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Foro por prerrogativa de função: sou a favor, em termos

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Gostaríamos de iniciar este escrito citando dois exemplos relacionados ao tema a ser desenvolvido:

1) "Bush telefonou para González nesta terça, disse Perino. Eles conversaram longamente sobre a turbulência política desencadeada pela recente demissão de oito procuradores federais". (Fonte: http://www.estadao.com.br/ultimas/mundo/noticias/2007/mar/20/142.htm, acessado em 16.05.07).



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2) "A aposentadoria de Chirac, no entanto, pode ser marcada por investigações de corrupção durante seu mandato como prefeito de Paris, entre 1977 e 1995. Seu partido, União por um Movimento Popular (UMP), foi acusado de beneficiar-se de financiamento ilegal. Até agora, o presidente estava protegido pela imunidade que o cargo lhe proporcionava – privilégio que perderá a partir de 16 de junho", (Estadão, 16.05.07, A11).

Invertendo a ordem acima, temos a França, colonizadora cultural do mundo até recentemente e seu substituto, os Estados Unidos, sendo que hoje, tudo que presta ou que não presta no Brasil costuma ter como paradigma o que acontece nos Estados Unidos, país que desejamos fazer um espelho capaz de, diversamente do espelho de Narciso, esconder as nossas fealdades ou as nossas belezas, tudo a depender do interesse que aquele que escreve queira defender!

Estabeleçamos, também, duas premissas:

1) Com Will Durant, que "ciência é o conhecimento organizado".

2) Com Tercio Sampaio Ferraz Jr., que o que chamamos de Direito e seus postulados, instituições, conceitos e definições, são todas formulações fluidas, confusas, indefinidas e até indefiníveis, tudo se resumindo no ato daquele que tem o poder de decidir. Aliás, quem ler a Introdução ao Estudo do Direito do nominado mestre, percebe que as bases "sólidas" do Direito são equiparáveis às bases que tem uma cereja sobre uma taça contendo gelatina!

Pois bem, vive-se discutindo o fim do que se costuma chamar de "foro privilegiado", como o denomina a notícia acima, a fim de que a carga semântica negativa que envolve o termo faça dissuadir qualquer possível defensor de sua existência, pois quem é ousado o suficiente para, aberta e lucidamente, defender o "privilégio" de uns em detrimento de outros? Por isso, jamais se usa a terminologia correta e apropriada: foro por prerrogativa de função. O subscritor da notícia prefalada até se esforça nesse sentido, quando diz: "o presidente estava protegido pela imunidade que o cargo lhe proporcionava", embora, sem seguida, entenda isso como "privilégio".

As palavras não mudam a natureza das coisas, sabemos disso, "um sapo jamais deixará de ser um sapo, embora venha a ser chamado de príncipe". Mas o que fazem os opositores do foro por prerrogativa de função é tentar trazer para sua causa os desinformados, e por isso, crentes, e não pensadores.

Imaginemos que Deus, a natureza ou o acaso, tenha criado os seres humanos. Podemos impingir a quaisquer dessas causas culpa por ter dado a uns dons (inteligência) que negou a tantos? Por que não nos fez a todos Michelangelo? Ou da Vinci? Ou Aristóteles?

Podemos acusar Deus ou o acaso de discriminadores?

Pois bem, observado a vida, deve o homem nela colher o melhor material que puder para tentar organizá-la e, assim, permitir a convivência de milhões de pessoas em sociedade. É isso que deve fazer o Direito, com todas as suas falhas e lacunas.

A lei diz que todos somos iguais perante ela, mas nessa igualdade abre inúmeras exceções, algumas mais, outras menos defensáveis.

Enquanto centro irradiador de potencialidades e merecedor de respeito à sua dignidade, não temos dúvidas em afirmar que todos são iguais, embora reconheçamos que as potencialidades têm limites: quem nasceu perna-de-pau jamais chegará a Maradona!

As vaidades e paixões humanas não têm limites, disso todos sabemos, e, às vezes, quem veste a capa de justiceiro vingador se perde no seu próprio mundo e só tem olhos para a sua própria realidade, alijando qualquer posicionamento que não se ajuste ao seu: se a montanha não vem a Maomé, azar da montanha!

Um exemplo que não custa lembrar – pois a organização da burocracia estatal teve origem na organização militar, onde ainda impera e devem imperar os princípios da disciplina e da hierarquia –, temos naquele trazido pelos defensores do fim do foro por prerrogativa de função, que desejam que aquele julgador situado (ainda) num grau hierarquicamente inferior julgue o seu superior hierárquico!

Não negamos que, no grau hierárquico inferior pode e deve haver pessoas mais inteligentes que algumas que já ascenderam a um nível mais elevado na carreira funcional, contudo, o que se tem observado ao longo da história da humanidade é que sempre há, em todas as instituições, um afunilamento quando se aproxima do topo da Administração (do poder de dirigir). Assim, nas monarquias, no presidencialismo e no papado. Ou seja, no topo, apenas "um" decide, cabendo aos que estão na base e na metade da pirâmide obedecer. Caso contrário não se terá aquela instituição, mas uma outra qualquer.

Não podemos esquecer, ainda, da mestra que é a vida, as lições que nos dá e as corrigendas que nos impõe.

Assim, quem chega aos órgãos de cúpula das instituições já passou por todas as fases pelas quais aqueles que estão na base ainda estão e estarão passando, já aprenderam lições que aqueles ainda terão que viver muito tempo para com elas se depararem. Tudo isso nos demonstra que não há erro, em serem as instituições hierarquizadas, como ocorre na própria família, onde o pai e/ou a mãe é o primeiro dirigente da casa, sendo que os filhos que costumam contestar esse caminho sulcado pelo arado da experiência costumam se dar muito mal mais adiante, e voltam se apegando à tal parábola do filho pródigo. Além, os triunviratos romanos fracassaram!

A experiência da vida privada e cotidiana é levada para as instituições que tentam manter a convivência harmônica no seio social. Assim, como poderia, por exemplo, um desembargador (membro de hierarquia superior de um tribunal) ser julgado por um juiz de direito (membro de hierarquia inferior de um tribunal), por exemplo?

É o desembargador quem julga se o juiz deve ou não ser promovido na carreira. Imaginemos que, COM JUSTA RAZÃO, o desembargador recuse a promoção de um juiz. Este, inconformado com a preterição, PARA ELE, INJUSTA, como costumam ser "injustos" todos os atos que nos desagradam, resolva revidar, julgando o desembargador. Estranho, não?

Vejo essa possibilidade sempre presente no ser humano, o qual, ao ser corrigido (portanto, estando errado), buscar a vingança para "seu" agravo!

Juízes e outros insensatos não faltam. O simples fato de atuar numa instância inferior não faz o magistrado melhor que aquele que atua na instância superior. Portanto, o foro por prerrogativa de função não impede o justo julgamento, pois a Justiça não é privilégio de alguns iluminados que ainda estão iniciando em uma carreira.

Não costumamos perceber as diferenças que o mundo nos impõe, e continuamos a teimar contra elas, fato que, se positivo em alguns casos, como a busca pela cura de doenças, por exemplo, não pode ser estendido a tudo que nos cerca. Volto a repetir: nem todos serão Picassos na vida!

Pessoas como Paulo Autran levam milhares de outras pessoas aos teatros, onde permanecem caladas a ouvir o que diz e faz o mestre. Paulo Autran merece ser tratado diversamente dos demais? Sim e não. Sim no desenvolvimento de sua arte e não ao "furar" o farol vermelho.

Tratar Paulo Autran, no desenvolvimento de sua arte, como todos os demais, seria universalizar o tratamento que todos merecem? É obvio que não, pois ele é ou está diferenciado dos demais, cabendo aos outros fazer essa diferenciação elementar. Essa diferenciação não fere a universalização, especialmente pelo número reduzido de beneficiados (são raros os Paulos Autrans!). Ademais, no caso dos tribunais, não é só o primeiro grau que é dotado de moralidade, republicanismo e bom senso. Corrupção e outros males podem ocorrer em todos os níveis do Poder Judiciário.

Uma acusação que se costuma fazer contra o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, que julga várias autoridades com foro por prerrogativa de função, é que ele nunca condenou ninguém e que lá os processos prescrevem constantemente. Que o STF nunca condenou ninguém é uma verdade, mas quantos processos prescrevem, também, em outros juízos de primeiro grau e tribunais? Que existem cidadãos honestos é uma verdade incontestável, mas quase todos os honestos, infelizmente, têm deixado de sê-lo assim que têm oportunidade para tal. Ocorreria isso apenas por causa do foro privilegiado? Não acreditamos tal assertiva.

Outra acusação que se costuma fazer é que há um compadrio entre os Parlamentares os Ministros do STF, que os julgam! Temos por absurda a pecha. Não podemos esquecer que se há tal promiscuidade, ela não ocorre apenas entre os Ministros do STF e os Parlamentares, mas, também, entre estes e os membros do Ministério Público, por exemplo, já que os subsídios destes últimos são votados por aqueles. Ou seja, todos (empresários, donas de casa, religiosos, professores etc.) vivem solicitando dos "malfeitores" do Brasil que assumam nossas causas, especialmente as salariais.

Como se pode ver acima, a França, país do fim dos privilégios, continua com o foro por prerrogativa de função para seu presidente, numa prova de que os ideais igualitários têm limites!

Costuma-se dizer que a dignidade da autoridade vêm do foro por prerrogativa de função, mas, na verdade, a dignidade não vem do foro, pois este é conseqüência daquela. Ou seja, primeiro dignidade, depois foro, e não o contrário. Se a distinção é previamente estabelecida (concessão de foro especial) e a dignidade vem das ações, como dizer, antecipadamente, que a ação a ou b, é criminosa ou ímproba? Não é necessário anterior julgamento para isso? E se aquele que temos como probo provar que não o é, o foro onde foi julgado fará diferença? Collor foi julgado e absolvido pelo Supremo, mas para grande número de pessoas e a imprensa continua criminoso. Será que a justiça só faz Justiça quando derrama sangue? O caso Collor é exemplar, pois como disse alguém, o STF não é uma instância de condenação, mas sim de julgamento, mas, no caso Collor, continua contestado. Se a absolvição fosse de um juiz de primeiro grau, estaria tudo bem com a decisão? Ademais, qual a finalidade de tornar um processo extremamente longo para chegar a um mesmo resultado? Ou os processos contra autoridade com foro por prerrogativa de função estarão impedidos de chegar ao STF? As idéias republicanas, hoje, não podem ser dissociadas das idéias democráticas. Sendo assim, podemos dizer que a Suécia, por exemplo, que não é republicana, é uma monarquia de "bananas", como são nossas repúblicas? Hoje, acredito, que ninguém discorda que todos os homens são iguais em Direitos, mas dizer que as responsabilidades do presidente da República são iguais as do ascensorista do elevador do Palácio do Planalto, é um exagero! É a utilidade comum mesmo que faz estes dois servidores públicos tão diferentes!

Imaginemos o presidente da República sem foro por prerrogativa de função. Bastava que contra ele fosse instaurada uma única ação em cada um dos Estados da federação para que se inviabilizasse qualquer Administração. Teria ele que estar presente e responder aos termos de cada ação todos os dias e em lugares diversos. Como governar? Isso não faz o presidente da República diferente do ascensorista?

Além do mais, acreditamos que o foro por prerrogativa de função dá àquele que é por ele contemplado, maior independência para o exercício de suas funções. Imaginemos que o presidente da República, a todo instante, pudesse ser preso por qualquer juiz de direito. Seria a institucionalização do descalabro.

Basta que usemos a nomenclatura correta: foro por prerrogativa de função, para que afastemos a possibilidade de sua extensão a ex-autoridades que a ele faziam jus quando em atividade. Assim é que Chirac poderá ser investigado. Não o fora antes por estar no exercício da presidência, pode ser agora por não mais exercê-la. Como se, vê, a prerrogativa é do cargo e não da pessoa que o exerce, o que é elementar, mas, em alguns casos, maldosamente, esquecido.

Podemos, contudo, dizer que o Brasil está melhor que seu atual colonizador cultural, pois, por nossas bandas, o ministro da Justiça não demite aqueles que podem investigar o presidente da República.

Para que não pareça que eu não tenha fé no conserto das mazelas, pergunto: o que fez o STF para melhorar seu aparato para julgar melhor os processos contra as autoridades com foro perante ele? E a procuradoria-geral da República, órgão acusador nato, tem um núcleo especial para tratar do assunto, ou está bem do jeito que está?

Assim, como em tudo na vida, a virtude está no meio, nem na esquerda, nem na direita. Isso sem ficar em cima do muro, mas apenas para manter o equilíbrio.

Não ao acabar por acabar! A Revolução Francesa fez isso e, apesar de ter deixado muitas coisas boas, chegou na "era do terror", e na igreja de Comte.

Osório Barbosa

é procurador regional da República no Estado de São Paulo e Mato Grosso do Sul; mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, e estudante. 

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