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Desculpe tocar no assunto

Tem coisas que tiram a poesia da vida, suspira a moça. Escaldada por dois casamentos e um "rolo", cada qual mais desastroso, ela sabe do que fala, e chega a ser espantoso que não haja, em seu suspiro, mais que as correspondentes três taças de amargura.

Há também, felizmente, nossas taças de vinho argentino, que vamos bebericando enquanto damos conta do antepasto ("prolegômeno gastronômico", batizou ela), no aguardo da massa que o Pasquale fará vir. O assunto era outro, e o que a fez se desviar foi a sem-cerimônia com que o sujeito na mesa ao lado arrematou a comilança, fazendo a língua circunvagar, em sentido horário, no interior da boca, o que pôs em movimento um calombo a lhe estufar as bochechas, naquela inequívoca operação de deixar tudo em dentes limpos.

 

"Desculpe tocar no assunto", cortou ela num engulho físico-existencial, ao mesmo tempo em que, também na nossa mesa, a poesia da vida se esvaía pelo ralo do prosaísmo. Dali em diante, fatalmente, enveredamos (ela mais do que eu) pelo recenseamento dos pequenos desastres capazes de converter a mais poética existência na mais vulgar das prosas. No caso imediato, não chegaremos a um acordo sobre o que é pior: aquele repulsivo passeio da língua pelas mucosas ou a mão que se fecha em concha em frente à boca na tentativa de disfarçar a indisfarçável palitada.

A moça, como qualquer um de nós (um pouquinho mais, vá lá), tem suas implicâncias. Por exemplo, é alérgica a quem, na hora de literalmente pôr os pontos nos iii, pinga estrelinhas sobre a vogal. Execra os que, do outro lado da mesa, avançam um garfo e pedem, posso?, uma provadinha no prato alheio, em geral o nosso e bem no instante em que engatilhamos o bote para saborear o último bocado, o melhor de todos. Ela abomina com a mesma força quem tem o hábito de aspergir provérbios na conversação, e mais ainda quem gosta de bonsai, essa desprezível "versão vegetal do anão".

Minha amiga não suporta o pessoal que abraça e balança, engalfinhado num pendular clinch amoroso. Ou quem, nas suas palavras, abraça "ensaboando", a palma da mão a esfregar para cima e para baixo as costas do abraçado.

Ultimamente, a criatura desenvolveu tolerância zero ante a moda de colar na traseira do carro aqueles adesivos com figuras que parecem desenhos infantis, a informar que ali viajam o papai, a mamãe, o filhinho, a filhinha, eventualmente o cão e/ou gato da família. Burro e veado às vezes tem mas ninguém põe, né? - desafia a moça. Provocadora, parou dias desses numa banca de revistas na Oscar Freire e deixou o pobre do vendedor em estado de hebetude ao indagar se não tinha adesivo também para a vovó cadeirante. E ainda tripudiou, enquanto o outro se desculpava: lacuna grave, o senhor não acha?

Algumas de suas idiossincrasias até que são razoáveis. Incluem gente que, sem intenção de beijo, chega a menos de um palmo do rosto do interlocutor, fazendo do papo um evento sujeito a perdigotos. Não menos inaceitáveis são os que terminam a mensagem com um "forte abraço" - "modismo deletério" que ela põe na conta do Pasquale, não o das massas que estamos degustando, mas o Cipro Neto. Mais lamentável que um "forte abraço", só "um beijo no coração", ou em qualquer outra víscera, ou aquele espichado "super beeeijo". E o que dizer, acrescenta, dos que ao se despedirem comunicam que o encontro foi para eles um "prazerão"? Prazerão, Deus meu! O que mais nos reservará a triunfante cafonice vocabular?

No terreno não-verbal, prossegue a moça, são abominações palitar os dentes (com ou sem o biombo da mão) ou passar fio dental na presença de quem quer que seja, o anjo da guarda inclusive. Cortar as unhas em público, ainda que não sejam as dos pés, é cortar também a poesia da vida, e com a rudeza do mais rombudo alicate. Morte lenta e dolorosa, decreta minha amiga, a quem, mesmo na mais integral solidão, assoa o nariz e confere o extrato.

Já chega, interrompo eu: por melhor que seja a causa, não há poesia que sobreviva a certo tipo de enumeração.

Autor: Humberto Werneck

Fonte: OESP, 24.11.10

Comentário do blogueiro: poesia e assuntos nem tanto poéticos.

Este artigo muito se parece com um de Danusa Leão que li faz algum tempo!

Encontrei na net: "Danusa Leão comenta: ‘... palitar os dentes, nem sozinho em um quarto escuro!’". Penso que tá no livro "Na sala com Danusa". Quanto tiver tempo vou v.