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Como e por que um Estado se corrompe - J. Patrick Dobel

 

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

ANO DE 2001 – SEGUNDO SEMESTRE

Matéria: DIREITO CONSTITUCIONAL I.

Professora: MARIA GARCIA

Aluno: Osório Barbosa

(Obs.: Parte do texto abaixo foi apresentado em sala de aula pela Professora Maria Garcia, despertando o interesse de todos os alunos, creio, em conhecer o seu interior teor, razão que nos levou a adquirir os artigos publicados pelo OESP e escaneá-lo, e, agora, oferecê-lo ao conhecimento de todos por sugestão da emérita maestra).

COMO E POR QUE UM ESTADO SE CORROMPE

J. PATRICK DOBEL

Da “The American Political Science Review” 

A desintegração das formas ordenadas de vida é um problema central da política. Quando as interações diárias entre os indivíduos e as instituições não mais oferecem oportunidades normais ao exercício da in­tegridade, do direito pessoal ou à auto-realização, os teóricos políticos não podem mais ignorar a decadência. Quando se pro­clama o “crepúsculo”, o “declínio” ou a “crise” de todos os principais aspectos de nossa cultura, somos obrigados a procurar entender a natureza da desintegração política.

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A corrupção dos Estados e a corrupção dos indivíduos andam lado a lado. Várias ideologias sonharam que um problema pudesse ser resolvido sem o outro. Minha análise sugere o contrário. Levar a sério a corrupção é o mesmo que levar a sério a virtude cívica; levar a sério a virtude cívica é exigir não somente a educação moral, mas também a participação substantiva de igualdade econômica e política.

Nota

Para resolver esse problema, a elite espartana criou um estratagema para identificar os 200 melhores hilotas e depois passou a extermina-los. Eliminados todos os líderes potenciais dos hilotas, puderam então os espartanos armá-los para a defesa (Tucídedes, 1934, L. 5, cap. 14).

(Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, edições de 24.02.80 e 02.03.80).

(Indiquem-nos, por favor, as possíveis incorreções).

COMO E POR QUE UM ESTADO SE CORROMPE

J. PATRICK DOBEL

Da “The American Political Science Review” 

A desintegração das formas ordenadas de vida é um problema central da política. Quando as interações diárias entre os indivíduos e as instituições não mais oferecem oportunidades normais ao exercício da in­tegridade, do direito pessoal ou à auto-realização, os teóricos políticos não podem mais ignorar a decadência. Quando se pro­clama o “crepúsculo”, o “declínio” ou a “crise” de todos os principais aspectos de nossa cultura, somos obrigados a procurar entender a natureza da desintegração política.

As explicações da desordem crescente das vidas humanas tendem a dividir-se segundo três linhas – institucional, moral e econômica. A abordagem institucional ar­gumenta que as estruturas sociais e políticas desatualizadas não podem mais atender ­uma população cujo tamanho, valores e expectativas mudaram radicalmente desde que elas foram instituídas. A explicação moral vê certas mudanças morais indesejáveis resultarem num colapso das discipli­nas morais tradicionais, e vê igualmente indivíduos sem auto disciplina ou altruís­mo fazendo exigências indevidas às instituições. Por último, a interpretação econô­mica argumenta que as distribuições desiguais de economia e poder geraram forças que alienaram o povo e levaram a rupturas sociais. Neste ensaio, apresentarei a teoria da corrupção como uma explicação alternativa da decadência da confiança, da lealdade e do interesse entre os cidadãos de um Estado.

Embora no uso contemporâneo “corrupção” geralmente signifique a traição da confiança pública para o lucro de indivíduos ou grupos, a noção técnica de “corrupção do corpo político” tem longa e impressionante história na filosofia política e na polêmica. A decadência das ordens moral e política são fenômenos com os quais os teóricos políticos sempre tiveram de confrontar-se. Neste artigo, tomo como pressuposto que, embora as situações históricas mudem, existe uma tradição constante de reflexão racional sobre tais problemas e os resultados dessa reflexão não precisam limitar-se necessariamente à compreensão de uma determinada era. Pressuponho, além disso, que a decadência das ordens políticas não são acontecimentos incomensuráveis.

Os argumentos sobre a corrupção acham-se dispersos no decurso da tradição política ocidental mas nunca se chegou a articular uma teoria coerente sobre o assunto. “Apoiado nos ombros de gigantes” constatei que as observações de cinco teorizadores – Tucídedes, Platão, Aristóteles, Maquiavel e Rousseau – ajudam-me bastante a  construir um relato teórico independente da decadência de uma ordem política. 1) Essa teoria da corrupção merece séria consideração e estudo porque faz várias contribuições significativas ao nosso entendimento político.

Primeiro, a teoria estabelece uma ligação clara entre os requisitos prévios morais e sociais de um Estado justo e estável e da desigualdade estrutural. Embora leve a sério os interesses morais “conservadores”, não os separa de considerações mais estruturais. Nesse sentido oferece um arcabouço não-marxista para compreender as relações entre desigualdade, classe, moral cívica, grupos ou facções de interesse e as estruturas do governo: Segundo, a teoria apresenta uma crítica sugestiva do “liberalismo”, argumentando que vários dos seus pressupostos normativos e psicológicos são insuficientes para justificar ou sustentar um Estado justo, igual e estável. Terceiro, a teoria complementa e enriquece muitas das críticas existentes sobre o pluralismo. Ao identificar certos tipos de grupos de interesse como facções, oferece um conjunto de percepções morais e sociais sobre os limites do pluralismo, dando uma coerência moral toda a critica sobre esse tema. Quarto, a teoria oferece um modelo sugestivo e abrangente que explica certas tendências predominantes na política e sintetiza uma grande variedade de percepções e dado­s empíricos. É especialmente relevante quanto à redefinição da decadência e da estabilidade políticas e em sua apresentação de diretivas para a criação de um organismo político estável. Parte do trabalho empírico ­relevante abrange a função, o papel dos militares num Esta­do civil, a impotência política dos pobres, os efeitos da participação política, o papel da socialização política e a importância política dos símbolos e da aquiescência. Por último, sem recorrer tanto à reação quanto à revolução, a teoria também oferece indicações limitadas e realistas para melhorar um dos problemas recorrentes da política – a corrupção de um Estado.

Nesse ponto farei um breve resumo da teoria e, depois, passarei a examinar seus princípios com mais detalhe. A teoria da corrupção compreende as seguintes proposições:

1. Certos ­padrões de lealdade moral e virtude cívica são necessários para manter uma ordem política justa, eqüitativa e estável. A privatização das preocupações morais e a decor­rente ruptura da lealdade e da virtude cívicas são atributos cardeais de um Estado corrupto.

2. A grande desigualdade de riqueza, poder e status, criada pela capacidade humana de egoísmo e orgulho, gera a corrupção do Estado. Os membros das classes mais altas sacrificam sua lealdade civil básica para ganhar posições ou mantê-las, e a desigualdade estabelecida solapa a lealdade e o bem-estar substantivo em geral.

3. Essa mudança da qualidade moral da vida do cidadão, combinada com a desigualdade, gera facções. As facções são centros objetivos de riqueza, poder, polícia e política que, por sua própria dinâmica, usurpam funções políticas e governamentais de importância vital. A política faccio­sa acarreta a tentativa sistemática de cor­romper as agências públicas e a lei. Ser membro de uma facção e praticar o faccio­sismo muda o caráter moral das pessoas, solapa sua lealdade à comunidade e estimula o egoísmo radical ou uma lealdade limitada às próprias facções.

4.    O conflito de facção e a contínua desigualdade estendem a corrupção a toda a cidadania. A violência torna-se cada vez mais o substrato dominante de todas as relações, e o discurso político fica reduzido a uma racionalização transparente. A função pública, a lei e a justiça transformam-se em instrumentos das facções e das classes. A população destituída e as classes altas tornam-se cada vez mais polarizadas. A política facciosa e demagógica, os levantes esporádicos e a cooptação passam a marcar as relações políticas, à medida que a sociedade gira num ciclo irriquieto de tentativas abortadas de “restauração” e “reforma”, rumo à alienação, à violência e à anarquia institucional cada vez maiores.

5.    A socialização da educação, da vida familiar, da religião e dos militares também sustenta os valores comunais e a lealdade, por vezes até mesmo depois da corrupção do processo político. A corrupção final do Estado envolve o fracasso dos cidadãos em apoiar voluntariamente essas estruturas primárias.

A corrupção do Estado

A corrupção moral é a perda da capacidade de lealdade. A vida moral individual torna-se progressivamente privatizada e o interesse próprio passa a ser o motivo normal da maioria das ações. A privatização das preocupações morais muda o cálculo moral da sociedade. O contrato interesseiro passa a ser a relação social normal, e fica sendo racional todo o arranjo por meio do qual um indivíduo obtém de outro mais do que dá. A atitude primordial entre os cidadãos é a competição desconfiada para preservar o que cada um possui e ganhar mais, se possível. 

A corrupção social ou estatal tem a ver com a incapacidade moral dos cidadãos de assumir compromissos morais desinteressados com ações, símbolos e instituições que beneficiam a comunidade. Uma definição algo mais fraca é a de que os cidadãos mostram-se incapazes ou sem vontade de fazer qualquer coisa que não lhes traga uma gratificação sensual, dinheiro ou segurança. A corrupção é uma sanguessuga que tira da vida social do Estado o sangue da confiança e da fraternidade. As respostas que antes eram aceitas pela comunidade sobre questões como o casamento e a defesa da propriedade tornam-se problemáticas. A desconfiança e a competição latente entre os indivíduos mudam o universo moral cotidiano e os cidadãos não podem mais, nem querem, mesmo que lhes custe, assumir certos padrões de compromisso com outros cidadãos.

A lealdade é o foco desta teoria porque constitui o atributo moral e psicológico da virtude cívica mínima necessária à susten­tação dos símbolos, das leis e das institui­ções do Estado. Josiah Royce, A filosofia da lealdade, define-as como sendo:

“... a devoção voluntária, prática e inteira de uma pessoa a uma causa. Um homem é leal quando, primeiro, tem alguma causa à qual ele é leal; quando, segundo, dedica-se voluntária e inteiramente a essa causa; e quando, terceiro, expressa sua devoção de maneira contínua e prática, agindo constantemente a serviço de sua causa”.

A importância da lealdade flui do papel central que tem na autonomia moral. Esta exige uma capacidade consciente de afir­mar racional e emocionalmente valores im­pessoais, relações concretas e símbolos que corporificam tais valores e relações. Sem a lealdade a essas “causas”, não poderíamos exercer a autodisciplina necessária para vencer os desejos interessados, trabalhar para outros ou mesmo para o nosso próprio bem. O exercício do dever para com nós mesmos e para com os outros flui da capacidade de lealdade. Royce argumenta que não podemos ser realmente leais aos nossos próprios desejos; embora tais desejos possam formar uma hierarquia casual ou hobbesiana de impulsos, não formam um todo coerente e impessoal, um caráter pessoal. Os desejos, por si, definem o caráter do egoísmo, mas não o ego. A capacidade de lealdade permite-nos ordenar nossas crenças e nossas vidas e criar a personalidade e a virtude, em seu senso estrito. Portanto, a lealdade é requisito moral e psicológico prévio absolutamente necessário, mas de modo algum suficiente da autonomia mo­ral e da virtude cívica. A virtude cívica é um dever ativo que nasce de um compromisso razoavelmente desinteressado com o bem-estar dos outros cidadãos e das instituições que atendem às necessidades básicas de todos os cidadãos e cuidam de sua integridade. Ao contrário do simples consenso de opiniões, as crenças morais e as ações de virtude cívica têm excepcional estabilidade e possuem muita autonomia psicológica, em comparação com os interesses e inclinações. As virtudes cívicas levam a atos não meramente destinados a manter a estabilidade, mas também a fazer justiça, mesmo que isso acarrete certo sacrifício. A capacidade de sacrifício disciplinado que flui desse tipo de compromisso moral possibilita a qualquer Estado real resolver suas miríades de conflitos com um mínimo de violência e um máximo de justiça. Caso clássico do gênero centraliza-se na disposição dos cidadãos a arriscarem a vida em situações políticas. Prova de tornassol da corrupção foi sempre a habilidade de um país em mobilizar cidadãos e milícias a fim de defender-se com eficácia de tiranos e estrangeiros. A disposição dos cidadãos a apoiar ativamente as leis, em contraste com sua inclinação a rejeitá-las, afeta drasticamente a estabilidade geral de uma sociedade. A decisão de resistir à lei, embora tomada no crisol do fluxo econômico e social, termina sendo uma tomada de posição moral individual. Em sua análise das conspirações florentinas contra a usurpação do Duque de Atenas, Maquiavel relata: “Muitos cidadãos, de todos os tipos, decidiram perder suas próprias vidas ou recuperar sua liberdade”.

A virtude civil requer não somente lealdade, mas também desinteresse e adesão pessoal ao bem comum. Em conseqüência, quem é totalmente egoísta é também totalmente corrupto, no sentido de que não possui lealdade, não possui desinteresse nem compromisso com o bem comum. Contudo, a lealdade é uma condição prévia, pois sem ela não é possível ter desinteresse nem compromisso com a comunidade.

A virtude civil depende da extensão lealdade às estruturas comunais da sociedade. Os hábitos, os costumes e a empatia espontânea com os outros cidadãos dão conteúdo diário à lealdade ativa. Essa lealdade cívica ativa não é simplesmente patriotismo dominado pelas emoções. Ao contrário, a verdadeira lealdade exige reflexão racional, antes de afirmar convicções. A lealdade está também subjacente a atos comprometidos com o bem-estar desinteressado dentro da família, igreja e das organizações fraternais.

No entanto, a lealdade, em si, nunca foi uma barreira suficiente contra a corrupção. O problema clássico vem dos que são leais a valores moralmente hediondos ou a grupo de réprobos, como um nazista leal, ou um membro da Máfia. Na medida em que indivíduos refletem, assumem compromissos desinteressados e dedicam-se ao que acreditam não podem ser chamados corruptos. Na medida em que a política da facção à qual servem prejudica o bem-estar substantivo dos cidadãos em geral, eles são corruptos, mas somente nesse sentido limitado.

A causa da corrupção

Muitas vezes é tentador considerar a corrupção um fato da vida, cujas raízes estão nos defeitos da natureza humana e analisar a maioria dos atos corruptos como se fossem ações individuais isoladas. Contudo, os teóricos estão unanimemente de acordo que a fonte da corrupção sistemática está em certos padrões de desigualdade. Em sentido limitado, a maioria dos atos de corrupção é determinada por escolhas morais individuais e depende da capacidade humana de avareza e maldade; no entanto, a corrupção de um Estado resulta das conseqüências da natureza humana individual interagindo com desigualdades sistemáticas e permanentes de riqueza, poder e status. Sob essa desigualdade, certos grupos de indivíduos sancionaram de facto, ou legalmente, a prioridade ao acesso à riqueza, ao poder e ao status. (2)

Deve ficar claro que nem toda corrupção ocorre necessariamente como resultado da desigualdade. Tampouco o fim de toda desigualdade sistemática resultará na eliminação de toda a corrupção. Esta, contudo pode ser encarada num espectro que vai  desde os atos casuais dos indivíduos, passando por uma corrupção cada vez mais generalizada até o ponto onde o conjunto dos cidadãos, tanto dentro quanto fora do governo, engaja-se numa política permeada pela corrupção. Certos padrões de desigualdade são os principais geradores dessa corrupção crescente, em contraste com os atos individuais fortuitos.

Focalizamos a igualdade por causa de sua relação com o bem comum. Conforme está implícito nas palavras, o bem comum traz consigo, ao menos parcialmente, a idéia de bens que são igualmente comuns a todos os cidadãos. Dado o egoísmo humano e os conflitos normais de um Estado, manter o bem comum exige certa lealdade aos outros homens e às políticas e instituições que garantem aquele bem. A lealdade declina sob a pressão da desigualdade quando os indivíduos buscam objetivos puramente egoístas ou agem segundo o interesse limitado de uma facção. Ambas as atividades visam beneficiar desigualmente indivíduos ou grupos, sem levar em consideração as conseqüências para a distribuição eqüitativa dos bens comuns. Os métodos desses benefícios aumentam a corrupção do povo e minam as estruturas destinadas a cuidar do bem comum.

Contudo, a teoria jamais supõe que toda desigualdade seja injusta e corruptora. As exigências práticas de uma sociedade exigem certa desigualdade nos reinos da economia e da política. A teoria distingue a desigualdade justa e razoável daquela que gera corrupção. O Estado que não é corrupto assegura formas básicas de igualdade econômica, jurídica e política, mas não exige uma igualdade absoluta em to­dos os aspectos da vida. Toda desigualdade razoável pode ser justificada, desde que contribua para o bem geral ou, pelo menos, não ponha em risco as liberdades substantivas dos cidadãos.

A desigualdade prática na propriedade ou controle da riqueza pode ser justificada de duas maneiras: 1) os reclamos limitados porém legítimos da justiça distributiva; e 2) a necessidade de gerar excedentes de riqueza para financiar o governo e o bem comum. A especialização funcional necessária para a manutenção de uma sociedade acima do nível de subsistência, a distribuição natu­ralmente desigual de talentos e interesses e as exigências da economia monetária ge­ram certa desigualdade econômica. Por sua vez, a desigualdade gera o excedente necessário para financiar o Estado. Mas essa desigualdade econômica nunca deve desen­volver-se a ponto de ameaçar a integridade da lei e do governo. Não é possível tolerar fontes hereditárias de grande riqueza, e toda a riqueza significativa deve ser controlada por lei. Todos os cidadãos devem ter uma garantia de sua integridade econômi­ca. A redistribuição da propriedade para oferecer a todos os cidadãos um meio de vida, a taxação progressiva, a taxa sobre heranças, as leis suntuárias, os impostos de consumo e a minimização do comércio exterior já foram propostos como meios de evitar os perigos da riqueza num Estado. Maquiavel argumenta que foi a relativa igualdade econômica das cidades repúblicas alemãs que lhes deu a força de manter sua liberdade diante de poderes superiores.

A subordinação política e social e a decorrente desigualdade de poder são as formas primordiais de desigualdade de que o Estado necessita. As leis devem ser legisladas, promulgadas, aplicadas e administradas; para tanto, é necessário que um poder e um respeito desiguais sejam atri­buídos a certos indivíduos. A obediência espontânea está no âmago de um Estado justo, equitativo e estável. No entanto, sem qualificações, a obediência às leis pode trazer estabilidade, mas, sem dúvida, não a justiça nem a igualdade. Conseqüentemen­te, há duas ordens de qualificação sobre as leis e os funcionários de um Estado que não é corrupto.

Primeiro, as leis devem ser aplicadas igualmente a todos os cidadãos e ser administradas com Justiça. As leis devem ser criadas para beneficiar igualmente a todos os cidadãos e não a um grupo particular. Finalmente, os que fazem e administram as leis também devem ficar sujeitos a elas.

Segundo, a aceitação espontânea do governo tem como pressuposto que os funcionários governamentais sejam leais ao bem comum. Pressupõe também que a dedicação deles seja aumentada pelo talento e a competência. A destruição das forças atenienses em Siracusa, sob a incompetência bem intencionada de Nicias e a ambição sem princípios de Alcebíades, demonstra os perigos de um grupo de qualificações sem o outro. A desigualdade hierárquica, justificada, supõe talento, dedicação e virtude daqueles aos quais os cargos são confiados.   

No mundo real da política, é extremante difícil manter uma igualdade e assegurar ao mesmo tempo que os cargos sejam ocupados por indivíduos competentes e virtuosos. O reino da política tende a atrair cidadãos de talento e ambição, sem levar em consideração sua virtude cívica; as fraquezas da natureza humana, combinadas à tentação de abusar da autoridade oficial, reclamam limites mais substantivos ao poder político. A melhor maneira de assegurá-lo é a participação substantiva dos cidadãos, pela qual todos têm acesso aos cargos públicos e as desigualdades de riqueza e status são contrabalançadas por um máxi­mo de responsabilidade e virtude da maio­ria dos cidadãos, limitando-se ao mesmo tempo, as oportunidades de mau uso do poder. Existem várias estratégias políticas para limitar a desigualdade e a corrupção. Tais estratégias são: o máximo de participação dos cidadãos nas eleições, nos cargos públicos e nas forças armadas; rotatividade constante nos órgãos governamentais buro­cráticos e representativos; um exército de cidadãos; um número máximo de funcioná­rios eleitos; júris civis abertos; a minimiza­cão do elemento hereditário em qualquer posição; a extensão do prêmio ao mérito no exercício das funções cívicas. (3)

Neste ponto da formulação da teoria, junto-me a Aristóteles, Maquiavel e Rous­seau em sua insistência de que a justa igualdade exige a participação aberta e significativa de um corpo de cidadãos o mais amplo possível. Talvez seja essa a diferença mais relevante entre as fontes da teoria. Segundo Platão, a estase da corrupção deriva-se do malogro em estabelecer uma correspondência na sociedade entre as funções especializadas do governo e a distribuição inata, invariável e hierárquica do talento e do conhecimento. Rousseau e, em grau menor, Maquiavel e Aristóteles argu­mentam que a maioria dos cidadãos é, ao mesmo tempo, capaz de participar do reino da política, e tem obrigação de participar para atingir devidamente a virtude e proteger-se contra os ataques da corrupção. Em­bora essa diferença separe os teóricos quanto à maioria das questões, não afeta as consequências morais e políticas da corrup­ção. A essência desta permanece a mesma: o declínio da aptidão e da disposição dos cidadãos de agir espontaneamente ou de­sinteressadamente para apoiar outros cida­dãos ou as instituições comunitárias.

As relações entre desigualdade e cor­rupção centralizam-se nas relações morais das pessoas num Estado desigual e nos padrões políticos que elas engendram. Há dois tipos de desigualdade que corrompem o Estado: a de riqueza, maciça e permanen­te, e a que exclui do poder político e da autoridade.

A corrupção derivada da desigualdade econômica é a mais insidiosa e generalizada. Começa com a vida moral de quem busca grandes riquezas. Gastar tempo e energia para acumular fortuna requer não somente talento, mas também, uma perspectiva moral peculiar na qual a maioria das emoções e aptidões é afiada no sentido exclusivo de satisfazer desejos pessoais. A conquista de grande fortuna exige também a utilização e a organização de pessoas e recursos. Os outros cidadãos são vistos necessariamente como meios para um fim particular. Essa instrumentalização das relações humanas e o hábito de utilizar cidadãos para nossos próprios fins vai corroendo aos poucos o compromisso desinteressado do indivíduo para com o bem dos outros. Mesmo os objetivos em comum começam a mudar. Passa a ser racional para o rico preocupar-se mais com a inveja do seu semelhante do que com a sua falta de igualdade. Passa a ser moralmente racional subverter o governo para proteger sua posição e garantir que ninguém mais possa  utilizar o poder público contra a sua riqueza.

Indivíduos egoístas, em si, não destroem o Estado, e podem mesmo, na verdade, ajudar se a sua busca está ligada à glória e ao engrandecimento públicos. A crônica de Maquiavel sobre como Lourenço e Cósimo de Medici conseguiram manter Florença coesa em meio ao talento à corrupção e à prosperidade ilustra o alcance e as limitações dessa idéia. Na morte deles,  como aconteceu com Péricles em Atenas, o sistema corrupto ruiu por terra, pois não contava mais com a força pessoal deles para mantê-lo em pé. A longo prazo, tal sistema destrói os remanescentes da lealdade e acaba sempre desmoronando.

A outra desigualdade geradora de corrupção começa assim que é negada aos cidadãos a participação no governo e na autoridade, exceto com base em  critérios exclusivos, como terra, título ou partido. Todos os governos tendem a agir como perigosas facções de interesse particular, e seus membros tentam afirmar sua prerrogativa de governar por longo tempo, não importa qual tenha sido a forma inicial de gestão. Todos os governos corruptos caminham rumo ao poder hereditário. O resultado pode ser simplesmente uma nobreza hereditária ou um Estado hereditário de  facto, como, por exemplo, um Estado monopartidário que se perpetua a si mesmo, ou uma oligarquia mercantil semelhante à de Veneza. Até mesmo os funcionários eleitos seguem esse rumo, conforme Maquiavel demonstrou em seu estudo sobre o decenvirato da república romana.

Uma vez que um grupo ganha um controle exclusivo sobre o governo e a autoridade – ou, pelo menos, tem prioridade ao seu acesso – , torna-se moralmente racional que ele procure manter essa posição de poder. Uma variedade de pretensões é utilizada para justificar aquele controle. Entre elas estão: um grupo tem mais interesse no Estado, e dispõe de mais tempo para dedicar a ele, por causa de sua riqueza; um grupo encontra-se mais bem exercitado e experiente, como acontece com a nobreza hereditária; um grupo tem mais talento e compromisso, como acontece no Estado monopartidário. Com o tempo, essas pretensões reduzem-se a nada mais que racionalizações para ficar no poder. É plausível que dentro de uma forte socialização, com disciplina e tradição, um grupo excluidor não tiranizaria indevidamente a população e poderia governar para o bem comum de todos os cidadãos. No entanto, mesmo quando a elite desempenha-se bem, a percepção que o povo tem de uma desigualdade permanente minará sua lealdade. O mais provável é que a socialização de elite decai­rá, e os descendentes do grupo dominante passarão a utilizar-se do governo para seu engrandecimento particular ou a agir no sentido de manter suas prerrogativas toda a vez que se sentirem ameaçados pelas reclamações dos cidadãos. Somente assegurando-se a participação significativa destes, poderão ser evitadas aquelas tendências.

Notas

1) Este artigo não é um levantamento histórico sobre determinados teóricos. Também não é uma explicação da teoria da corrupção quepoderia estar subjacente nos vários teorizadores. Antes, minha formulação do modelo teórico aproveita, mas não é necessariamente idêntica, às visões deles extraídas. Mesmo com essa ressalva, poder-se-ia perguntar por que escolhi esses cinco pensadores para neles basear a minha teoria. Simplesmente porque achei que os cinco ofereciam toda a análise histórica e teórica inicial necessária para o pleno desenvolvimento da teoria.

Posto que baseio minha teoria nesses pensadores, é necessário observar o seguinte: embora os pontos de vista deles sobre o Estado justo possam variar de acordo com os pressupostos sobre igualdade, propriedade e natureza humana, seu retrato da corrupção é quase uniformemente o mesmo. Mas, por baixo de suas idéias sobre a corrupção, encontre­mos duas diferenças básicas, referentes às noções diversas que têm sobre a filosofia da História e igualdade humana. Não tratamos nesta tese da teoria cíclica da História, encontrada em Platão e Maquiavel, assim como também as noções mais modernas e progressivas sobre o assunto. Não creio que tais teorias sejam necessárias ao modelo teórico, e a análise, da forma que a desenvolvo, pode, na verdade, opor-se a qualquer teoria da História. A natureza da igualdade será discutida no título “causa da corrupção”.

2) Todos os teóricos reconhecem a capacidade inata dos seres humanos para o egoísmo e a maldade. Rousseau refere-se a isso em sua distinção entre “amour de soi” e “amour propre” (1964, Discours sur I’inégalité, p. 164 s.). Para Maquiavel, até o melhor dos indivíduos pode ser “subornado” por causa de “um pouco de ambição” e “avareza”. (1965, Discursos, L. 1, caps. 3, 42). Ele também assinala que “além disso, os desejos humanos são insaciáveis, pois o homem tem por natureza o poder e a vontade de desejar tudo” (1965, Discursos, L. 2. prefácio), e “repúblicas, caem por terra” quando os homens “passam de uma ambição a outra” (1965, Discursos, L. 1, cap. 46). Platão identifica a avareza da alma como o elemento mais perigoso na tríade da natureza humana. A corrupção da cidade e da natureza humana é definida pelo aumento do domínio da parte avarenta e egoísta da alma (1937, 444a-445d, 547b-487d, esp. 577d-587d); AristóteIes diz que os “homens estão sempre querendo algo mais e nunca ficam contentes enquanto não chegam ao infinito” (1962, L. 2, caps. 7, 8).

3) A expressão clássica da maioria desses ideais está nas Considérations sur le Pologne. Essa obra pouco valorizada representa, junto com Projet de Constitution pour Ia Corse, a síntese final da herança platônica, democrática e republicana de Rousseau. Oferecem uma colocação sistemática do ideal republicano clássico, com forte coloração democrática.

Um dos significados de raiz da palavra “corrupção” é, literalmente, “quebrar em muitos pedaços”. Essa é a sorte de um Estado corrompido. Nunca se esperou que uma comunidade pudesse ser homogênea, mas uma sociedade justa, equitativa e está­vel necessita de um conjunto mínimo de compromissos racionais e emocionais com o bem comum e com as estruturas que sustentam o Estado. Tais compromissos sociais permitem que as ocasiões e conflitos devidos à desigualdade e à maldade huma­na sejam reconciliados pacificamente, e capacitam a comunidade a defender-se, dando respostas sociais aos problemas hu­manos básicos e estimulando a reforma gradual da injustiça. As facções em que é fracionada a comunidade destroem as lealdades que sustentam essa mesma comuni­dade.

Não se trata das simples facções dos sonhos de Madison e dos economistas. Tanto Madison quanto seus supostos seguido­res não atinam com os perigos causados à comunidade por uma verdadeira facção. A história de Florença, Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e As guerras do Peloponeso são, na verdade, rejeições históricas da ingênua tese madisoniana e pluralista de que o conflito entre as facções resultará na prevenção da tirania e na máxima proteção, a longo prazo, do bem-estar de todos os cidadãos.

As facções são centros objetivos de poder: abraçam famílias, corporações, sin­dicatos, burocracias governamentais e as­sociações semelhantes; suas principais ca­racterísticas são o poder autônomo e a coe­são interna suficientes para deturpar o go­verno e oferecer serviços semigovernamen­tais a seus dependentes. São capazes de dirigir indivíduos e recursos para a conse­cução de seus fins particulares contra qual­quer oposição, legal ou outra. Seus mem­bros podem possuir lealdades, tradições e metas próprias, tornando-se literalmente “autores da própria lei”, com forças poli­ciais privadas, quase oficiais, para governar seus domínios e, se necessário, resistir ao Estado.

Dispondo de poder, dinheiro e segurança, as facções criam dependentes que delas esperam cuidados e serviços. De certa maneira, as facções criam leis próprias para seus membros. A fim de proteger tais membros e ganhar sua confiança precisam muitas vezes subornar funcionários do governo e extrair privilégios da lei. Passa a ser uma coisa racional trabalhar sistematicamente para corromper o governo, a fim de manter a base de poder da própria facção.

Como fenômeno moral, as facções colocam interesses privados limitados acima das responsabilidades públicas dos cidadãos e do governo, e socializam os primeiros dentro desse arcabouço. Engendram cidadãos cujas necessidades econômicas e cuja dependência transformam-se numa lealdade quase auto-interessada para com a facção, mas não para com a comunidade. Separados das lealdades básicas à comunidade, os membros das facções começam a encarar a lei como um instrumento para promover os interesses faccionais. Embora seja pouca a lealdade que pode existir entre pessoas egoístas e atomizadas, as facções tentam engendrar alguma simplesmente para fortalecer-se. Posto que “raramente o homem sabe como ser totalmente mau ou totalmente bom”, o individuo totalmente corrupto é uma raridade. Freqüentemente, o “amor ao partido” ou os laços de amizade ou de afeição a um líder criam uma lealdade tênue entre os membros de um partido. Rousseau sugere que, embora a “vontade individual” suplante o “ser comunitário” numa pessoa corrupta, essas “pequenas sociedades” funcionam como uma espécie de “pseudo-vontade geral” para o indivíduo. Uma pessoa pode chegar ao ponto de introjetar metas de uma facção, passando a ser leal a ela no pleno sentido emocionaI e moral. Aí, a lealdade estreitou-se, restringindo-se aos interesses da facção, não aos do bem comum. A lealdade civil acha-se minada e é ou destruída ou transferida a associações menores. Estreitando o foco da lealdade, a facção mina igualmente o espírito de desinteresse ao limitar os indivíduos moralmente significativos no rol de seus membros.

Ao avaliarmos a lealdade que existe em tais facções, precisamos fazer uma distinção entre os grupos que se formam a partir de lealdades emocionais e éticas primárias, como os clãs, as famílias e as igrejas, e os que se desenvolvem desde agrupamentos mais institucionalizados. Este segundo conjunto de agrupamentos corporativos pode ser ainda dividido em facções conscientemente interessadas em si mesmas, como as ­corporações e os sindicatos, e outras mais públicas ou governamentais, como certas burocracias, sociedades secretas de libertação e partidos políticos. Em ambos os casos, mas especialmente no dos grupos políticos, pode existir uma mistura complexa de motivos privados, organizacionais e de interesse público em cada participante. Dessa forma, a vigilância oficial pode incluir indivíduos aparentemente comprometidos com uma lealdade comunitária, que estão usando os métodos pervertidos das facções. Essa última situação é a mais complicada e perigosa porque indivíduos autenticamente leais ao bem comum servem-se de métodos faccionais que tendem somente a corromper mais ainda as práticas políticas. Apesar de haver um pon­to de partida relativamente sincero, a facção de intere­sse público acentua os perigos a longo prazo da facção, afirmando de maneira totalm­ente inconsciente suas prerrogativas, enquanto seus membros continuam acreditando estar servindo à comunidade.

O fator decisivo da competição instável entre as facções é a posse do governo. Este pode ser considerado um complexo de símbolos, cargos, instituições, leis e funcionários para criar, administrar e aplicar medidas políticas concretas. Esse complexo confere uma aparência de interesse legítimo pelo bem comum e é capaz de ainda comandar certas lealdades residuais ente todos os cidadãos. Posto que é financiado de maneira sistemática e constante, o governo tem existência independente, como um conjunto de recursos que pode ser “capturado” por qualquer facção.

Em teoria, o governo é uma instituição aberta à participação máxima de todos os cidadãos. Elabora e administra leis que garantem a integridade econômica e moral de todos os cidadãos. Mobilizando lealda­des gerais, tem meios de reconciliar confli­tos, ressaltar a cooperação comum e asse­gurar a defesa comum. A política deveria ser a arena onde é exercido o máximo de preocupação e virtude do ser humano. Na realidade, o governo é um instrumento uti­lizado por facções individuais para se prote­gerem e engrandecerem, ao mesmo tempo em que limitam o poder das outras facções. O governo poderia começar a agir como uma facção, estimulando assim penetração maior e mais fácil de suas instituições por facções de interesse particular. Uma vez começada a dinâmica da competição e do facciosismo, ela se estende a todas as se­ções do Estado. Somente alinhando-se com uma facção, ou fazendo parte dela, o cida­dão pode ter esperanças de influenciar ati­vamente a política. Mesmo os cidadãos virtuosos e leais ficam reduzidos ao expediente das chamadas facções de “interesse público”.

As relações entre as facções quase autô­nomas e o governo são muito complexas. As facções dominantes precisam manter um governo eficiente, capaz de resistir ou controlar os pobres. O governo poderá re­primir os pobres, ou confundi-los com ilu­sões de eficácia, enquanto as facções vão garantindo seu poder e penetrando no go­verno por meio da subversão funcional ou partidária. Assim, é possível ao governo controlar as massas, neutralizando ao mes­mo tempo sua ameaça às facções dominan­tes.

Quando várias facções razoavelmente equiparadas entram em competição, o go­verno pode também passar a desempenhar certas funções importantes. Poderá surgir uma política de “equilíbrio do poder”, onde o governo desempenha um papel de árbitro. De um modo geral, ele legitimizaria a distribuição do poder e da riqueza, desempenharia funções policiais e de defesa, e impediria que as facções se dilacerassem entre si, desequilibrando a balança. Na qualidade de regulador dos pobres ou de árbitro, o governo impõe “as regras do jogo” a fim de reduzir ao mínimo a violência e regulamentar as relações entre as facções.

As relações morais e políticas das facções com a comunidade são primordialmente de conveniência e não de lealdade. Os arranjos contratuais e as barganhas não refletem um consenso moral. A dinâmica das facções busca o domínio e o controle e não a simples coexistência competitiva. Embora tal domínio possa ser muitas vezes indireto, seu exercício sobre a totalidade ou parte de um Estado por uma família, uma entidade corporativa ou outra facção qualquer, é a tendência constante da política faccional. Nem mesmo a guerra enfraquece a competição entre as facções pelo controle do Estado – pode até mesmo torná-la ainda pior. A narrativa de Tucídedes sobre a história de Cleonte ou de Alcebíades, e suas facções, em Atenas, demonstra como é esse tipo de conflito. Em sua análise de Gênova, Maquiavel examina um Estado totalmente corrupto, onde uma corporação privada de mercadores, o Banco de San Giorgio, alcançou tal grau de controle e disciplina que passou a executar todas as funções efetivas do governo; o próprio governo e o resto do Estado achavam-se totalmente destituídos de um controle real.

Política corrupta

A desigualdade, combinada ao declínio da virtude cívica e à competição facciosa produz vários padrões característicos de comportamento político: 1) a desintegração da lei pública efetiva e de sua justa aplica­ção; 2) o declínio de um discurso político dotado de sentido; 3) o aparecimento da violência como substrato dominante das relações políticas e legais; 4) a tendência constante para a demagogia e a guerra de classes, e 5) a crescente improbabilidade de uma reforma ou revolução bem-sucedida.

1. A lei e sua aplicação. Os seres huma­nos são leais a leis internalizadas que eles aceitam e que corporificam suas crenças e seus compromissos emocionais. Quando se é leal, mesmo a si próprio, quase sempre é uma lealdade a regras impessoais de con­duta, encarnadas no caráter do individuo. As leis são o meio pelo qual a política e a moral se inter-relacionam. Estão engasta­das na educação, nos costumes, hábitos e pressões sociais da vida diária e formam as bases da lealdade moral concreta. Os siste­mas legal e judicial dão substância à inte­gridade moral e econômica dos cidadãos e asseguram um tratamento razoavelmente imparcial para todos.

A eficácia das leis depende de um com­plexo de fatores. Somente quando a vasta maioria dos cidadãos aceita espontanea­mente as leis, mesmo que discorde delas, pode a lei ser utilizada como instrumento de orientação e reforma da comunidade. Num Estado saudável, a aplicação coativa é periférica à lei. Essa lealdade é reforçada pelos limites constitucionais, pela participação política e por métodos justos e dig­nos de confiança de aplicação das leis e de resolução dos conflitos.

Quando certos grupos tornam-se capa­zes de influenciar indevidamente a legisla­ção, comprar imunidade de julgamento e castigo ou servir-se do sistema judicial con­tra seus oponentes, os cidadãos perdem a fé no Estado e aderem a facções para se proteger. A população refratária vê as leis como legisladas privadamente, aplicadas seletivamente e administradas com base no privilégio, não na equanimidade. A lei per­de a confiança de que necessita para ser eficaz na prática, e mesmo a obediência às leis boas tem de ser forçada ou subornada. Essa rejeição cínica da lei, exceto quando necessária ou conveniente, solapa a vitali­dade da lei como diretiva política.

Outra prova de tornassol de um estado de coisas corrupto ocorre quando leis refor­mistas são fúteis e, por vezes, causam mais mal do que bem. As facções ricas domina­tes as ignorarão com virtual impunidade: a administração as sabotará. Os cidadãos, para o beneficio dos quais elas se destinam, desconfiarão de tais leis ou as utilizarão como pretexto para a violência. Por exem­plo, quando os Gracos tentaram ressuscitar as leis agrárias igualitárias, no período final da república romana, não conseguiram im­pô-las às classes altas e seus esforços preci­pitaram uma violência incontrolável e as guerras civis de Mário.

Embora as facções dominantes possam utilizar o sistema legal para resolver confli­tos entre si, a lei é incapaz de controlar a maioria das facções para o bem comum. Quando a justa resolução dos conflitos é assim corrompida, restam apenas a violên­cia e a subversão como métodos de reparar agravos. A falta de um acesso “normal” engendra mais apatia e violência, especial­mente entre as facções menores e as massas atomizadas.

2. O discurso político. A transformação da lei num símbolo de opressão reflete a destruição de um discurso político viável. Tal discurso, para ser efetivo, depende da habilidade dos símbolos e da retórica tradi­cionais da política de evocar emoções es­pontâneas de afirmação nos possuidores de tais símbolos. Também pressupõe que as estruturas cobertas pelos símbolos podem fazer uma avaliação racional e uma discus­são, com a finalidade de complementar e aprofundar as afirmações emocionais. Num discurso que não esteja corrompido, os símbolos não somente evocam confiança e lealdade nos cidadãos mas também conci­tam nos que exercem a autoridade um profundo sentido de dever. “O cargo faz o homem.” Juramentos, leis, e os objetivos morais da comunidade, são racionalmente conhecidos e têm um conteúdo emocional premente tanto para o cidadão quanto para o governante.

Num Estado saudável, os sentidos dos símbolos políticos básicos estão firmemen­te estabelecidos. As batalhas políticas são pela posse de tais símbolos e dos caminhos que eles justificam, mas não envolvem conflitos ideológicos fundamentais. A ativida­de política está distanciada das simples relações coativas de poder. O raciocínio está delimitado por pontos de referência autorizados, existindo um grau de paz e consentimento que permite aos indivíduos persuadirem-se mutuamente sem recorrer à força. Um discurso político autêntico estabelece uma esfera de coerência organizada onde é possível desenvolver padrões de autoridade sem opressão.

Essa esfera ordenada pode escapar por muito tempo ao estigma da corrupção. Sob sua égide serão feitos esforços constantes para remediar a justiça e a desigualdade. Todas as classes, especialmente as altas, serão chamada a aderir simbolicamente ao bem comum. Os reformadores de Florença e da república romana procuravam utilizar constantemente as instituições e as leis para “restaurar” o Estado. No entanto, as soluções, num Estado corrupto, são geralmente incompletas e cosméticas. Continuará a desigual­dade básica, e os cidadãos terminarão reconhecendo a futilidade das tentativas para “restaurar” ou “renovar” o bem comum. O reconhecimento das manipulações hipócritas do governo pelas classes altas é o golpe de misericórdia de qualquer lealdade emocional ou racional que passe por cima das classes e facções.

Portanto a corrupção destrói a coerência do discurso político. Exercendo pouco poder emocional ou racional, os símbolos são usados para justificar vantagens. A controvérsia política passa a fixar-se, mui­tas vezes, no significado ou na existência dos próprios símbolos. Quando estes comandam a lealdade de alguns cidadãos, confundem e oprimem a população, dando­-lhes falsas esperanças. Tucídides relata como eram violados os juramentos, as promessas e os tratados sempre que os “cálculos” sugeriam a uma facção grega que poderia extrair alguma vantagem da traição. Tal sofisticação passa a ser equacionada a “inteligência superior“. A calúnia toma-se um instrumento normal da retórica e os bons conselhos muitas vezes são ignorados porque seus motivos parecem dúbios. Sem uma “linguagem de persuasão”, praticamente qualquer incidente – da difamação à infidelidade sexual – pode desencadear a violência no estopim de um Estado corrupto. A oratória política degenera numa política de barulho.

3. Violência. Com o aumento da desigualdade e o declínio do sistema legal e do discurso político, as relações políticas normais no Estado acham-se cada vez mais cercadas de violência. Já não existe mais a confiança consensual requerida nem a lealdade necessária para gerar paciência e concessões suficientes a fim de se chegar a soluções práticas e pacíficas dos problemas políticos. O crime aumenta em todas as ordens da sociedade e, embora não consiga lidar efetivamente com a criminalidade nas classes altas, o governo passa a recorrer cada vez mais ao encarceramento e a re­pressão dos criminosos. O respeito pela lei diminui, e o ato de governar passa a exigir mais coação ou subornos sociais

Embora a violência física se confine principalmente às relações entre os governantes e as massas, a competição faccional leva a níveis crescentes de ludibrio, traição, suborno, violência encoberta e assassínio. Uma política de equilíbrio do poder e a esperança de lucro econômico podem redun­dar muitas vezes em arranjos mais ou me­nos estáveis entre as facções dominantes, mas as alianças vão ficando cada vez mais quebradiças e terminam desintegrando-se, sempre que um dos parceiros vê nisso a oportunidade de um lucro significativo. As “regras do jogo” passam a ser violadas com mais freqüência e, na medida em que sua eficácia declina, a violência desintegradora aumenta. Maquiavel relata que nos primór­dios da república romana a violência no Estado identificava fraquezas e permitia à república reintegrar-se, desenvolvendo so­luções permanentes aos problemas. Mas à medida que as facções se polarizaram a violência levou à guerra civil e à desintegração.

Violência e medo

As soluções políticas apóiam-se num alicerce de violência predatória e medo, mas não de aceitação interior. A formação de coligações é tão instável que nem mes­mo interesses a longo prazo e laços familia­res conseguem manter unidas as alianças faccionais. Quando o conflito se agudiza, as facções passam a recorrer ao encarcera­mento, ao exílio, ou à punição indireta e segregação de outras facções. Propostas razoáveis de entendimento são ignoradas e as promessas são logo rompidas. Temendo represálias do outro lado e não tendo con­fiança a integridade do governo, um número maior de facções recorre mais rapidamente à violência e à traição. A bancarrota moral da lealdade comunal chega ao clímax quando as facções pedem a interferência estrangeira a seu favor, mesmo em prejuízo do Estado. Tucídedes relata que a virulência faccional em Corsira, Mitilene e Megara levou os atenienses e os espartanos àquelas cidades, resultando no sepultamento de suas liberdades efetivas. Para o historiador grego, uma das principais causas da longa duração da guerra do Peloponeso foi a tendência das facções corruptas para convidar as potências dominantes a destruir seus inimigos. Maquiavel refere-se ao mesmo perigo quando conta a história dos guelfos e gibelinos em Florença e na Itália.

4. Guerra de classes e cooptação. A ascensão de uma classe rica permanente e de facções com independência quase governamental assinala a existência permanente de uma classe de pobres. Estes não têm meios independentes de subsistência econômica e, portanto, dependem da comunidade, dos grupos coorporativos e dos ricos. A desigualdade é tão grande que se pode falar na coexistência de “duas sociedades”.

Haverá conflito endêmico num Estado onde a pobreza gera a “coragem da necessi­dade”, e a riqueza gera ”ambição, insolência e orgulho”. Mas o conflito e a violência podem resultar em soluções justas e duradouras se houver confiança e lealdade sufi­cientes em todos os cidadãos. Ambas as classes devem inclinar-se a fazer conces­sões e não levar as coisas a extremos violen­tos. Em Roma, Atenas e Florença antigas, a constante guerra de classes era mitigada por soluções de compromisso como o tribu­nato romano. Mas uma política justa e razoável depende da inclinação das facções a limitar suas exigências e a honrar os compromissos com seus concidadãos. Uma vez rompido o consenso lato, o cuidado leal não pode mais temperar o auto-interesse vicioso; as exigências aumentarão e as duas classes e facções participarão de um confli­to progressivamente intratável que não tem possibilidade de chegar a um compro­misso justo. Nos termos de Platão, o Estado transforma-se em “duas cidades” engalfinhadas numa luta irreconcilIável.

A corrupção estende-se também aos pobres. A degradação inerente à dependên­cia total não oferece base social ou econô­mica para o respeito de si mesmo. As rela­ções humanas corrompem-se sob a compe­tição constante pelos empregos e recursos escassos. Os desesperados apertos econô­micos dos pobres inculcam a avareza mera­mente para sobreviver. Vão lentamente perdendo o senso de lealdade para com uma comunidade que não lhes pode ofere­cer dignidade nem liberdade. Leis que po­dem ser manipuladas à vontade pelos ricos perdem a sua aceitação espontânea. As relações de trabalho, de família, de religião e mesmo de amizade desmoronam, deixan­do os pobres desconfiados, invejosos, com­petitivos e cínicos. Tornam-se presa fácil dos engodos cooptativos do dinheiro ou apresentam-se como voluntários de exérci­tos mercenários ou profissionais. Pelo me­nos no exército ganham o status e o dinhei­ro que lhes eram negados como cidadãos.

Os pobres geralmente caraterizam-se pela inércia política; podem rebelar-se de vez em quando, mas sem líderes e organiza­ção, fracassam. Embora atomizado, o Esta­do corrupto fica a mercê de demagogos como Cleonte, Mário ou Alcebíades, que lideram levantes populares e tentativas de expropriação. A fragmentação e a ineficácia da subclasse é acentuada por uma série de tendências políticas: as elites recrutam mercenários para sufocar a violência; um subsídio é estabelecido para aliviar a extre­ma pobreza; e, por último, os mitos políti­cos de uma cidadania unida, com igualdade perante a lei, são perpetuados por guerras no exterior e êxitos legais periódicos, dos quais se faz muita publicidade.

A ênfase dada à política de facções e classes é teoricamente consistente. As facções mais fortes são produtos das classes altas. A manutenção de uma base de poder e a capacidade de subornar o governo requerem ou riqueza e organização, ou a coesão interna que se encontra numa família aristocrática da classe dominante. Os pobres corrompidos são notoriamente deficientes em tudo isso. A competição faccional restringe-se às classes dominantes e seus aliados, com duas grandes exceções.

Na primeira, um membro da elite ou uma das facções dominantes tentaria oferecer aos pobres uma liderança, mobilizando-se para servirem de base de poder. O Duque de Atenas, em Florença, e vários aristocratas atenienses recorreram a essa política com diferentes graus de êxito. Um líder poderia também assumir o controle do exército, que é em sua maior parte recrutado entre os pobres, e utilizá-lo para ganhar o poder. Quando os pobres se armam e são bem liderados, irrompem as guerras de classe. É um perigo tão real que as classes altas de uma sociedade corrupta muitas vezes receiam armar as classes baixas, a não ser em casos extremos de necessidade de defesa.

A segunda exceção poderia ser chamada de a política de libertação e cooptação. A insatisfação que ferve entre os oprimidos gera facções de outro gênero. São as facções de libertação, que têm o duplo objetivo de libertar seus próprios membros e toda a sociedade da desigualdade e da injustiça.

A mobilização inicial geralmente depende de um ataque ao regime e à sua panóplia simbólica. O ataque liberatório enfraquece simultaneamente o respeito de todos pelos valores e instituições comunais, e busca “renovar” ou “derrubar” o Estado, muitas vezes em nome dos próprios valores que ataca. A maioria das tentativas revolucionárias, a menos que façam parte de uma guerra de classes generalizada, será provavelmente reprimida. Mas, numa estratégia menos ambiciosa, as facções poderiam ir ganhando aos poucos acesso e poder, efetivando certas mudanças concretas.

A pretensão de servir a todos os cidadãos, combinada à sua natureza faccional, traz sérias debilidades à estratégia liberatória. O êxito faz com que, subitamente, a manutenção do poder faccional entre em crise. A longo prazo, a facção insurgente termina imitando a dominante e, com frequência, apóia a distribuição do poder para preservar sua capacidade de influir na política. Toda essa política vem acompanhada do ambivalente desrespeito da facção pelas metas e instituições que, ao mesmo tempo, ataca e explora. Estimula-se assim o recurso a uma política informal de poder, em vez de procedimentos abertos de participação. Ironicamente, a polêmica inicial da facção muitas vezes dificulta ainda mais ressuscitar o compromisso comunitário ativo e, com freqüência, desde que realize algo dentro do sistema “reformado”, a renovação daquele compromisso nem é sequer tentada. Um dos exemplos mais comuns disso é a sorte das organizações operárias. Maquiavel diz que as agremiações florentinas destinavam-se inicialmente a dar poder econômico e político aos trabalhadores, mas estratificaram-se em dois níveis diferentes, um deles passando a fazer parte da elite governante, ao mesmo tempo em que se expeliam vários de seus membros e os operários que não tinham organização.

5.    A improbabilidade da reforma e da revolução. Uma vez generalizada a corrupção, há muito pouca possibilidade de uma reforma bem-sucedida e significativa da injustiça dentro de um Estado. Torna-se impossível até mesmo uma revolução vio­lenta bem-sucedida. Dado que a teoria frisa os requisitos morais, econômicos e institu­cionais de um Estado justo, quaisquer mu­danças legais, políticas ou mesmo econômicas de significação tornar-se-ão completa­mente irrelevantes, pois os cidadãos frus­trarão seus objetivos ou se utilizarão das novas condições para beneficio próprio. Sem a lealdade consensual e a confiança dos cidadãos, as novas reformas não passa­rão de imposturas para racionalizar a continuação das práticas corruptas. Citando o malogro das leis de Sólon, em Atenas, e a política de igualdade de divisão de terras de Leucas e de outras localidades, Aristóteles argumenta que a redistribuição radical da riqueza pouco realizará a menos que a educação e os costumes também mudem. Para Maquiavel, a corrupção dos costumes dos cidadãos de Florença e Roma era o limite final de todas as reformas governa­mentais. Tal pessimismo explica um paradoxo em pensadores como Platão e Rous­seau, que fazem acusações profundas e radicais às suas sociedades, mas cujas polí­ticas práticas são bastante conservadoras e apenas aperfeiçoadoras.

As tentativas revolucionárias de refor­ma geralmente engendram mais danos do que benefícios. Toda revolução é perigosa e violenta e tem tendências tirânicas. Quan­do a população não tem hábitos, costumes e inclinação a fazer concessões e sacrifícios pelas instituições revolucionárias, a revolu­ção passa a exigir um máximo de violência a longo prazo e de liderança de elite para ganhar adesão às suas “reformas”.

Contudo, há uma possibilidade muito limitada de uma “renovação” grande e re­volucionária do país. A praxis de uma revo­lução violenta, uma grande cruzada, ou um despertar religioso, uma guerra desespera­da ou a combinação de todas essas coisas são maneiras historicamente comprovadas de regenerar a lealdade comunal e ação concertada para superar barreiras de classe e faccionais. Maquiavel não pôde furtar-se a observar que Florença é geralmente mais harmoniosa quando engajada numa guerra.

Nenhuma dessas abordagens é espe­cialmente recomendável. As revoluções violentas raramente acontecem, e é mais raro ainda que sejam bem-sucedidas. As revoluções religiosas, embora tenham mais probabilidades de serem bem-sucedidas, são ainda mais rapidamente corrompidas e destruídas do que as seculares. As guerras podem reintegrar temporariamente a sociedade, mas nelas a competição entre classes e facções fica apenas reprimida.

À medida que a guerra prossegue e que os pobres vão arcando com o peso despro­porcional a seu custo, torna-se iminente a intervenção estrangeira ou a tomada do poder por um líder militar dominante. A guerra arruína o Estado. Somente a lide­rança consistente, a participação real e a abolição das desigualdades maciças podem “restaurar” o Estado em seus princípios originais de justiça, fraternidade e igual­dade.

A educação

A desigualdade domina as causas da corrupção sistemática, mas também deve­mos endereçar-nos à natureza humana. A educação e a socialização devem inculcar o compromisso disciplinado com os demais cidadãos e a lealdade ao bem comum. Os costumes, hábitos e princípios morais po­dem, às vezes, ter força suficiente para sustentar a integridade institucional e a lealdade entre os cidadãos, mesmo depois de existir grande desigualdade. Mas a educação e a socialização combatem na retaguarda.

Tanto a igualdade sem educação quanto a educação sem igualdade não podem sustentar um Estado justo, estável e igualitário. A corrupção espalha-se para além do reino político e aleija as estruturas que geram lealdade e virtude cívica razoa­velmente desinteressadas. À medida que as relações se instrumentalizam sob a pressão da desigualdade, os cidadãos perdem a capacidade de piedade, dever e afeição leal. Quatro áreas vitais de socialização política ficam minadas: a educação formal, família, a religião organizada e a autodefesa mútua.

O sistema de educação cívica da socie­dade é corrompido por meio de vários as­saltos. À medida que a corrupção dos valores do governo e da sociedade em geral vai ficando mais evidente, torna-se mais difícil encontrar professores que ensinem a sério tais valores. O ensino, em si, transfor­ma-se numa ocupação desvalorizada, num mundo de grandes disparidades econômi­cas e sociais, e cada vez menos as pessoas de talento dedicam-se a ele. Ao mesmo tempo, professores e escolas vêem-se sob o ataque constante de várias facções porque ensinam um conjunto de valores que poderia levar um estudante a questionar o lugar ocupado na sociedade por uma determinada facção, ou prejudicar o recrutamento futuro de uma facção. As escolas também se confrontam com estudantes e pais que acham contraproducente a “antiga” preocupação com lealdades e costumes racionais e humanos num mundo de egoísmo atomizado e competição faccional. As escolas são lentamente transformadas em mero treinamento ocupacional para as facções e ficam destituídas de quaisquer valores independentes, ligados à lealdade, ao bem comum e aos outros cidadãos. 

A incapacidade de ser leal também arruína a estabilidade social da família. A lealdade entre marido e mulher dura, somente, enquanto convêm a eles; o adultério e o divórcio tornam-se normais e justificáveis sempre que os deveres de fidelidade interferem nos os prazeres imediatos. À medida que os pais se liberam, os filhos são negligenciados ou postos de lado porque parecem pouco recompensadores.

A falta de lealdade e afeto destroem a família como agente socializador. Nas famílias, os cidadãos adquirem convicções morais básicas e aprendem formas rudimentares de justiça, cooperação e afirmação de autoridade. Quando os pais traem um ao outro e perdem confiança em sua autoridade, os filhos passam a ignorar a autoridade deles e a seguir seus próprios interesses. Os indivíduos aprendem a ver na lei e na moral formas de opressão. Se os filhos não respeitam as regras dadas pelos pais, jamais aceitarão leis que lhes imponham restrições em beneficio de outros.

A corrupção da religião organizada destrói outra organização voluntária que defende compromissos morais com os outros. Não é tanto uma mudança de religiosidade quanto de devoção. As pretensões morais da religião a limitar a avareza e a estimular a caridade perdem sua força. O temor de Deus esvai-se e o auto-sacrifício da devoção é superado pelo amor ao lucro.

Essa decadência da religião ocorre em dois níveis. Primeiro, os cidadãos vão deixando aos poucos as igrejas, ou as transformam em atividades puramente sociais privadas. Segundo, a própria igreja torna-se uma facção. A fim de manter seu poder institucional, pode aliar-se à elite e, então, comportar-se como um agente de controle, antes que de graça e adoração. A vacilação constante do oráculo de Delfos entre as várias facções gregas ilustra essa bancarrota. A religião também pode seguir a estratégia da Igreja Católica Romana dos tempos de Maquiavel e Rousseau e utilizar a sua autoridade espiritual para adquirir riquezas, terras e poder para si própria, ao mesmo tempo em que sacrifica a integridade moral de seus chefes e o bem-estar espiritual de seus membros.

A relação inerentemente misteriosa e evocativa da religião com o povo dá àquela potencial constante de renovar a vida moral da comunidade. Seu clero pode ser corrompido, o número de seus membros pode decrescer, mas resta sempre a possibilidade da Profecia e da regeneração. A ressurreição de Florença sob seu profeta desarmado, Savonarola, e a transformação de Genebra por seu profeta armado, Calvino, foram exemplos clássicos dos poderes “restauradores“ da religião.

A crescente dissolução dos elos de lealdade entre os cidadãos incapacita o Estado de gerar a sua própria milícia. Num Estado justo e estável, um exército voluntário de cidadãos servia a três finalidades. Primeiro era um contrapeso aos ricos e poderosos. Enquanto os cidadãos controlassem a principal fonte legitima de coação e defesa, a lealdade das elites era reforçada pelo temor das armas. Segundo, cidadãos leais e comprometidos davam soldados melhores e menos ambiciosos. Terceiro, uma milícia participatória era uma grande igualizadora. Congregava todas as classes sociais e tornava a sociedade mais democrática em seus valores, reforçando a lealdade dos cidadãos entre si.

Num Estado desigual e corrupto, a maioria não tem por que defender algo que lhe dá tão pouco. As elites preocupam-se muito consigo mesmas e possuem meios próprios de proteção. Receiam também ar­mar os pobres. O Estado vê-se reduzido a expedientes de defesa: pagamentos aos ini­migos, soldados mercenários, guerras por procuração e um exército profissional. O suborno funciona a curto prazo, mas é demasiado perigoso a longo prazo e muitas vezes gera intranqüilidade interna, devido à humilhação e ao custo que representa. Mercenários como Francisco Sforza, o du­que de Milão, são ineficientes, dispendiosos, muitas vezes desleais e podem virar-se contra o país, para conquistá-lo. As guerras por procuração, conforme os atenienses descobriram ao tentar governar indireta­mente seu império, são extremamente caras, envolvem aliados geralmente indignos de confiança e obrigam o Estado a uma intervenção cada vez maior e mais dispendiosa.

A última solução, o exército profissional, é muito mais eficaz do ponto de vista militar, mas representa uma grande ameaça à liberdade interna. O exército é leal aos que lhe pagam e pode facilmente tomar-se um apêndice das classes dominantes. A manutenção de um exército permanente implica em grandes orçamentos e cria muitas oportunidades de alianças corruptas entre os militares e as várias facções econômicas que os abastecem. Por último, se o exército desenvolver sua própria coe­são interna, pode tornar-se a facção mais poderosa do Estado. O Estado, então, pode comprar o exército com grandes quantias de dinheiro, ou a facção militar pode ven­der-se a um empresário político, ou simplesmente tomar o poder.

Conter o mal

A corrupção de um Estado abraça as mudanças nas relações sociais e políticas que, por sua vez, refletem as mudanças da constituição moral básica dos cidadãos. Embora esta teoria ofereça um modelo das relações entre desigualdade, costumes, fac­ções e política, ela não pretende ser neutra. Explica a decadência de uma unidade só­cio-política num mundo onde o direito, a auto-realização e a felicidade são sistemati­camente inatingíveis dentro das relações normais entre cidadãos. Esse reconheci­mento da tristeza e do mal do fenômeno torna a maioria da análise um prelúdio a recomendações. A teoria é militantemente a-utópica e reconhece que nenhum sistema social ou político jamais “transformará” os seres humanos em indivíduos espontanea­mente altruístas e preocupados, dotados de força suficiente para transcender as tenta­ções do egoísmo e da arrogância. Manifesta igualmente um pessimismo profundo quanto ao êxito de reformas significativas, uma vez generalizada a corrupção. Mas não dei­xa de oferecer uma série de recomendações positivas aos Estados esforçados.

Primeiro, a corrupção faz parte da condição humana e a prática política honesta exige estruturas destinadas a limitar, desencorajar e canalizar essas tendências. O dia-a-dia político deve ser condicionado a uma avaliação concreta das convicções morais dos cidadãos e de sua inclinação a obedecer as leis. Há momentos em que mesmo leis boas e bem-intencionadas somente criariam inquietação social e, na verdade, solapariam as metas para as quais haviam sido destinadas.

Segundo, para tomar-se viável, a comunidade deve concentrar-se na educação, a fim de inculcar lealdade nas relações dos cidadãos entre si e criar uma disposição inicial ao sacrifício do interesse próprio em nome do bem comum. A necessidade de uma educação política universal é o aspecto mais importante da política. As instituições primárias que estabelecem os alicerces de uma autoridade justa e estável devem ter fortes apoios legais e estruturais.

Terceiro, a participação política continua o processo da educação política e contribui para a estabilidade do regime. A participação substantiva maciça de todos os cidadãos nos cargos públicos e no serviço público pode contrabalançar a desigualdade das classes e das facções. Também democratiza e reforça a lealdade de todos os cidadãos. Essa abertura participatória estimula igualmente a utilização máxima dos processos políticos destinados a acomodar os conflitos e a violência. A longo prazo, a participação aberta por meio de cargos ocupados por tempo limitado, a generalização das eleições e a rotatividade da administração burocrática impedirão que as agências governamentais se transformem em facções isoladas e sem responsabilidade.

Finalmente, é absolutamente necessário que sejam impostos limites severos às grandes acumulações de riquezas ao privilégio hereditário. Toda a dialética da injustiça e da corrupção começa com essa desigualdade. Uma comunidade saudável deve impedir qualquer cerceamento efetivo do seu poder por governos privados e destruir qualquer facção que tenha alcançado força suficiente para subverter de maneira consistente a lei. A teoria insiste no perigo absoluto de uma classe permanentemente destituída. A política deve assegurar a integridade econômica de todos os cidadãos, em termos de necessidades básicas e trabalho, ou correr o risco da corrupção total e da guerra de classes.

A corrupção dos Estados e a corrupção dos indivíduos andam lado a lado. Várias ideologias sonharam que um problema pudesse ser resolvido sem o outro. Minha análise sugere o contrário. Levar a sério a corrupção é o mesmo que levar a sério a virtude cívica; levar a sério a virtude cívica é exigir não somente a educação moral, mas também a participação substantiva de igualdade econômica e política.

Nota

Para resolver esse problema, a elite espartana criou um estratagema para identificar os 200 melhores hilotas e depois passou a extermina-los. Eliminados todos os líderes potenciais dos hilotas, puderam então os espartanos armá-los para a defesa (Tucídedes, 1934, L. 5, cap. 14).

(Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, edições de 24.02.80 e 02.03.80).



Dominates, a grafia do texto é esta. Pensamos, no entanto, que o correto seja: dominantes.