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A internet acabando com a imprensa dita tradicional! - 2

 

A internet acabando com a imprensa dita tradicional! - 2

Entrevistas de alguns pensadores/escritores criticando a internet e sobre as quais lançamos alguns contra-pontos

 

EL PAÍS (8 JAN 2016)

Zygmunt Bauman: “As redes sociais são uma armadilha”

Ele é a voz dos menos favorecidos. O sociólogo denuncia a desigualdade e a queda da classe média. E avisa aos indignados que seu experimento pode ter vida curta

Zygmunt Bauman acaba de completar 90 anos de idade e de tomar dois voos para ir da Inglaterra ao debate do qual participa em Burgos (Espanha). Está cansado, e admite logo ao começar a entrevista, mas se expressa com tanta calma quanto clareza. Sempre se estende, em cada explicação, porque detesta dar respostas simples a questões complexas. Desde que colocou, em 1999, sua ideia da “modernidade líquida” – uma etapa na qual tudo que era sólido se liquidificou, e em que “nossos acordos são temporários, passageiros, válidos apenas até novo aviso” –, Bauman se tornou uma figura de referência dasociologia. Suas denúncias sobre a crescente desigualdade, sua análise do descrédito da políticae sua visão nada idealista do que trouxe a revolução digital o transformaram também em um farol para o movimento global dos indignados, apesar de que não hesita em pontuar suas debilidades.

 

Zygmunt 

O polonês (Poznan, 1925) era criança quando sua família, judia, fugiu para a União Soviética para escapar do nazismo, e, em 1968, teve que abandonar seu próprio país, desempossado de seu posto de professor e expulso do Partido Comunista em um expurgo marcado pelo antissemitismo após a guerra árabe-israelense. Renunciou à sua nacionalidade, emigrou a Tel Aviv e se instalou, depois, na Universidade de Leeds (Inglaterra), onde desenvolveu a maior parte de sua carreira. Sua obra, que arranca nos anos 1960, foi reconhecida com prêmios como oPríncipe das Astúriasde Comunicação e Humanidades de 2010, que recebeu junto com Alain Touraine.

Bauman é considerado um pessimista. Seu diagnóstico da realidade em seus últimos livros é sumamente crítico. EmA riqueza de poucos beneficia todos nós?, explica o alto preço que se paga hoje em dia pelo neoliberalismo triunfal dos anos 80 e a “trintena opulenta” que veio em seguida. Sua conclusão: a promessa de que a riqueza acumulada pelos que estão no topo chegaria aos que se encontram mais abaixo é uma grande mentira. EmCegueira moral, escrito junto com Leonidas Donskis, Bauman alerta sobre a perda do sentido de comunidade em um mundo individualista. Em seu novo ensaio,Estado de crise, um diálogo com o sociólogo italiano Carlo Bordoni, volta a se destacar. O livro da editora Zahar, que já está disponível para pré-venda no Brasil, trata de um momento histórico de grande incerteza.

Bauman volta a seu hotel junto com o filósofo espanhol Javier Gomá, com quem debateu no Fórum da Cultura, evento que terá sua segunda edição realizada em novembro e que traz a Burgos os grandes pensadores mundiais. Bauman é um deles.

Pergunta.Você vê a desigualdade como uma “metástase”. A democracia está em perigo?

Resposta.O que está acontecendo agora, o que podemos chamar de crise da democracia, é o colapso da confiança. A crença de que os líderes não só são corruptos ou estúpidos, mas também incapazes. Para atuar, é necessário poder: ser capaz de fazer coisas; e política: a habilidade de decidir quais são as coisas que têm ser feitas. A questão é que esse casamento entre poder e política nas mãos do Estado-nação acabou. O poder se globalizou, mas as políticas são tão locais quanto antes. A política tem as mãos cortadas. As pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre suas promessas. É o que está evidenciando, por exemplo, a crise de migração. O fenômeno é global, mas atuamos em termos paroquianos. As instituições democráticas não foram estruturadas para conduzir situações de interdependência. A crise contemporânea da democracia é uma crise das instituições democráticas.

"Foi uma catástrofe arrastar a classe media ao precariat. O conflito já não é entre classes, mas de cada um com a sociedade”

P.Para que lado tende o pêndulo que oscila entre liberdade e segurança?

R.São dois valores extremamente difíceis de conciliar. Para ter mais segurança é preciso renunciar a certa liberdade, se você quer mais liberdade tem que renunciar à segurança. Esse dilema vai continuar para sempre. Há 40 anos, achamos que a liberdade tinha triunfado e que estávamos em meio a uma orgia consumista. Tudo parecia possível mediante a concessão de crédito: se você quer uma casa, um carro... pode pagar depois. Foi um despertar muito amargo o de 2008, quando o crédito fácil acabou. A catástrofe que veio, o colapso social, foi para a classe média, que foi arrastada rapidamente ao que chamamos deprecariat(termo que substitui, ao mesmo tempo, proletariado e classe média).Essa é a categoria dos que vivem em uma precariedade contínua: não saber se suas empresas vão se fundir ou comprar outras, ou se vão ficar desempregados, não saber se o que custou tanto esforço lhes pertence... O conflito, o antagonismo, já não é entre classes, mas de cada pessoa com a sociedade. Não é só uma falta de segurança, também é uma falta de liberdade.

P.Você afirma que a ideia de progresso é um mito. Por que, no passado, as pessoas acreditavam em um futuro melhor e agora não?

R.Estamos em um estado deinterregno, entre uma etapa em que tínhamos certezas e outra em que a velha forma de atuar já não funciona. Não sabemos o que vai a substituir isso. As certezas foram abolidas. Não sou capaz de profetizar. Estamos experimentando novas formas de fazer coisas. A Espanha foi um exemplo com aquela famosa iniciativa de maio (o 15-M), em que essa gente tomou as praças, discutindo, tratando de substituir os procedimentos parlamentares por algum tipo de democracia direta. Isso provou ter vida curta. As políticas de austeridade vão continuar, não podiam pará-las, mas podem ser relativamente efetivos em introduzir novas formas de fazer as coisas.

P.Você sustenta que o movimento dosindignados“sabe como preparar o terreno, mas não como construir algo sólido”.

R.O povo esqueceu suas diferenças por um tempo, reunido na praça por um propósito comum. Se a razão é negativa, como se indispor com alguém, as possibilidades de êxito são mais altas. De certa forma, foi uma explosão de solidariedade, mas as explosões são muito potentes e muito breves.

P.E você também lamenta que, por sua natureza “arco íris”, o movimento não possa estabelecer uma liderança sólida.

R.Os líderes são tipos duros, que têm ideias e ideologias, o que faria desaparecer a visibilidade e a esperança de unidade. Precisamente porque não tem líderes o movimento pode sobreviver. Mas precisamente porque não tem líderes não podem transformar sua unidade em uma ação prática.

P.Na Espanha, as consequências do 15-M chegaram à política. Novos partidos emergiram com força.

"O 15-M, de certa forma, foi uma explosão de solidariedade, mas as explosões são potentes e breves"

R.A mudança de um partido por outro não vai a resolver o problema. O problema hoje não é que os partidos estejam equivocados, e sim o fato de que não controlam os instrumentos. Os problemas dos espanhóis não estão restritos ao território nacional, são globais. A presunção de que se pode resolver a situação partindo de dentro é errônea.

P.Você analisa a crise do Estado-nação. Qual é a sua opinião sobre as aspirações independentistas da Catalunha?

R.Penso que continuamos com os princípios de Versalhes, quando se estabeleceu o direito de cada nação baseado na autodeterminação. Mas isso, hoje, é uma ficção porque não existem territórios homogêneos. Atualmente, todas as sociedades são uma coleção de diásporas. As pessoas se unem a uma sociedade à qual são leais, e pagam impostos, mas, ao mesmo tempo, não querem abrir mão de suas identidades. A conexão entre o local e a identidade se rompeu. A situação na Catalunha, como na Escócia ou na Lombardia, é uma contradição entre a identidade tribal e a cidadania de um país. Eles são europeus, mas não querem ir a Bruxelas por Madri, mas via Barcelona. A mesma lógica está emergindo em quase todos os países. Mantemos os princípios estabelecidos no final da Primeira Guerra Mundial, mas o mundo mudou muito.

P.As redes sociais mudaram a forma como as pessoas protestam e a exigência de transparência. Você é um cético sobre esse “ativismo de sofá” e ressalta que aInternettambém nos entorpece com entretenimento barato. Em vez de um instrumento revolucionário, como alguns pensam, as redes sociais são o novo ópio do povo?

R.A questão da identidade foi transformada de algo preestabelecido em uma tarefa: você tem que criar a sua própria comunidade. Mas não se cria uma comunidade, você tem uma ou não; o que as redes sociais podem gerar é um substituto. A diferença entre a comunidade e a rede é que você pertence à comunidade, mas a rede pertence a você. É possível adicionar e deletar amigos, e controlar as pessoas com quem você se relaciona. Isso faz com que os indivíduos se sintam um pouco melhor, porque a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas. Mas, nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma interação razoável. Aí você tem que enfrentar as dificuldades, se envolver em um diálogo. O papa Francisco, que é um grande homem, ao ser eleito, deu sua primeira entrevista a Eugenio Scalfari, um jornalista italiano que é um ateu autoproclamado. Foi um sinal: o diálogo real não é falar com gente que pensa igual a você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.

[Osório diz: como tudo que existe! As armadilhas são também criações humanas, basta que você perverta, regra geral, a finalidade para a qual a criação foi produzida]

Estado de crise. Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni. Editora Zahar. 192 págs., 39,90 reais.

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EL PAÍS (JUAN CRUZ29 MAR 2015)

Umberto Eco: “A Internet pode tomar o lugar do mau jornalismo”

Em novo romance, filólogo italiano mergulha no mundo da "máquina de lama" das notícias

 

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Umberto Eco caminha diante da estante de livros em sua casa. /ROBERTO MAGLIOZZI

Umberto Eco tem na entrada de sua casaem Milão, antes de sua montanha de livros, o jornal de seu povoado (Alessandria,no Piemonte), que recebe diariamente. Quando pedimos fotos de sua juventude foi a um computador, que é o centro borgiano de seu Alephparticular, seu escritório, e encontrou as fotos que o levam ao princípio de sua vida, quando era um bebê de fraldas. Faz tudo com eficiência e bom humor, e rapidamente; tem na boca, quase sempre, um charuto apagado com o qual, com certeza, foge do charuto. Tem uma inteligência direta, não foge de nada, nem dá voltas. Acostumado a escolher as palavras, as diz como se viessem de um exercício intelectual que tem seu reflexo nos corredores superlotados dessa casa que se parece com o paraíso dos livros.

Está com 83 anos; emagreceu, pois fazuma dietaque o afastou do uísque (com o qual almoçava algumas vezes) e de outros excessos, de forma que mostra a barriga achatada como uma glória conquistada em uma batalha sem sangue. É um dos grandes filólogos do mundo; desde muito jovem ganhou notoriedade como tal, mas um dia quis demonstrar que o movimento narrativo se demonstra andando e publicou, com um sucesso planetário, o romanceO Nome da Rosa(1980), cujo mistério, cultura e ironia impressionaram o mundo.

Passeamos junto com o escritor. Física e metaforicamente. Percorremos juntos a imponente biblioteca de sua casa em Milão, onde também repousam alguns de seus livros de maior sucesso, como O Pêndulo de FoucaulteApocalípticos e Integrados. Nas mesmas prateleiras também está seu novo romance,Número Zero, uma ficção sobre jornalismo inspirada na realidade. Um olhar sobre a informação no século XXI e a Internet, campo de batalha das ideias, das notícias e das mentiras. Controlar a verdade do que aparece na rede é, para Eco, imprescindível. Uma tarefa à qual deveriam se dedicar os jornais tradicionais, para que esses continuem sendo, no futuro, garantidores da democracia, da liberdade e da pluralidade.

Com esse sucesso que teria envaidecido qualquer um, não parou de trabalhar, como filósofo e romancista, e desde então o professor Eco é também o romancista Eco; agora aparece (em vários países do mundo) com um novo romance que nasce do centro de seus próprios interesses como cidadão: ele se sente um jornalista cujo compromisso civil o levou durante décadas a fazer autocrítica do ofício; seu romanceNúmero Zero (cujos direitos no Brasilforam comprados pela Record, que deve lançá-lo neste ano) retrata um editor que monta um jornal que não sairá às ruas, mas cuja existência serve ao magnata para intimidar e chantagear seus adversários. Pode se pensar legitimamente que nesse editor está a metáforade Berlusconi, o grande magnata dos meios de comunicação na Itália?, perguntei a Eco. O professor disse: “Se quiser ver em Vimecarte um Berlusconi, vá em frente, mas há muitos Vimecarte na Itália”.

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Alessandria, 1932. Nasceu no Piemonte, na Itália, onde foi educado pelos salesianos. Em 1954 se formou doutor em Filosofia e Letras na Universidade de Turim, onde também foi professor, além de lecionar nas Universidades de Florença, Milão e Bologna. Beirando os 50 anos, Umberto Eco obteve um de seus maiores sucessos literários com seu romanceO Nome da Rosa, traduzido para vários idiomas e levado ao cinema. Ao longo de sua trajetória, conquistou inúmeras premiações, como o Prêmio Príncipe de Astúrias de Comunicação e Humanidades no ano 2000. Também é cavaleiro da Grande Cruz da Ordem ao Mérito da República Italiana e cavaleiro da Legião de Honra francesa.

Pergunta.Um romance sobre o jornalismo. Por quê?

Resposta.Escrevo críticasdo ofício desde os anos 1960, além de ter na carteira o registro de jornalista. Tive um bom debate polêmico com Piero Ottone sobre a diferença entre notícia e comentário. Escrever sobre certo tipo de jornalismo era uma ideia que me passava pela cabeça desde sempre. Há leitores que encontraram emNúmero Zeroo eco de muitos artigos meus, cuja substância utilizei porque já se sabe que as pessoas esquecem amanhã o que leram hoje. De fato, alguns me elogiaram. Por exemplo, há quem aplaudiu o que escrevo sobre o desmentido na imprensa, e já escrevi o mesmo sobre isso há 15 anos! De forma que abordei o tema porque o carrego comigo. Até o princípio do livro é muito meu, porque esse episódio em que a água não sai da torneira era também o princípio deO Pêndulo deFoucault.Para aquele alguém me disse que não era uma boa metáfora, e tirei; mas, paraNúmero Zero, gostei dessa ideia, a água que fica presa na torneira e não sai, e você espera que saia pelo menos uma gota. Gostei dessa ideia, fui ao porão, encontrei aquele primeiro manuscrito e voltei a usar. Tudo é assim: na discussão que há com Bragadoccio [um jornalista fundamental na trama deNúmero Zero]sobre qual carro comprar, o que escrevo é uma lista que fiz nos anos 1990 quando eu mesmo não sabia qual automóvel queria...

P.O romance está cheio de referências ao cinismo do editor que cria um jornal para extorquir...

R.Tinha em mente um personagemda história da Itália, Pecorelli, um senhor que fazia uma espécie de boletim de agência de notícias que jamais chegava às bancas. Mas suas notícias acabavam na mesa de um ministro, e se transformavam, em seguida, em chantagem. Até que um dia foi assassinado. Disseram que foi por ordem de Andreotti, ou de outros... Era um jornalista que fazia chantagens e não precisava chegar às bancas: bastava que ameaçasse difundir uma notícia que poderia ser grave para os interesses de outro... Ao escrever o livro pensava nesse jornalismo que sempre existiu, e que na Itália recebeu recentemente o nome de “máquina de lama”.

P.No que consiste?

R.Em que para deslegitimar o adversário não é necessário acusá-lo de matar sua avó ou de ser um pedófilo: é suficiente difundir uma suspeita sobre suas atitudes cotidianas. No romance aparece um magistrado (que existiu de verdade) sobre quem se lança suspeitas, mas não se desqualifica diretamente, se diz simplesmente que é extravagante, que usa meias coloridas... É um fato verdadeiro, consequência da máquina de lama.

A imprensa é ainda uma garantia de democracia”

P.O editor, o diretor do jornal que não chega a sair, diz por meio de seu testa-de-ferro: “É que a notícia não existe, o jornalista é que cria”.

R.Sim, naturalmente. Meu romance não é apenas um ato de pessimismo sobre o jornalismo da lama; acaba com um programa da BBC, que é um exemplo de fazer bem feito. Porque existejornalismoejornalismo. O impressionante é que quando se fala do mau, todos os jornais tratam de fazer acreditar que se está falando de outros... Muitos jornais se reconheceram emNúmero Zero,mas agiram como se estivessem falando de outro.

 

Não pode se limitar apenas a falar do mundo, uma vez que disso a televisão já fala. Já disse: tem que opinar muito mais sobre o mundo virtual. Um jornal que soubesse analisar e criticar o que aparece na Internet hoje teria uma função

P.O jornalista, em particular, está retratado também como um paranoico em busca de histórias custe o que custar, e fica babando quando acha ter encontrado...

R.Acontece quando Bragadoccio encontra a autópsiade Mussolini... Sempre disse, também quando escrevia romances históricos, que a realidade é mais fantástica que a ficção. EmA Ilha do Dia Anteriordescrevo um personagem fazendo um estranho experimento para descobrir as longitudes; é muito engraçado, e as pessoas disseram: “Olha que bonita a invenção do Eco”. Pois era de Galileu, que também tinha ideias loucas de vez em quando e havia inventado essa máquina para vender aos holandeses. Se mergulhar na história pode encontrar episódios mais dramáticos, mais cômicos, e também mais verdadeiros do que os que qualquer romancista pode inventar. Por exemplo, enquanto buscava material paraNúmero Zero, encontrei a autópsia inteira de Mussolini. Nenhum narrador de pesadelos e horrores jamais conseguiu imaginar uma história como essa, e é verdadeira. E a passei para o personagem Bragadoccio, jornalista investigativo, que babava enquanto a utilizava para sua crônica sobre conspiração que inventou.

P.E o senhor não a inventou, claro.

R.Está na Internet, é assim. Então é muito fácil imaginar que um personagem tão paranoico e tão obsessivo como esse jornalista comece a desfrutar tanto da autópsia como das caveiras que encontra na igreja de Milão por onde passa sua história. Também nesse caso da igreja tudo é verdadeiro: tentei desenhar uma Milão secreta, com essas ruas, essas igrejas, que abrigam realidades que pareceriam fantasias...

P.Agora a realidade e a fantasia têm um terceiro aliado, a Internet, que mudou por completo o jornalismo.

R.A Internet pode ter tomado o lugar do mau jornalismo... Se você sabe que está lendo um jornal como EL PAÍS,La Repubblica,Il Corriere della Sera…, pode pensar que existe um certo controle da notícia e confia. Por outro lado, se você lê um jornal como aqueles vespertinos ingleses, sensacionalistas, não confia. Com a Internet acontece o contrário: confia em tudo porque não sabe diferenciar a fonte credenciada da disparatada. Basta pensar no sucesso que faz na Internet qualquer página web que fale de complôs ou que invente histórias absurdas: tem um acompanhamento incrível, de internautas e de pessoas importantes que as levam a sério.

P.Atualmente é difícil pensar no mundo do jornalismo que era protagonizado, aqui na Itália, por pessoas como Piero Ottone e Indro Montanelli…

Internet pode ter tomado o posto do jornalismo mau”

R.Mas a crise do jornalismo no mundo começou nos anos 1950 e 1960, bem quando chegou a televisão, antes que eles desaparecessem! Até então o jornal te contava o que acontecia na tarde anterior, por isso muitos eram chamados jornais da tarde:Corriere della Sera,Le Soir,La Tarde,Evening Standard… Desde a invenção da televisão, o jornal te diz pela manhã o que você já sabe. E agora é a mesma coisa. O que um jornal deve fazer?

P.Diga o senhor.

R.Tem que se transformar em um semanário. Porque um semanário tem tempo, são sete dias para construir suas reportagens. Se você lê aTimeou aNewsweekvê que várias pessoas contribuíram para uma história concreta, que trabalharam nela semanas ou meses, enquanto que em um jornal tudo é feito da noite para o dia. Um jornal que em 1944 tinha quatro páginas hoje tem 64, então tem que preencher obsessivamente com notícias repetidas, cai na fofoca, não consegue evitar... A crise do jornalismo, então, começou há quase cinquenta anos e é um problema muito grave e importante.

P.Por que é tão grave?

R.Porque é verdade que, como dizia Hegel, a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno. E eu não consigo tomar meu café da manhã se não folheio o jornal; mas é um ritual quase afetivo e religioso, porque folheio olhando os títulos, e por eles me dou conta de que quase tudo já sabia na noite anterior. No máximo, leio um editorial ou um artigo de opinião. Essa é a crise do jornalismo contemporâneo. E disso não sai!

P.Acredita de verdade que não?

R.O jornalismo poderia ter outra função. Estou pensando em alguém que faça uma crítica cotidiana da Internet, e é algo que acontece pouquíssimo. Um jornalismo que me diga: “Olha o que tem na Internet, olha que coisas falsas estão dizendo, reaja a isso, eu te mostro”. E isso pode ser feito tranquilamente. No entanto, ainda pensam que o jornal é feito para que seja lido por alguns velhos senhores –já que os jovens não leem— que ainda não usam a Internet. Teria que se fazer um jornal que não se torne apenas a crítica da realidade cotidiana, mas também a crítica da realidade virtual. Esse é um futuro possível para um bom jornalismo.

P.Em seu romance, um editor concebe um jornal que não vai sair às ruas, para dar medo. É uma metáfora do que acontece?

R.E não só isso. EmNúmero Zeroaprofundo a técnica do dossiê. A chantagem consiste em anunciar uma documentação, um informe. A pasta pode estar vazia, mas a ameaça de que existe basta: cada um de nós tem um cadáver no armário ou pelo menos recebeu uma multa por excesso de velocidade há 30 anos. A ameaça da existência de um dossiê é fundamental. A técnica da documentação é como a técnica do segredo. Filósofos ilustres, como Simmel e outros, disseram que o segredo mais poderoso é o segredo vazio. É uma técnica infantil: o menino diz (enganando): “Eu sei uma coisa que você não sabe!”. Dizer que sabe uma coisa que o outro não sabe é uma ameaça. Muitos segredos são vazios, e por isso são muito mais poderosos. Depois você vê os verdadeiros documentos, e são apenas recortes de imprensa. São vendidos a um Governo e aos serviços secretos, ou para a polícia, e são dossiês vazios, cheios de coisas que todos sabiam, menos os serviços secretos.

P.Número Zeroé um romance de ficção, mas tudo pode ser visto na realidade...

R.É do jornalismo real que eu falo. Os jornais especializados na máquina de lama existem. Nem todos os jornais usam essa máquina, mas existem os que a utilizam, e por uma modesta soma de dinheiro eu poderia te dar os nomes...

P.E como sair da lama?

R.Dando notícias credenciadas. O que é maquina de lama? Normalmente é utilizada para deslegitimar o adversário e desacreditá-lo sobre questões particulares. Quero dizer que, na época áurea, se você não gostava de um presidente dos Estados Unidos, já aconteceu com Lincoln e Kennedy, o matava; era, por assim dizer, um procedimento honesto, como se faz na guerra... Por outro lado, com Nixon e Clinton se produziu uma deslegitimação com base em questões particulares. Um incitava a roubar papéis, o outro fazia coisas com uma estagiária... Essa é a maquina de lama. Poderiam ter dito, algo que não aconteceu nos Estados Unidos,que Kennedydormia com Marilyn Monroe; a máquina de lama teria feito isso... Aquele juiz de Rimini do meu livro (que existiu realmente, em outra cidade) foi colocado na máquina de lama: usava meias extravagantes, fumava demais. Na verdade, havia emitido uma sentença que naquele momento não tinha agradado Berlusconi. E o que o maquinário do ex-primeiro-ministro fez foi buscar desacreditar sua reputação por meio de episódios menores. Pode se deslegitimar Netanyahu pelo que faz com a Palestina. Mas acusá-lo, por exemplo, de pedófilo, então já não estará trabalhando com fatos, mas estará colocando em funcionamento a máquina de lama.

P.Contra a máquina de lama…

R.As provas, as notícias rebatidas. Para a máquina de lama é suficiente difundir uma sombra de suspeita ou trabalhar sobre uma fofoca menor. No fim, na Itália, Berlusconi foi colocado contra as cordas contando o que ele fazia à noite em sua casa. Podiam dizer dele, e disseram, coisas muito mais graves, sobre seus conflitos de interesse, por exemplo. Mas isso deixava o público indiferente. E quando se provou que ele estava com uma menor de idade, então se viu em dificuldades. Como você pode ver, até defendo o Berlusconi! Ele foi vencido a partir de revelações sobre sua vida pessoal mais do que por notícias sobre fatos verdadeiros e outras coisas pelas quais é responsável.

P.O senhor cita em seu livro a Operação Gládio em relação a fatos que ocorreram após a Segunda Guerra Mundial... Entram aí até as suspeitas sobre a autoria da matança dos advogados de Atocha... Aquela sombra da extrema direita agora volta ao mundo com os atentados islâmicos. Um mundo sombrio outra vez. Qual a sua opinião desse momento outra vez sangrento,protagonizado dessa vez pelos terroristas jihadistas?

R.É como o nazismo: pensava em restabelecer a dignidade do povo alemão matando todos os judeus. De onde nasce o nazismo? De uma profunda frustração. Tinham perdido uma guerra, e é nos momentos de grandes crises que o cacique de um povo pode congregar a opinião pública em torno do ódio contra um inimigo. Acontece agora com o mundo muçulmano: três séculos de frustração, após o império otomano, após o imperialismo, surge essa frustração em forma de ódio e fanatismo...

P.E como se luta contra isso?

R.Não sei. Estava muito claro como se podia lutar contra o fanatismo nazista, porque os nacional-socialistas estavam em um território identificável. Aqui a coisa é mais complexa.

P.Tem medo?

R.Não por mim, por meus netos.

P.O senhor escreveu um livro em que um jornal da lama faz batalhas sujas sem sair às ruas... Cogita que um dia não haja jornais?

R.É um risco muito grave, porque, depois de tudo que disse de mau sobre o jornalismo, a existência da imprensa ainda é uma garantia de democracia, de liberdade, porque especialmente a pluralidade dos jornais exerce uma função de controle. Mas, para não morrer, o jornal tem que saber mudar e se adaptar. Não pode se limitar apenas a falar do mundo, uma vez que disso a televisão já fala.Já disse: tem que opinar muito mais sobre o mundo virtual.Um jornal que soubesse analisar e criticar o que aparece na Internet hoje teria uma função, e até um rapaz ou uma moça jovem leriam para entender se o que encontraramonlineé verdadeiro ou falso. Por outro lado, acho que o jornal ainda funciona como se a Internet não existisse. Se olhar o jornal de hoje, no máximo encontrará uma ou duas notícias que falam da Internet. É como se as rotativas nunca se ocupassem de sua maior adversária!

P.É adversária?

R.Sim. Porque pode matá-la.

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A Internet cria "um leitor mais burro e mais violento"

O décimo romance de Bernardo Carvalho é sobre a incapacidade de comunicar este presente incessantemente mutante e narcisista.Reproduçãopõe o dedo na ferida do debate político pós-Internet, o lugar do lugar-comum.

Bernardo Carvalho vem de um país “sem leitores”, o Brasil: “No livro há esse desespero de uma língua, de uma escrita feita para um mundo que não quer recebê-la”

 

Bernardo Carvalho estava a viver em Berlim quando o convidaram a escrever um conto para o livro comemorativo dos dez anos da Festa Literária de Paraty. O conto foi escrito e publicado, mas o sentido de urgência que levou o autor a escrevê-lo não se esgotou e o conto tornou-se um romance, Reprodução. É a reacção de Bernardo de Carvalho a este mundo que privilegia o discurso único, a leitura de primeiro grau, sem ironia nem imaginação, a ideia de que existe uma verdade num meio que parece absolutamente democrático, quando a democracia tem pouco a ver com absolutos.

Num aeroporto, um homem é detido quando vai apanhar um avião para a China. É um brasileiro, estudante de chinês, que as autoridades associam a um caso de tráfico. A acção do décimo romance de Bernardo Carvalho– vencedor, a par com Dalton Trevisan, doprémio Portugal Telecomem 2003, comNove Noites(Cotovia)– desenrola-se à medida que o monólogo do estudante de chinês, leitor de blogues, activo nas redes sociais, entra num ritmo alucinado, em que ele despeja informação, manifesta opiniões, escuta outros monólogos, defende uma coisa e o seu contrário de forma tão convicta quanto irritante. O protagonista serve a Bernardo de Carvalho, o escritor de 55 anos natural do Rio de Janeiro, para compor um romance tão atento quanto de denúncia, irónico, inquieto e angustiante no modo como expõe manifestações de linguagem e através delas faz o retrato de uma época para a qual parece faltar um discurso à altura.

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Reprodução

 

Autoria: Bernardo Carvalho

Quetzal

Conversa a partir de Paris, onde o escritor brasileiro participou num festival literário. 

Este romance parece ter nascido de um impulso. Foi assim?

Sim, um pouco por uma urgência que veio de uma observação política. Acabei reconhecendo em pessoas que abomino, em discursos que odeio, coisas com as quais concordo. Acontece ouvir alguém, estar de acordo e acompanhar o discurso, acreditando que é bom, e de repente dar-me conta de que quem falava era um representante da extrema-direita, por exemplo. Essa mobilidade dos discursos, o terem saído do lugar de conforto no qual eu podia reconhecê-los, inquieta-me. O livro vem do desconforto de não saber como me posicionar politicamente nesse mundo actual. 

O estudante de chinês, protagonista do romance, encerra essa contradição.  

Sim, foi quando comecei a imaginar esse discurso. 

É esse estudante que diz que “a contradição é a força e a fraqueza da democracia”. O livro interroga-se sobre o que acontece quando se acaba com o contraditório no discurso. Também no discurso ficcional?

Claro. A grandeza da democracia é que se pode conviver com a contradição e essa contradição não precisa de ser eliminada, faz parte da estrutura social. Nas sociedades autoritárias não existe contradição, existe uma deliberação única de uma fonte única. Uma vez entrevistei o Lévi-Strauss e ele dizia que a grandeza e a fraqueza das sociedades ocidentais é que elas trazem dentro um gene suicida. A sua grandeza é mostrar a própria vulnerabilidade. Mas ao mesmo tempo possibilita muitos extremismos. Como é que uma sociedade que defende os direitos humanos faz o que faz com os palestinianos, por exemplo? Há muitas contradições internas que enfraquecem o próprio discurso da democracia. É aí que está a força desse mundo que se deixa contaminar, se expõe à contradição. Isso é incrível, mas muito difícil de manter. Vejo uma espécie de oportunismo generalizado de apropriação dos discursos, o que é muito assustador. O livro não apresenta solução; é o retrato dessa perplexidade e desse incómodo; dessa impotência perante a apropriação dos discursos que antes estavam bem definidos. [Osório diz: bem definido para quem? Essa é a força motriz que o discurso impõe a si mesmo para sua própria superação. Nenhum discurso está pronto e acabado, ele sempre pode e deve ser melhorado por sua própria superação e é isso que o faz melhor rumo a uma “verdade” que, de qualquer modo, jamais existirá].

O discurso está sempre em forma de monólogo. Essa escolha pretende sublinhar uma ilusão de diálogo?

É outra urgência. Não há a fala de um interlocutor. Expressa a ideia da Internet, um lugar de espelho em que se acha que se está numa relação com o outro e na verdade se está sempre a reproduzir o mesmo. É quase uma relação narcisista. [Osório diz: como se nos meios de comunicação tradicional um dia tivesse havido tal interlocutor. Ao contrário, agora há pelo menos um interlocutor – aquele atingido pela publicação – que pode manifestar-se pondo ou repondo sua “verdade”].

Falta o contraditório?

Exacto. Tudo o que é contradição você apaga. Parece que há abertura ao outro mas só se procura o mesmo. Posso aprender algumas coisas, mas estão sempre dentro de uma circunscrição que já domino por antecedência. É uma espécie de espaço hedonista e isso é muito perverso porque a partir do momento em que se entra nisso é como uma droga; é uma fonte de prazer absoluto e elimina qualquer necessidade de esforço, de contradição. [Osório diz: antigamente você nem se dava ao trabalho de apagar! Simplesmente não publicava. Hoje você, o apagado, pode escrever o que foi apagado em outro local e com os sítios de buscas isso fica superado e a resposta fica externada].

Ilusãode companhia, ilusão e conhecimento; ilusão de opinião; ilusão de informação e ao mesmo tempo uma crítica ao modo como o discurso jornalístico está a reagir a esse novo espaço, recusando o seu papel de mediação; ilusão sobre a capacidade do discurso actual para reflectir a realidade actual. Ou seja, há uma incapacidade de comunicar?

Acho que sim. Parece que com esta proliferação de opiniões todo o mundo passou a se expressar e no final talvez não haja muita diferença entre os milhões de opiniões; elas acabam no lugar-comum. [Osório diz: mas isso a impressa tradicional não foi capaz de ver e promover. Ela pura e simplesmente não se dispunha a publicar as diferenças, até para que se comprovasse que tinham um lugar-comum].

É a tal reprodução de que fala o título?

É. Mas iludida. As opiniões são insatisfatórias. Isso é estranho. Dá uma sensação de incompletude, de uma opacidade que não permite que se enxergue o mundo de verdade. E é infinito. [Osório diz: qual opinião jornalística anterior à internet foi satisfatória? Nunca existiu tal satisfação a que o autor se refere. Sempre tinha alguém pondo reparo. A incompletude é própria do saber, pois este é limitado. Ou os jornalistas são donos da verdade? E qual “é esse mundo de verdade”? Leia-se aqueles espaços “contra” e a “favor” que rapidamente se percebe que a tal verdade é ilusória, acabando-se por impor o discurso melhor formulado naquele momento, mas que não traz nenhuma garantia de que é finito e imutável, como aqueles que falam de verdade a veem!]

Qual é a sua relação com a Internet?

Sou viciado. Não passo dez minutos fora da Internet. Sou um doente. Quis dar a perspectiva crítica de uma situação na qual estou realmente perdido. [Osório diz: melhor seria ter feito sua crítica em forma de perguntas, não na de afirmações].

Voltando ao discurso jornalístico que também conhece e que põe aqui em causa: os jornais e os meios de informação que têm função de mediar a realidade passaram a ser decididos pelos leitores, com o mercado a definir conteúdos e o leitor a transformar-se em decisor. Se o leitor não gostar, o jornal não dá. 

É muito perverso. O princípio seria mais democrático. Questiona-se a autoridade do jornal porque tem na origem um interesse económico preciso. A ideia é que a Internet pulveriza essa autoridade dosmedia, o que parece bom, dá um sentido de democratização à informação, mas perdem-se noções de hierarquia, padrões, modelos, e é difícil estabelecer qualquer tipo de diálogo se não houver um parâmetro… Esses parâmetros perderam-se na barafunda de opiniões e de informações e acreditamos em absolutamente tudo o que se publica na Internet. Tudo o que surge na Internet vira facto. Talvez isso estivesse nosmedia, mas lá há mediação, uma auto-censura que não permitia reproduzir qualquer coisa. Isso põe muitas coisas em causa, sobretudo a ideia da verdade, é como se fosse uma segunda natureza. [Osório diz: perfeito! O interesse econômico jamais dará margem à informação que o prejudique. Exemplo: empresas jornalísticas do Brasil são donas de operadores de telefonia, sendo essas as maiores violadoras de direitos dos consumidores. Poderá um jornal divulgar matéria contra sua coirmã? Só isso já é suficiente para encerrar e por fim ao que o autor diz após, mas prossigamos. Vejam o que ele contrapõe à democratização da informação: hierarquia, padrões e modelos! Hierarquia uma palavra que jamais perderá seu ranço militar de obediência. Sim. Os jornalistas profissionais têm que ser obedientes aos seus editores e estes aos donos dos jornais, o que remete ao “interesse econômico”! Padrões quais e o que seriam? Eu não sei, mas me conformo com o conteúdo, independentemente da forma. Modelos também me remetem a forma. Sendo que a somatória de tudo, o parâmetro, é: não prejudique com a informação os nossos negócios (interesses econômicos) pois são eles que mantém o jornal e similares. A barafunda de informações, para quem quer se informar é a melhor coisa, pois é desse pandemônio que se pode tirar o suprassumo do que se quer saber, não daquele produto que já vem pasteurizado e não lhe dá alternativa crítica. Claro que a pessoa terá mais trabalho, mas não existe aquisição do saber sem ele. Penso que sobraria aos jornais o espaço para fazer realmente um jornalismo de qualidade, mostrando as várias versões de um fato, por exemplo, e optando por aquela que para ele fosse a “verdadeira”, embora eu pense que isso vai de encontro aos seus interesses econômicos, já que a “verdade” é um produto que nem sempre interessa ser vendido, principalmente quando quem financia a imprensa a quer longe desta].

Uma verdade absoluta?

Exactamente. [Osório diz: um estudioso jamais pode trabalhar com a ideia de “verdade absoluta”! Isso é coisa para fanáticos de todos os matizes, em especial os religiosos].

Há uma interrogação sobre a função do romance quando uma personagem questiona o género e o remete para um lugar de facilidade, que não reflecte nem reage à realidade. Este romance tem também o propósito de mostrar ser o contrário dessa ideia?

Eu não tenho qualquer tipo de crença, não acredito em Deus, mas tenho uma relação com a ficção literária um pouco semelhante à de uma religião, quase dogmática. Acredito que, de alguma forma, se pode chegar à verdade por meio da literatura e da ficção literária. Acho que a verdade só pode ser alcançada de uma maneira indirecta, transversal, mediada, e vejo a literatura como uma forma de reflexão muito sofisticada. Uma forma não só de retratar a realidade, ou de ser reflexo da realidade, mas também de aceder à verdade. Com a Internet isso foi pelo ar, não há ironia na Internet. É sempre um discurso de primeiro grau. Cria leitores iletrados para a literatura, para a ironia, para a reflexão. [Osório diz: quando falei sobre dogmatismo, acima, não tinha lido ainda essa confissão do autor! Achei muito boa a missão que ele dá à literatura. É meio heideggeriano no tema, embora Heidegger seja uma criança diante dos verdadeiros homens que viram a poesia como a única forma de criar a verdade! No mais, o autor quer dar à internet o mesmo cabedal, o mesmo patrimônio de que goza a literatura, sem perceber duas coisas: a juventude da internet diante da escrita, por exemplo e que, a internet é um meio, como a escrita também o é para a literatura, de modos que não vejo incompatibilidade entre literatura e internet, bastando que aquela se sirva desta como se serve da escrita “impressa”. Aliás, o sucesso das máquinas de leitura eletrônica (os leitores de livros eletrônicos) aponta para isso, pois ela nada mais são que instrumentos eletrônicos (siameses da internet) que trazem conteúdos literários. Esta entrevista mesmo, eu a descobri e a li via internet e pela internet a estou comentando! É claro que milhões de pessoas escrevendo na internet podem gerar uma quantidade enorme de textos de baixa de qualidade, mas, neste caso, o importante, creio eu, é a quantidade, não a qualidade, embora essa vá “brotar do lodo”. Quem escreve na internet, mesmo escrevendo mal, escreve alguma coisa, o que antes era impensável. E o escreve se aprende escrevendo, como o “amar se aprende amando”].

A Internet muda o leitor?

Muda, mas para um leitor mais burro e mais violento. É o mesmo leitor que não suporta ver uma caricatura do profeta Maomé, que a ficção possa ser uma reflexão sobre a realidade e não a própria realidade. Acho assustador esse leitor que a Internet incentiva, sem instrumentos para entender a ironia e o distanciamento. A ideia de romance que defendo é uma resistência a essa facilidade, a essa naturalidade da Internet. O romance, como o entendo, é um instrumento de guerra contra a percepção naturalista do texto em geral, como se a letra fosse necessariamente a verdade e não uma reflexão sobre o mundo. Faço isso ao mesmo tempo que brinco, que vou dizendo coisas de que discordo com muita convicção. Quanto mais eu dizia coisas horríveis, mais prazer eu tinha, mais feliz eu ficava. O facto de no livro o discurso da resposta estar em elipse criou um mecanismo estranho na minha cabeça, uma espécie de automatismo; eu ia escrevendo aquilo como se fosse um vómito, e foi com muito prazer. [Osório diz: ao contrário! Milhões de pessoas estão lendo mais, mesmo que para o autor, leiam besteiras, mas é melhor ler alguma coisa que não ler nada! O problema da violência está no homem, não no leitor, embora o leitor seja um homem. A leitura pode acalmar, pacificar, fazer sonhar com um mundo melhor! Vejam que o próprio autor vê o romance como um instrumento de guerra! Quer coisa mais violenta que isso? Mas para ficarmos na literatura, Caim matou Abel sem que tenha lido antes um único livro, daí minha implicância, nesse tema, com o homem, que pode sim ser melhorado pela leitura, pois foi isso o que ocorreu nos países ditos desenvolvidos. Ou eles se desenvolveram com a guerra pura e simples? Não é nem todos os leitores de romance que entendem o que é ironia e distanciamento, e são eles alguns “gatos pingados”, imaginem os milhões da internet, mas é justamente bom que ela exista para que num futuro, daqui a dois mil e quinhentos anos, data aproximada da escrita, venha a ter o leitor ideal buscado pelo autor. E contra os que vomitam seus ódios devem escrever autores como o entrevistado, mostrando-lhes e ensinando-lhes outras possibilidades. Por fim, não é o leitor que não suporta ver uma caricatura de Maomé, mas os fanáticos sobre os quais falei acima, e estes não precisam de internet para serem o que são, pois o fanatismo é bem mais velho que ela].

Tenho uma relação com a ficção literária um pouco semelhante à de uma religião, quase dogmática. Acredito que se pode chegar à verdade por meio da literatura

Bernardo Carvalho

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ENRIC VIVES-RUBIO

O modo como o faz torna difícil distinguir autor de personagem. Alguma vez sentiu essa colagem de identidade?

A aventura e o risco eram justamente esses, me confundir. Eu queria criar essa dificuldade, essa personagem que não era absolutamente a caricatura do meu oposto, mas me confundia nessa voz horrível. Há um pouco de autobiografia, ele diz algumas coisas em que acredito, e também estudei chinês ao longo de seis anos, também tive uma professora como a dele. E ele vai perdendo a ironia, o riso se esvai numa espécie de desconforto e mal-estar. Nos discursos do horror é difícil detectar fronteiras. É aí que está o horror. Tudo vem da inabilidade de discernir onde está o bem e onde está o mal. [Osório diz: nos discursos de bondade também! Vejam o sorriso do Papa Francisco! Aquela doçura tem fronteiras? Mas é melhor fazer o discurso do medo, embora se condene os fanáticos de Maomé!].

Já escreveu muito sobre o Oriente, volta lá agora para encontrar o sítio de que se tem medo, o sítio da língua do futuro, sem memória, sem passado. Porquê?

Há uma personagem que refere um livro que fala do desaparecimento das línguas e que diz que quantas mais línguas houver no mundo menos chances há de o ser humano desaparecer, e que quanto menos línguas houver mais o ser humano fica vulnerável. Eu queria falar de uma certa pasteurização pela língua, e o chinês seria essa língua hegemónica. Podia ser o inglês, mas escolhi o chinês porque era uma língua periférica para o Ocidente e ganhou hegemonia. Hoje é uma língua do poder. Há a ideia da língua absoluta, que se impõe e vai destruindo as outras, tornando o homem mais vulnerável pela falta de diversidade, de variedade. O português fez isso com as línguas indígenas. O Brasil tinha centenas de línguas que foram desaparecendo. [Osório diz: queremos o entendimento entre os povos, mas não falar a mesma língua! Devo pensar melhor sobre isso].

O estudante diz: “o que eu estou querendo dizer só poder ser dito na língua do futuro”. Sendo escritor, esta incapacidade da língua em relação ao presente de que fala inquieta-o?

Ele fala também da língua oral. Como escritor, o que toca mais é a ideia da língua escrita. No Brasil isso é muito peculiar, sendo um país iletrado. Escrevo num país onde não se lê. Isso é muito estranho. Por um lado, há uma coisa interessante, de que pode ser um excelente exemplo o Machado de Assis quando escreveu oMemórias Póstumas de Brás Cubas e passou dos romances mais tradicionais para uma espécie de revolução: ele teve consciência de que não devia nada a ninguém e isso deu-lhe liberdade e a possibilidade de escrever uma coisa incrível e revolucionária. Mas há também uma angústia de fundo: escrever sem leitores, escrever para um mundo que não lê. Toda a literatura brasileira foi feita, desde sempre, com o pensamento de que se está num lugar para o qual não fomos feitos e mesmo assim você continua fazendo, reage a esse mal-estar, a essa não-pertença. No livro há esse desespero de uma língua, de uma escrita feita para um mundo que não quer recebê-la. É como se fosse uma teimosia, uma resistência. [Osório diz: incapacidade da língua! Gosto das onomatopeias e as vejo como completamente convencionais, sem qualquer sentido com a realidade].

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JAVIER MARÍAS | ESCRITOR 

“A Internet organizou a imbecilidade pela primeira vez”

 

Javier Marías, de ‘Assim começa o mal’, lançado no Brasil, completa 64 anos irritado

 

·      “Os romances devem ser tão ambíguos quanto a vida”, diz o autor

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LUIS SEVILLANO

Um dos maiores escritores espanhóis contemporâneos,Javier Marías acaba de completar 64 anos e se diz irritado com a política na Espanha, a Internet e outras coisas mundanas. Seu romanceAssim começa o maluma trama de embustes e segredos durante a Transição espanhola, considerada por muitos críticos o melhor livro de ficção de 2014 – acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras. Confira o bate-papo do autor com o EL PAÍS, de que é colaboradorprolífico.

Pergunta.Você reuniu 95 artigos publicados no EL PAÍS SEMANAL sob o títuloJuro No Decir Nunca La Verdad(“juro não dizer nunca a verdade”, lançado na Espanha pela Alfaguara). Eles refletem um período em que seu desassossego civil cresceu. O que lhe sossega?

Resposta.Sou bastante desassossegado, inquieto, às vezes nervoso. Desde que amanhece. Talvez me acalme quando saio para caminhar sem celular. Eu o uso nas viagens. Sinto-me mais a salvo quando não estou ao alcance de ninguém.

P.Dizia Kafka que despertar é o momento mais arriscado do dia.

Estes quatro anos de legislatura [na Espanha] foram irritantes e injustos"

R.Para mim é o pior. Aos 25 ou 30 anos, era o de ir dormir: eu começava a me preocupar com o futuro. Agora, acordo atemorizado: custo a me acostumar à ideia de que devo começar o dia.

P.E já não há mais sossego.

R.Vejo as manchetes e tudo me parece mais grave do que é. O sobressalto me dura até que eu me molhe, até submergir na banheira.

P.E depois se molha escrevendo...

R.Você escreve na imprensa para se banhar nas suas opiniões ou para não calá-las demais. Tento raciocinar, explicar por que alguma coisa me parece estúpida, injusta ou errada.

P.O que a realidade lhe fornece como escritor?

R.Ela me serve para estar mais atento. Se eu só fosse romancista, correria o risco de ficar com a cabeça nas nuvens. Escrever na imprensa me deixa um pouco mais desperto.

P.A classe literária tende a ter a cabeça nas nuvens?

R.Há aqui [na Espanha] a tradição de romancistas que colaboraram na imprensa. A maneira de um romancista enxergar a realidade pode ser útil num país.

P.Pode-se interpretar por seus artigos que sua irritação cresceu?

R.É difícil saber se isso é porque me tornei mais resmungão! Ou porque há mais motivos para estar de mau humor. Ou porque agora chego aos 64 anos, uma idade que os Beatles consideravam revoltante. Mas estes quatro anos de legislatura [na Espanha] foram irritantes e injustos.

P.Você qualifica esta época de grosseira e brega. Seriam adjetivos contraditórios, mas complementares?

R.Se não estiverem unidos, às vezes se alternam na mesma pessoa. Há uma grosseria deliberada e, depois, o mesmo indivíduo solta uma breguice descomunal no artigo seguinte, se falamos de escritores da imprensa.

P.Você fala também de baixeza, de vilania. O que houve, Marías?

R.Nunca fomos um país muito educado; os períodos democráticos verdadeiros foram escassos e duraram pouco, com exceção do atual. E parece que houve uma regressão. Há um pouco de baixeza na Espanha que reemergiu agora. Jovens que nasceram nos anos oitenta agora insultam este período; esse propósito de desprestígio me enche de perplexidade: é o melhor de todos os que tivemos. Nessa atitude há uma espécie de pulsão autodestrutiva que se dá aqui e que espero que não se consolide.

P.Poderia ser ufanismo da ignorância?

As pessoas se intimidam diante dos internautas exaltados e se desculpam sem razão"

R.Sim. Ignora-se a história, falseia-se... Esqueci de dizer: a Internet tem coisas maravilhosas, mas há algo que é novidade: pela primeira vez a imbecilidade está organizada. Sempre houve imbecilidade; imbecis iam ao bar, tornavam públicas as suas imbecilidades, mas é agora que se organizam, com grande capacidade de contágio. E há um problema agregado: as pessoas se intimidam diante de internautas exaltados e se desculpam sem motivos. E as pessoas sofrem represálias. É truculência. E não há melhor forma de a truculência triunfar do que se intimidando e se amedrontando. A Espanha é um país particularmente adepto da truculência. [Osório diz: Diria que a imbecilidade não foi organizada, uma vez que ela sempre esteve organizada, e até mais, na imprensa tradicional, o que ocorreu foi que ela se expandiu enormemente. Cada indivíduo passou a ser um jornal, um canal de TV em potencial, basta para isso algum talento e disposição. A imprensa tradicional perdeu o privilégio da organização e controle da imbecilidade, no máximo].

P.Você diz que estamos em perigo de regressão.

R.Sempre. Há agora sintomas de que isso pode dar errado. O dano é uma constante da vida espanhola: há uma espécie de pulsão autodestrutiva que agora dá as caras outra vez. Tomara que eu esteja errado, mas, sim, vejo perigo.

 

Fonte: Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/24/cultura/1443105759_175114.html, JUAN CRUZ1 OCT 2015.