela atua nas atividades humanas. Nesse alto nível de generalização, pouca é a diferença entre um especialista e um leigo reflexivo, pois se hoje em dia nós, especialistas, não podemos ser mais do que leigos na maioria das nossas próprias disciplinas, que dizer das disciplinas afins! Não forneci exames abrangentes da literatura pertinente nem uma exposição de todos os lados de cada debate, pois isso tomaria o livro impossível até de ser erguido. Minhas conclusões provêm de avaliações da convergência das evidências de diferentes campos e métodos; forneci citações pormenorizadas para que os leitores possam acompanhá-las.

Tenho dívidas intelectuais com numerosos professores, alunos e colegas, mas principalmente com John Tooby e Leda Cosmides. Eles forjaram entre evolução e psicologia que possibilitou este livro e conceberam muitas das teorias que apresento (e muitas das melhores piadas). Ao me convidarem para passar um ano como membro do Centro de psicologia Evolucionista da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, eles me propor­cionaram o ambiente ideal para pensar e escrever, além de amizade e conse­lhos inestimáveis.

Sou imensamente grato a Michael Gazzaniga, Marc Hauser, Kemmerer, Gary Marcus, John Tooby e Margo Wilson pela leitura de todo o original e pelas valiosas críticas e incentivos. Outros colegas generosamente comentaram capítulos em suas áreas de especialização: Edward Adelson, Barton Anderson, Simon Baron-Cohen, Ned Block, Paul [10] Bloom, David Brainard, David Buss, John Constable, LedaCosmides, He­lena Cronin, Dan Dennett, David Epstein, Alan Fridlund, Gerd Gigerenzer, Judith Harrís, Richard Held, Ray Jackendoff, Alex Kacelnik, Stephen Kossíyn, Jack Loomis, Charles Oman, Bernard Sherman, Paul Smolensky, Elizabeth Spelke, Frank Sulloway, Donald Symons e Michael, Tarr. Mui­tos outros esclareceram dúvidas e deram sugestões proveitosas, entre eles Robert Boyd, Donald Brown, Napoleon Chagnon, Martin Daly, Richard Dawkins, Robert Hadley, Jarnes Hillenbrand, Don Hoffman, Kelly Olguin JaakoIa, Timothy Ketelaar, Robert Kurzban, Dan Montello, Alex Pent­land, Roslyn Pinker, Robert Provine, Whitman Richards, Daniel Schac­ter, Devendra Singh, Pawan Sinha, Christopher Tyter, Jeremy Wolfe e Robert Wright.

Este livro é produto dos ambientes estimulantes de duas instituições: Instituto de, Tecnologia de Massachusetts e a Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Meus agradecimentos especiais a Emilio Bizzi, do Depar­tamento de Ciências Cognitivas e do Cérebro do MIT, por conceder-me uma licença sabática, e a Loy Lytle e Aaron Ettenberg, do Departamento de Psicologia, bem como a Patricia Clancy e a Marianne Mithun, do Departa­mento de Linguística da ucS'B,por me convidarem para ser pesquisador visi­tante em seus departamentos.

Patricia Claffey, da Biblioteca Teuber do MIT, conhece tudo, ou pelo menos sabe onde encontrar, o que dá na mesma. Sou grato por seus incansá­veis esforços para descobrir o material mais desconhecido com rapidez e bom humor. Minha secretária, muito a propósito chamada Eleanor Bonsaint, concedeu-me sua ajuda profissional e animadora em inúmeros assuntos. Meus agradecimentos também a Marianne Teuber e a Sabrina Detmar e Jennifer Riddell, do Centro List de Artes Visuais do MIT, pela sugestão para a arte da capa.* (*) O autor se refere à capa americana original. (N. T.)

Meus editores, Drake McFeely (Norton), Howard Boyer (atualmente na University of California Press), Stefan McGrath (Penguin) e Ravi Mir­chandani (atualmente na Orion), concederam-me sua atenção e excelentes sugestões durante todo o processo. Também sou grato a meus agentes, John Brockman e Katinka Matson, por seus esforços em meu benefício e sua dedi­cação à literatura científica. Agradecimentos especiais a Katya Rice, que ao longo de catorze anos trabalhou comigo em quatro livros. Seu senso analíti­co e toque magistral melhoraram as obras e me ensinaram muito sobre clareza e estilo. [11]

Imensa é minha gratidão para com minha família, pelo apoio e sugestões que me deram: Harry, Roslyn, Robert e Susan Pinker, Martin, Eva, Carl e Eric Boodman, Saroja Subbiah e Stan Adams. Meus agradecimentos também a Windsor, Wilfred e Fiona.

O maior agradecimento é para minha esposa, Ilavenil Subbiah, que desenhou as figuras, fez comentários inestimáveis sobre o original, conce­deu-me constante apoio, sugestões e carinho e compartilhou a aventura. Este livro é dedicado a ela, com amor e gratidão.

Minhas pesquisas sobre mente e linguagem foram subvencionadas pe­lo Natíonal Institutes of Health (subvenção HD 18381), pela National. Science Foundation (subvenção 82-09540, 85-18774 e 91-09766) e pelo McDonnell-Pew Center for Cognitive Neuroscience, do MIT. [12]

 

“Como a mente funciona”, Companhia das letras.

Cidadão imagem

Cidadão - definição!

 

"Cidadão é aquele que participa dos negócios da cidade", José Alfredo De Oliveira Baracho ("Teoria Geral da Cidadania", Saraiva, São Paulo, 1995: p. 1).

 

Fonte da imagem: http://soniazaghetto.com/?p=4633.

Cidadão - definição!

 

"Cidadão é aquele que participa dos negócios da cidade", José Alfredo De Oliveira Baracho ("Teoria Geral da Cidadania", Saraiva, São Paulo, 1995: p. 1).

 

Fonte da imagem: http://soniazaghetto.com/?p=4633.

 

A perda de identidade do juizGilberto de Mello Kujawski

A perda de identidade do juiz.

Nalini beija mão

Gilberto de Mello Kujawski

Todos nós estamos cansados de falar e de ouvir falar na crise do Judiciário. Clama-se pela reforma do Judiciário, invocando defeitos estruturais e organizacionais, causas processuais e conjunturais, políticas e culturais, etc. O que se esquece, o que se omite e não chama a atenção de ninguém é o fator humano, a capacidade do juiz como operador do direito.

O livro de José Renato Nalini A Rebelião da Toga (Millennium, 2006), com prefácio do ministro Enrique Ricardo Lewandowski, representa um marco no enfoque da crise do Judiciário, trazendo para o primeiro plano o fator decisivo daquela crise, que não reside nem na desatualização das leis, nem na precariedade da máquina judicial, e sim nesse fator humano, demasiado humano, que por constrangedor se cala - a perda de identidade do juiz.

José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professor de Ética Geral e Profissional na Faculdade de Direito da Faap e de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito UniAnchieta, além de colaborador eventual desta página do Estado, não é um profissional qualquer. Por onde ele passa, deixa a marca de sua personalidade atuante, sistematizadora e generosa. Assim foi na presidência do Tribunal de Alçada Criminal. Reorganizou administrativamente aquele órgão judicial, informatizou-o totalmente e fez crescer, como nunca antes, sua eficiência. Fez do Tribunal da Alçada paulista uma instituição modelar para todos os tribunais do País. Assim foi na sua forte contribuição como ambientalista. Depois de seu livro Ética Ambiental (Millennium, 2001) o tratamento da questão ambiental não foi mais o mesmo.

Agora, com a edição deste livro lúcido, corajoso, elucidativo sob vários aspectos, Nalini inaugura abordagem inédita da crise da Justiça, com a proposta de centrar sobre o juiz o elenco das transformações do Judiciário, superando, assim, os limites e a abstração da reforma estritamente normativa. A figura do juiz será o eixo sobre o qual vai girar a reforma do sistema judiciário, sem desconsiderar a legislação e a estrutura da máquina judicante. “Desde logo se afaste a idéia de subversão.” Explicando melhor: “Rebelião no melhor sentido que se pudesse atribuir a tal verbete. Reação à inércia. Repúdio ao imobilismo. Recusa a uma função subalterna a inúmeros fatores externos e impedientes da realização de uma justiça humana mais aproximada ao ideal nutrido pelo homem comum.”

Não vamos esperar dos legisladores nem do governo a iniciativa para sanear e pôr de pé a Justiça em nosso país. O pensamento de Nalini é apelar, diretamente, para os operadores do direito, os juízes, convidando-os a dar o primeiro passo para resgatar a íntima vinculação do direito com a ética e devolver o magistrado à moldura para ele desenhada na própria Constituição. Os juízes, como responsáveis diretos pela aplicação da lei, são os destinatários primeiros do apelo do desembargador Nalini, apelo que é também um incentivo à mobilização da classe para que tome em suas mãos o organismo depauperado da instituição e tente reanimá-lo, reassumindo com vigor o papel demiúrgico reservado pela nossa cultura ao homem que dá voz e movimento à letra inerte dos códigos. “Em lugar das iniciativas de cúpula, o protagonismo do profissional da base”, propõe nosso autor.

O esvaziamento da figura do juiz ocorre num quadro de progressiva degeneração dos representantes do Executivo e do Legislativo. Presidente da República, ministros, governadores, parlamentares não mais respondem aos fins para os quais foram eleitos. Sua maior preocupação é com seu projeto pessoal de poder, e não com o projeto do País ou da Federação. Neste clima em que os detentores do poder traem seu compromisso institucional com o povo, dificilmente o juiz poderia manter a integridade de suas funções originais. Esclarece Nalini: “A perversão da lei faz com que ela só exprima interesses. O juiz passou a encarnar o papel de garantidor desses interesses e vê-se questionado em sua função. Contamina-se do desprestígio que debilitou o moderno produto dos Parlamentos. Já foi o tempo em que o Judiciário estava acima de todas as críticas, dúvidas ou suspeitas e de que o respeito era o primeiro sentimento a se devotar à Justiça.”

A crise de identidade do juiz trouxe a perda de sua auto-estima. “O Judiciário é um Poder”, clamava outro dia, com certa arrogância, dedo em riste, um ministro do Supremo. Sim, meu caro magistrado, mas o juiz já não encarna nenhum poder. Poder significa capacidade legítima de decisão, e o juiz brasileiro, transformado em simples sombra burocrática, já não tem nem a coragem, nem o discernimento, nem a independência para tomar decisões legítimas.

A questão é saber se esse anêmico material humano terá condições de responder ao desafio lançado pelo autor de A Rebelião da Toga. Este pensa é no futuro, nas novas gerações que poderão ser mobilizadas para operar a reforma do Judiciário sem esperar pela política. Um passo inicial - segundo Nalini - seria inspirar-se nas estratégias de trabalho da iniciativa privada, acabando com o formalismo e o arcaísmo da Justiça. Outro passo essencial seria a preparação do candidato antes do ingresso na magistratura e, depois, reciclagens constantes e aperfeiçoamento contínuo.

A perda de identidade do juiz o aprisiona à condição de simples “autoridade judicial”, e nada mais. Não basta. Para o juiz recuperar na íntegra seu legítimo papel constitucional e exercer com plenitude sua missão tem de se investir das funções de agente do poder e ainda agente da pacificação social. Somente ao se integrar na tríplice responsabilidade de autoridade judicial, agente do poder e agente da pacificação, o juiz vai retomar sua plena dignidade.

Gilberto de Mello Kujawski, escritor e jornalista, é membro do Instituto Brasileiro de Filosofia
E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Estadão, 15.03.07.

Página 7 de 9
Você está aqui: Home | Artigos