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Os censores

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Tenho aprendido ao longo de minha longeva existência que as melhores brigas nas quais se pode pelear são aquelas contra causas indefensáveis e que têm contra si as unanimidades (Nelson Rodrigues já alertava que toda unanimidade é burra. No que somos unânimes em concordar com ele?)!

Nada melhor que brigar contra a corrupção, a impunidade, a violência e a censura, já que ninguém assume a carapuça e defende quaisquer desses males, saindo sempre o acusador vitorioso, pois não encontra opositores.

Lembram do Collor? "Lutava" contra os marajás. Quem defendia os marajás? Ninguém. Assim, a "luta" do ex-presidente da República foi triunfal nas urnas.

Quem, em sã consciência, defende a corrupção, a impunidade, a violência e a censura? Ninguém. Logo, é fácil ser contra todas essas chagas. Difícil é dar nomes aos bois.

Quem é o corrupto?

Quais os juízes que são irmãos siameses da impunidade?

 

A quem beneficia a violência policial, por exemplo? Quem são os poderosos que protegem os policiais assassinos?

Quero, aqui, tentar ver com outros olhos o problema da censura. Se você quiser, para fugir do eufemismo e ser direto, pode dizer: o subscritor é um defensor da censura.

Assumo, sou sim defensor da censura.

A censura está em toda parte, sempre fez e sempre fará parte da história da humanidade.

A roupa, o falar, os gestos, o sexo etc, todos se movem em torno da censura.

Censura é gênero com várias espécies, dentre as quais figuram a censura política e a censura de costumes.

A comprovar esta assertiva, recentemente, o doutrinador Daniel Sarmento, professor de escol e procurador da República no Estado do Rio de Janeiro, disse o seguinte:

"Acho errado propor ação para proibir sexo na TV. Para mim é censura constitucionalmente vedada. Oscar Wilde, D. H. Lawrence, Henry Miller, só para ficar com autores mais recentes, foram proibidos de publicar porque se atribuiu conotação sexual às suas obras. O critério de distinção entre a pornografia e o lirismo é muito subjetivo e sutil. Acho, por isso, que a atuação do MPF e do judiciário nesta questão deve ser muito tópica e cautelosa, como aconteceu com a ação da Eugênia, que eu aplaudo".

"Ação da Eugênia", no caso é a ação que a procuradora da República Eugênia Augusta Fávero propôs contra o "Programa do Gugu" (que levou à suspensão do programa por um domingo).

Em linha oposta ao pensamento do professor Daniel Sarmento, está Walter Ceneviva, que em artigo intitulado de "Censura e punição: realidades inconfundíveis" (Folha de São Paulo, Cotidiano, 18.10.03), ponderou:

"Na série de comentários sobre a Constituição que estou desenvolvendo neste mês, trato hoje da liberdade de comunicação. Retomo a decisão judicial que tirou do ar o programa de Gugu Liberato, porquanto toda a sociedade tem interesse em questionar a censura, pois isso diz respeito diretamente ao exercício dos direitos de cada cidadão, que caracterizaram mais do que tudo a Carta de 1988. O vocábulo "censura" tem, no linguajar comum, significados diversos, correspondendo a uma forma de restrição ao comportamento de alguém. Nos meios de comunicação, é ato de autoridade que lhes impõe, permite ou proíbe a transmissão de informações e comentários, segundo os desígnios do poder. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, com a dupla autoridade de seu cargo e de sua condição de qualificado lidador do Direito, disse bem: a proibição a priori é censura e, como tal, incompatível com a Constituição.

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Desenvolvem-se necessariamente através de outros atos da autoridade, destinados a apurar e a punir. Proibir o programa posterior, cujo conteúdo se ignorava, aludindo a defeitos do programa anterior, é censura. E, não obstante as respostas dos juristas contra a censura sejam vigorosas, como já fez o ministro da Justiça, nenhuma delas foi melhor que a do escritor francês Gustave Flaubert, escrita em 1852: "A censura, seja qual for, parece-me uma monstruosidade, algo pior que o homicídio: o atentado contra o pensamento é um crime de lesa-alma". Os constituintes de 1988 certamente foram inspirados pela mesma convicção."

Dois mestres, dois entendimentos, residindo aí a beleza do direito, em oposição à fria matemática.

Com Daniel aprendemos que existe censura e censura, uma vez que ao mesmo tempo em que ele é contra "proibir sexo na TV", é a favor da "ação da Eugênia", que para Walter é censura prévia.

Fico com Daniel quando entende que a "ação da Eugênia" pode, dele me afasto quando entende que proibir sexo na tv não pode. Contradição minha? Creio que não.

Quando nos socorremos da Constituição Federal, não podemos esquecer o contexto no qual ela foi produzida. Estávamos saindo de uma ditadura militar que foi feroz em termos de censura política (espécie do gênero), daí terem os constituintes, louvavelmente, inscrito todas aquelas regras concernentes à proibição da censura na Carta Política. Penso, no entanto, que tal censura se dirigia, fundamentalmente à proibição de censura política, não à censura de costumes, embora pela leitura pura e simples da Carta seja difícil, embora não impossível, fazer a diferenciação. Daniel o fez.

Em socorro de nosso pensamento, lembramos a proibição ao abuso de direito, ao abuso da liberdade, e de que inexistem direitos absolutos, sendo a própria vida passível de eliminação (caso de guerra externa). Por fim, que vivemos numa democracia, o que nos leva a perguntar:

A democracia deve ser democrática de modo a permitir sua autofagia?

Vejamos o que diz Manuel Aragon:

"O terceiro e último problema que quero suscitar nesta questão é o da hipótese definitiva: pode o povo soberano, alterando completamente a Constituição, deixar de ser soberano?, pode, através do procedimento do artigo 168, converter nossa democracia em uma ditadura? A resposta que um raciocínio baseado na teologia ou na metafísica dá a essas perguntas já se disse ser negativa. Dicey, ao contrário, já afirmava, mais preso à realidade, que o Parlamento inglês pode autodestruir-se. E Heller chamava a atenção acerca do erro de confundir dois conceitos distintos: validade lógica geral e validade jurídica particular. Efetivamente, se do ponto de vista da lógica geral a onipotência não pode destruir a si mesma, do ponto de vista jurídico a democracia pode destruir a si mesma por procedimentos democráticos. Hipótese, por certo, não desejável, mas cuja possibilidade, vale dizer, a inexistência de sua proscrição jurídica, é justamente o que permite que o poder do povo, tornando-se constitucional, permaneça um poder soberano." (Constitucion y Democracia, Editora Tecnos, Madrid-Espanha, p. 48) (traduzimos).

Assim, mesmo o regime democrático sendo o que é, permitindo a ampla liberdade individual e coletiva, prevê instrumentos jurídicos que o preservem. Ou seja, constrói em torno de si um sistema protetivo a fim de permitir a sua subsistência. Logo, é democrático sim, mas a liberdade que permite e incentiva tem limites, que são, justamente, aqueles que põem em risco a sua própria subsistência.

O regime democrático não permite a sua própria destruição.

E por não permitir sua substituição por ditaduras, a democracia traça na Constituição os meios pelos quais pode se defender (daí o estado de defesa e o estado de sítio).

O mesmo ocorreria com a censura? A liberdade de expressão do pensamento, especialmente na TV aberta, seria tão ampla que aqueles que detêm acesso a ela poderem abusar impunemente?

É óbvio ululante que não!

Aliás, quem tem liberdade de expressão? Eugênia? Daniel? O signatário? Categoricamente afirmo: nós não temos tal liberdade. Já o Dr. Walter Ceneviva tem. Vejamos:

A liberdade de expressão, tida como direito fundamental da pessoa humana, recebeu regramento constitucional na Carta Política de 1988, estando estampado em seu art. 220: a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Pode-se afirmar que a liberdade de expressão é corolário da liberdade de pensamento, direito, por óbvio, também fundamental, e consagrado no inciso IV, do art. 5º, da mesma Constituição Federal, com a seguinte dicção: é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.

A livre manifestação do pensamento e a conseqüente liberdade de expressão, contudo, somente fazem sentido quando o homem, destinatário do manto protetor constitucional puder externar seu pensamento para conhecimento (aprovação ou reprovação) dos demais cidadãos. Não fosse assim, não haveria necessidade da garantia, pois o pensamento enquanto não externado é indiferente ao convívio social. Logo, ninguém, ainda, ousou proibir e punir o pensamento, enquanto de conhecimento exclusivo e interno de seu elaborador.

Ora, mas quem pensa e externa o seu pensamento tem sempre um objetivo, que é, justamente, garantir a continuidade (ou manutenção) da realidade que o circunda ou mudar essa realidade. No primeiro caso, dificilmente o pensador merece maiores perturbações, as quais vão além de críticas verbais. No segundo caso, no entanto, a crítica costuma transformar-se em violência física, que pode progredir de uma simples rixa à morte, passando pela prisão (Não é seu Fidel?).

Mas o objetivo até aqui dessa introdução é formular a seguinte pergunta: nas sociedades de massa atuais existe ainda a liberdade de expressão? Você, "Zé Ninguém", pode mudar a realidade que o circunda com a exposição de seu pensamento?

Numa cidade como São Paulo, com mais de 15 milhões de habitantes, como você poderá levar ao conhecimento dos seus concidadãos o que você pensa, por exemplo, sobre a omissão da municipalidade na coleta seletiva de lixo?

Você tem disposição para sair batendo de porta em porta e fazendo sua pregação em favor de tal coleta!

Terá você tempo para incumbir-se da nobre tarefa? Quantas vidas seriam necessárias para percorrer os domicílios paulistanos? Por certo que mais de uma. Mas, como, infelizmente, somente ainda temos umazinha, fica impossível você conseguir conscientizar as pessoas e assim poder afirmar que seu pensamento foi externado, atingindo o fim ao qual se destina.

Se não era para atingir as demais pessoas, não havia necessidade de ser externado, e se não fosse externado era indiferente, como já se disse anteriormente.

Alguém poderá encontrar uma solução brilhante, fantástica, extraordinária! Dirá, por exemplo, leve sua mensagem aos jornais, às emissoras de rádios e televisões, pode ser que alguém encampe seu pensamento.

Se não encamparem, a idéia volta à estaca zero. Está morta.

Muito bem! Uma grande emissora de televisão encampou a idéia.

Pergunta-se: quem tem liberdade de expressão, você "João Ninguém" ou o proprietário da emissora? Se o poderoso dono da emissora não tivesse abraçado sua iniciativa, ela estaria, em breve, não apenas morta, mas, também, sepultada.

Quem tem liberdade de expressão?

Certamente você está incluído entre aqueles que, com exceção dos donos dos meios de comunicação, não podem se fazer ouvir.

Liberdade de expressão é algo que existe, mas que está tão longe de você tanto quanto Plutão ou Júpiter.

Mas não fique triste, peça ajuda ao Saci Pererê. Se não obtiver ajuda, quem sabe não aparece uma Sereia disposta a ofertar-lhe os ombros, onde você possa derramar as lágrimas de resignação.

Digo-vos, quem tem liberdade de expressão: a família Marinho, a família Saad, a família Mesquita, a família Frias e a família Sílvio Santos. Os demais, quando muito, falam aquilo que essas famílias querem ouvir. Caso contrário, é silêncio sepulcral. Seriam essas famílias censoras? Quem ousa desafiá-las, mesmo sendo elas, em muitos casos, meras detentoras de concessão pública?

Assim, censura deve ser exercida, ponderadamente, sempre que a ocasião se apresentar, já que ninguém pode abusar do próprio direito.

No ano de 2000, em defesa dos Direitos Humanos, os quais, penso, se sobrepõem à liberdade de expressão (entendida no sentido mais canalha que existe, pois não podemos esquecer que a liberdade que garante que um Norberto Bobbio externe seu pensamento, também é assegurado a um Bolsonaro da vida), ajuizei a Ação Civil Pública, lá em Manaus-Amazonas, apoiado no pensamento de Ana Lúcia Amaral (Globo faz jogo de cena, artigo publicado no sítio www.observatoriodaimprensa.com.br), José Carlos Barbosa Moreira (Ação Civil Pública e Programação na TV, em: Ação Civil Pública, Coordenador Édis Milaré, Ed. RT, 1995, p.280) e Fausto Wolff (O Grande Irmão reafirma seu poder!, Revista Bundas, nº 76), pensamentos que eu nem sei se compreendi adequadamente, pois há poucos dias li artigo do Fausto abominando a censura. De qualquer modo, seus pensamentos estão transcritos com fidelidade.

A emissora, após a citação, retirou o programa do ar e celebramos um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC –, no qual ela se comprometia a atender as ponderações do Ministério Público Federal.

Ventos me empurraram para São Paulo e não sei mais como as coisas andam naquele rincão.

Parêntese: a princípio o controle da qualidade na TV deveria ser efetivado pelos primeiros interessados, no caso as emissoras, mas, já que não o fazem, correm o risco de que "algum aventureiro lance mão".

Osório Barbosa – procurador da República

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