Escritos de Amigos

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Tenebroso

O fascínio pelo tenebroso

 

Ignácio de Loyola Brandão (O Estado de S. Paulo, 28.08.20).

 

Por que quanto pior o conto, medíocre, tolo, sem pé nem cabeça, mais fico preso a ele?

   

Muito cedo, abri o computador e dei com o blog de Regina Paiva, jornalista, escritora, amiga de longo tempo, mas que não encontro há anos. Sempre nos víamos principalmente em estreias teatrais, ela foi crítica e uma grande entrevistadora, convivia com o Who’s Who teatral e cinematográfico inteiro. Comecei a ler a crônica daquela semana e de repente um pedaço dos anos 1970 saltou à minha frente. E aqui, juntos, Regina e eu fechamos esta crônica.

Ela escreveu: “Eu queria muito ser escritora, mas não tinha publicado nada. Escrevia contos e rasgava. Era jornalista, apenas. Um dia (1977) li a notícia de que o Unibanco estava lançando um concurso de contos. Vou nessa? Resolvi ir. O resultado viria em 1978. O júri era composto – nada mais, nada menos – por Antônio Houaiss, Lygia Fagundes Telles, Geraldo Galvão Ferraz, Otto Lara Resende, Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio e pelo diplomata e presidente do Unibanco Marcílio Marques Moreira. Cáspite! Pensei. Soube que estavam inscritos no concurso 13.306 contos e que seriam escolhidos apenas 10.

Desanimei, mas mandei o conto. Continuei trabalhando, entrevistando, reportando, editando, nem pensei mais no concurso. Foi quando recebi um telefonema. Meu conto Álbum de Retratos estava classificado em 9.º lugar. Foi uma alegria enorme, imensa, tsunâmica! Comecei tarde. Eu já tinha 46 anos, quase a metade do que tenho hoje. No ano seguinte, publiquei meu primeiro livro de contos, Isso É Definitivo?, pela Melhoramentos. Fazia anos que não lia meu conto premiado. Queria material para o meu blog e, hoje, fui ler. Curioso: é quase uma premonição. Eu descrevia personagens de uma praia do Litoral Norte de São Paulo. (Todos existiram.) São mostrados com o ronco dos tratores que construíam a rodovia Rio-Santos servindo de música de fundo.

Ela viria. A estrada. O silêncio, a paz, a tranquilidade vigentes na região e no conto acabaram substituídos por algazarra, barulho, bagunça, drogas, leis desobedecidas, personagens bizarros. O progresso chegou com a Rio-Santos. Chegou desorganizado e cruel. Tanto, que vendi minha casa na região que adorava e vim embora para São Paulo. Meu conto Álbum de Retratos se situa naquela época distante, sem estrada e sem nada!"

Entro aqui. E então, eu, um daqueles jurados, me vi de volta àquele ano de 1977, em uma sala da presidência do Unibanco (depois Moreira Salles, depois Itaú) no Rio de Janeiro em um belo breakfast, que virou reunião e acabou em almoço. Gente da pesada, João Antônio e eu os mais mocinhos. Houaiss, enciclopédico. Otto, flechas viperinas certeiras. Lygia, mordaz ironia. Galvão Ferraz, judicioso, sardônico. Levamos um susto, havia 13.306 contos. Loucura! Como fazer? Marcílio decidiu que cada jurado receberia mensalmente um pacote, leria e discutiríamos no mês seguinte. Teríamos um salário mensal. Foi uma coisa profissional e bem paga. Até então inédita no País. Em geral nos convocam alegando que devemos fazer e nada cobrar em nome da cultura. Ou pagam cachês mínimos. As reuniões eram divertidas, porque o humor daquele grupo era alto.

Tirei férias na Editora Três e fui com mulher e filhos para Saquarema, RJ. Eles tomavam sol, suco, comiam peixes fritos e camarões e eu lia, era conto a dar com pau. Os meses passavam, recebíamos nosso cachê, selecionávamos, trocávamos as histórias e saíamos de cada reunião com a consciência culpada. Vocês não imaginam a culpa que traz ser jurado literário. A coisa pesa. Quando chega a reta final, selecionando os bons, é uma tortura medieval. Terminado o júri, muitos vão direto ao terapeuta, com o qual gastam o cachê recebido.

De todas as reuniões, houve uma, quase no final, que ficou célebre. Anotei em minha cadernetinha. Lygia Fagundes Telles levantou uma questão: “Gostaria que me explicassem por que quanto pior o conto, medíocre, tolo, horroroso, sem pé nem cabeça, mais fico preso a ele. Sigo, obcecada até o final, muitas vezes releio a barbaridade. Acontece com algum de vocês?”.

Todos levantamos a mão. A mesma pergunta estava na ponta da língua de cada um. Nos entreolhamos e então Otto Lara Resende – célebre pelas frases antológicas – definiu: “Sim, acontece, com todos. Trata-se simplesmente do fascínio do ser humano pelo tenebroso”.

Houaiss acrescentou: “Ou pelo envilecimento, pelo flagicioso”.

Otto e Houaiss previram a existência de Bolsonaro.

PS: Otto, João Antônio, Houaiss, Galvão Ferraz (filho da mítica Pagu) já se foram. O conto de Regina Paiva é bom, atual. Acesse o blog www.escrevinhacoesdaregina.wordpress.com e clique em contos.

 

Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,o-fascinio-pelo-tenebroso,70003415616

 

Fonte da imagem: https://dionisopunk.com/2020/02/09/merry-go-round/.

 

 

Carolina Maria de Jesus 

                                                          Carolina Maria de Jesus.

 

‘Escrever é como girar a faca na ferida’, revela Elena Ferrante.

 

Em rara entrevista, escritora italiana fala sobre processo de criação, literatura feita por mulheres, inspirações e de personagens preferidos

Ana Carolina Sacoman e Ubiratan Brasil

O Estado de S.Paulo, 30 de agosto de 2020.

 

Nápoles. Cidade italiana é protagonista dos romances da escritora. Foto: NADIA SHIRA COHEN/THE NEW YORK TIMES

 

Começou a contagem regressiva: na terça-feira, 1º, a editora Intrínseca libera a primeira tiragem (20 mil exemplares) de A Vida Mentirosa dos Adultos, novo livro da escritora italiana Elena Ferrante. A expectativa é mundial, pois a obra chega também em outros países na mesma data, com exceção da Itália, onde o lançamento aconteceu no ano passado.

Trata-se de um fenômeno - Elena é uma autora que dosa ingredientes literários com tanta precisão a ponto de arrastar atrás de si milhões de leitores apaixonados. Os volumes que integram a tetralogia napolitana, por exemplo, já venderam mais de 11 milhões de cópias ao redor do planeta, além de inspirar uma série na HBO que já tem uma terceira temporada prometida.

 

Quase todos seus livros se passam em Nápoles, a caótica cidade à sombra do Vesúvio, no sul da Itália. Em uma era pré-pandemia, o bairro operário de Rione Luzzatti, que inspirou o cenário da tetralogia, seu maior sucesso até agora, virou inusitado ponto de peregrinação de turistas-leitores atrás dos rastros de Lila e Lenù, as personagens principais. Ali a violência social e familiar, a falta de perspectiva da classe operária e o papel da mulher, sempre forçada ao segundo plano, ganham rostos e vozes e se tornam universais.

Mas Elena Ferrante não passa de um pseudônimo de alguém misterioso que prefere o anonimato. Diversas especulações já foram levantadas para revelar sua verdadeira identidade, mas nada foi definido. A escritora só concedeu raras entrevistas e sempre por e-mail. O que acontece agora, no lançamento de A Vida Mentirosa dos Adultos: Elena respondeu as questões propostas por 28 tradutores de sua obra em diversos países - e que o Estadão publica com exclusividade.

 

Marcello Lino (tradutor para Intrínseca, Brasil)

O dialeto napolitano tem um papel importante nos seus romances. Para muitos personagens, o meio de expressão natural provavelmente seria o dialeto, que, todavia, raramente se manifesta de modo explícito, sendo narrado ou expresso através de um italiano com cadências dialetais. Seria possível dizer, portanto, que, em certos momentos, a senhora também faz um trabalho de tradução, ouvindo as vozes desses personagens em dialeto e transpondo-as para o italiano?

Certamente, mas é uma tradução aborrecida, eu diria descontente. Para me explicar, devo aludir à natureza das personagens narradoras que construí até agora. Nos meus livros, quem narra é a “voz” de uma mulher que tem origens napolitanas, conhece bem o dialeto, é culta, mora há tempos longe de Nápoles e tem sérios motivos para sentir o dialeto napolitano como a língua da violência e da obscenidade. Usei “voz” entre aspas porque não se trata de forma alguma de voz, mas de escrita. Delia, Olga, Leda, Elena, explícita ou implicitamente, narram por escrito e, ao fazê-lo, recorrem a um italiano que é uma espécie de barreira linguística contra a cidade da qual provêm. Em vários graus, elas construíram para si mesmas, digamos, uma língua da fuga, da emancipação, do crescimento, e o fizeram em oposição ao ambiente dialetófono que as formou e atormentou durante a infância e a adolescência. Mas a língua italiana dessas mulheres é frágil. O dialeto, por sua vez, é emotivamente robusto e, nos momentos de crise, se impõe, assume o lugar da língua padrão, chega a irromper com toda a sua dureza. Enfim, quando nos meus livros o italiano cede e assume cadências dialetais, é sinal de que, também na língua, passado e presente confundem-se ansiosa e dolorosamente. Em geral, não imito o dialeto: deixo que seja percebido como a possível erupção de um gêiser.

 

Kiraly Kinga Julia, tradutora para Park Kiadó, Hungria 

 

Nos seus romances anteriores, o processo de legitimação dos interesses de uma mulher e de sua emancipação exigiam pelo menos décadas, se não uma vida inteira. Neste romance, por sua vez, Giovanna consegue superar os condicionamentos e a rotina em um intervalo temporal magnificamente breve. Trata-se de um caso específico ou de uma mudança geracional, ou seja: as aspirações férteis e os esforços empreendidos por nossas mães contribuíram para o nosso empoderamento?

Giovanna está muito distante de Lila e Lenù. Recebeu uma boa educação laica, hiperdemocrática. Seus pais, ambos professores, esperam que a filha se torne uma mulher livre e autônoma, cultíssima e prestigiada. Mas um pequeno evento obstrui o mecanismo predisposto para ela e a menina começa a perceber a si mesma como o fruto estragado de um ambiente mentiroso. Começa, então, desesperadamente, a eliminar de si a própria educação, como se quisesse se reduzir à verdade pura e simples do próprio corpo vivo. Lenù e Lila também tentam arrancar de seus corpos o bairro, mas, enquanto as duas devem arduamente criar instrumentos que as ajudem a se libertar da miséria real e figurada, Giovanna os encontra já prontos em casa e os usa contra o próprio mundo que os proporcionou. A sua revolta, portanto, já vem equipada, é veloz e determinada. Mas desordenar um “eu” bem cultivado é uma empreitada perigosa. Não mudamos nossa forma para assumir outra que pareça mais verdadeira sem corrermos o risco de não nos encontrar mais.

 

Jiwoo Kim, tradutora para Hanglisa Publishing, Coreia

 

Em relação às personagens femininas, os “homens ferrantianos” parecem ser bastante simples ou monótonos. Existe algum personagem masculino que a senhora considera uma figura mais positiva em relação aos outros ou ao qual se sente especialmente afeiçoada?

Enzo. Gosto dos homens cuja força é exercida ajudando-nos, com discrição, a viver. Gosto de homens que não usam palavras demais, sem pieguices, sem esperar recompensas. A verdadeira compreensão de uma mulher me parece o mais elevado exercício da inteligência e da capacidade masculina de amar. Coisa rara. Não quero falar aqui dos homens toscos, violentos, cuja última encarnação são os agressores vulgares nas mídias sociais ou na TV. Acho mais útil falar dos cultos, dos companheiros de trabalho e de estudo. A maioria continua a nos tratar como animais graciosos e só nos dão algum crédito quando querem brincar um pouco conosco. Uma minoria aprendeu superficialmente um formulário de “amigos das mulheres” e quer explicar o que devemos fazer para nos salvar, mas, assim que esclarecemos que precisamos nos salvar sozinhas, o verniz da civilização começa a rachar e surge o velho homenzinho insuportável. Não, sob todos esses aspectos, nossos viris educadores devem ser reeducados. Por ora, confio apenas em Enzo, o companheiro paciente de Lila. Claro, pode acontecer que até esse tipo de homem a certa altura se canse e vá embora, mas pelo menos deixa uma bela lembrança.

 

 

Esty Brezner, livreira, Adraba, Jerusalém, Israel

 

Em sua opinião, até que ponto uma pessoa pode “deixar Nápoles”, ou seja, reinventar-se longe das próprias origens e do “destino” que lhe foi atribuído ao nascer?

Vamos começar destacando que ir embora não é trair as próprias origens. Pelo contrário, é necessário partir para poder atribuir a origens si mesmo e colocá-las como alicerce do nosso crescimento. Ao vagar, transformamos nossos corpos em depósitos abarrotados. Os novos materiais exercem peso sobre os materiais originais, acabam por modificá-los fundindo-se a eles, confundindo-se. Nós mesmos nos agitamos entre vários modos de ser, ora enriquecendo a nossa identidade, ora empobrecendo-a com subtrações. Mas o local de nascimento resiste. Ele é o fundo sobre o qual nossas experiências primárias estacionam, o primeiro exercício do olhar, a primeira imaginação, a primeira expressão. E, quanto mais descobrimos que esse fundo é robusto, mais variada é a nossa vivência dos outros lugares. Nápoles não seria a minha única verdadeira cidade se eu não tivesse descoberto cedo, em outros lugares, no embate com os demais, que lá, e só lá, comecei timidamente a me chamar de “eu”.

 

 

Ana Badurina, tradutora para Profil, Croácia

 

Em todos os seus romances, as relações entre mulheres e homens são muito frágeis, em sua maioria infelizes, ao passo que as experiências realmente formativas, em várias direções, são aquelas vivenciadas entre mulheres. Seria do seu interesse aprofundar, tanto como escritora quanto como leitora, uma narrativa na qual fosse possível uma relação relativamente “feliz” entre um homem e uma mulher? Ou julga que uma história do gênero dificilmente pode resultar convincente em âmbito literário?

Muitas vezes, o que não resulta convincente na literatura é o resultado de uma leitura edificante da realidade. Não me coloco entre aqueles que julgam que a felicidade começa quando a história acaba (penso na fórmula: “e viveram felizes para sempre”). Certamente é possível contar a história de um casal feliz, conheci vários. Uma vez, até esbocei uma história na qual uma mulher muito infeliz decidia realizar uma investigação, exatamente como em um livro policial, sobre a vida conjugal feliz de seus pais idosos. Mas não quero entediá-la aqui com o desenvolvimento dessa história, Ana. Digo apenas que a senhora sintetizou muito bem aquela pequena história usando a expressão “relação relativamente ‘feliz’ entre um homem e uma mulher”. A felicidade, a meu ver, só pode ser narrada se desenvolve aquele “relativamente” e se expõe os motivos daquelas aspas que a senhora colocou na palavra “feliz”.

 

 

Audrey Martel, livreira, Librairie l’Exèdre, Quebec (editora Gallimard)

 

De que maneira a Itália a condicionou como escritora, ou, para ser mais precisa, de que maneira o lugar no qual se desenrolam os seus romances influencia a história e a vida dos seus personagens?

Uma parte importante da minha experiência se realizou aqui, na Itália. Neste país, está aquilo que me interessa, a começar pela língua que uso desde que aprendi a falar, desde que aprendi a ler e escrever. Quando menina, porém, a realidade cotidiana me incomodava. O que podia ser narrado nunca estava na minha casa, embaixo das minhas janelas, na minha língua ou dialeto, mas em outros lugares, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados Unidos, na América Latina etc. Eu escrevia histórias exóticas que apagavam a geografia e a onomástica da Itália. Pareciam-me insuportáveis, eu tinha certeza de que matariam logo de cara qualquer narrativa. A grande literatura que me apaixonava não era italiana ou, se era italiana, encontrava engenhosamente uma maneira de contornar a italianidade de cidades, pessoas, dialetos. Era um comportamento infantil, mas que durou pelo menos até os meus vinte anos. Todavia, quando julguei conhecer suficientemente as literaturas que eu amava, comecei aos poucos a me interessar pela tradição literária do meu país e aprendi a usar os livros que mais me impressionavam para obter uma espécie de impulso e escrever a respeito daquilo que até então me parecera local demais, nacional demais, napolitano demais, feminino demais, meu demais para ser contado. Hoje acho que uma história funciona se for o relato daquilo que somente você guarda dentro de si, se ela se posicionar idealmente dentro de textos que você amou, se você escrever aqui e agora, sobre esse pano de fundo que você conhece bem, com uma competência que você adquiriu vasculhando com paixão a literatura de todos os tempos e de todos os lugares. Quanto aos personagens, é a mesma coisa: revelam-se vazios se você não lhes dá um nó que ora os aperta, ora se afrouxa, um laço que gostaríamos de cortar, mas que perdura.

 

Rione Luzzatti. Bairro napolitano que inspirou Elena Ferrante. Foto: SAMIA MAZZUCCO/ESTADÃO

 

 Dina Borge, livreira, Norli Nye Sandvika, Noruega

 

O que a inspirou a escrever 'A vida mentirosa dos adultos'? Acha que os adultos têm o hábito de mentir a respeito da própria vida? Para os outros, para os próprios filhos e também para si mesmos?

Quando criança, eu era uma mentirosa e muitas vezes era punida pelas minhas mentiras. Por volta dos catorze anos, depois de muitas humilhações, decidi crescer e não mentir mais. Mas descobri aos poucos que, enquanto minhas mentiras infantis eram exercícios de imaginação, os adultos, tão contrários às mentiras, mentiam para si mesmos e para os outros com naturalidade, como se a mentira fosse o instrumento fundamental para dar coerência e sentido a si mesmos, para suportar o confronto com o próximo, para se mostrar como um modelo confiável para os filhos. Alguma coisa dessa impressão adolescente alimentou a história de Giovanna.

 

 

Demetra Dotsi, tradutora para Ekdoseis Patakis, Grécia

 

Desmarginação” é uma das palavras-chave da 'Tetralogia Napolitana', ou seja, “a sensação” de Lila “de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos”, para usar as suas palavras. Seria possível dizer que Giovanna também sofre uma espécie de desmarginação, talvez de maneira permanente, quando é erguido o véu inconsciente de perfeição da sua família e ela mesma se transfere para uma nova imagem de si mesma?

Sim, agora, enquanto respondo à sua pergunta, me parece que sim. Mas é necessário ter em mente que, em Lila, trata-se de uma reação do corpo, uma patologia, em certo sentido. A desmarginação é o nome que ela usa para designar um terremoto cujo epicentro é uma súbita disfunção dos cinco sentidos. Giovanna me parece mais próxima de Elena, que, ao escrever, adapta para si mesma a palavra utilizada por Lila e acentua seu valor metafórico. Nela, a desmarginação se torna o ato de forçar a si mesma, de se expandir para fora do bairro, de cruzar fronteiras, de se tornar algo sempre diferente, de rasgar véus com sofrimento, mas também com orgulho. Lila é fisicamente sobrepujada pelos seus sintomas, adoece de tão violentos que são. Elena e Giovanna se desmarginam na metáfora, e as metáforas doem um pouco menos.

 

 

Elsa Billund, livreira, Billunds Boghandel em Fredericia, Dinamarca

 

Por que está voltando a Nápoles nesse seu novo romance? O que, nesse lugar específico, exige ser narrado várias vezes? Consegue se imaginar escrevendo futuramente sobre outro lugar qualquer? E acha que seria mais simples ou mais difícil?

Podemos escrever sobre qualquer lugar, o essencial é conhecê-lo a fundo, senão corremos o risco da superficialidade. Estive em muitos lugares, redigi páginas e mais páginas de anotações. Por exemplo, tenho muitas anotações sobre Copenhague e, se quisesse, poderia usá-las em uma história, como fiz, digamos, com Turim, cidade que adoro. Mas sinto que são lugares que não me pertencem e, se eu escrevesse sobre eles, seria para me apropriar deles. Com Nápoles, é diferente. Nápoles já faz parte de mim, e eu, de Nápoles. Sobre Nápoles, não preciso procurar um olhar, já o tenho desde que nasci. Escrevo e reescrevo a respeito para ver a cidade e ver a mim mesma, e para que, cada vez mais nitidamente, a cidade me veja.

 

Dr Chen Ying, tradutora para Shangai99, China

 

Nápoles é uma cidade irritante, para o bem e para o mal, e é sempre a protagonista dos seus romances. Em 'A vida mentirosa dos adultos' essa cidade foi dividida em dois mundos: bairro alto e bairro baixo. No seu novo romance, a senhora tentou conectar esses dois microcosmos?

Sempre fiquei fascinada com a oposição entre alto e baixo. Com algumas simplificações, eu poderia dizer que tendo a construir minhas histórias em torno dos verbos subir, descer, precipitar, escalar. A senhora notou que, no meu último livro, o nexo entre alto e baixo é central. Foi a toponímia da cidade que me encorajou a seguir nessa direção. Em Nápoles, existe realmente uma área em cima de uma colina denominada Bairro Alto. Para chegar até lá, é necessário subir uma rua estreita que se chama San Giacomo dei Capri. Achei interessante que Andrea, o pai de Giovanna, morasse com a família naquele bairro e procurasse apagar, também com o endereço da própria casa, suas origens “baixas”. É a filha, Giovanna, que, no decorrer de sua rebelião adolescente, descobre a artificialidade das fronteiras que o pai quis traçar. A garota infringe a ordem paterna e arrasta o alto para o baixo e o baixo para o alto, fazendo de si mesma o lugar de uma amálgama brusca de elementos antagônicos, o espaço em que belo e feio, novo e velho, fineza e grosseria se misturam, rindo da ânsia de distinção do pai neoaculturado.

 

Stefanie Hetze, livreira e proprietária da livraria Dante Connection, Berlim, Alemanha

 

Para Lila e Elena, a experiência da leitura de 'Mulherzinhas' assume grande importância. Quais (outras) figuras literárias a fascinaram e marcaram profundamente na adolescência?

Para responder, eu faria uma lista longa e provavelmente maçante. Digamos que eu devorava romances em que as personagens femininas tinham vidas desaventuradas de uma maneira injusta e feroz, cometiam adultério e outras infrações, viam fantasmas. Entre os doze e os dezesseis anos, procurei avidamente todos os livros que tinham nomes de mulheres no título: Moll Flanders, Jane Eyre, Tess dos D’Ubervilles, Effi Briest, Madame Bovary, Anna Karenina. Mas o livro que li e reli de maneira obsessiva foi O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Ainda hoje é um livro extraordinário pela maneira como narra o amor misturando bons e péssimos sentimentos, sem interrupção. Catherine é um personagem que, de tempos em tempos, deve ser revisitado. Serve, quando escrevemos, para evitar o perigo de figuras femininas adocicadas.

 

 

Monica Lindkvist, livreira, Akademibokhandeln, Suécia

 

A senhora se identifica com algum dos personagens principais da 'Tetralogia Napolitana' ou deste novo romance?

Respondo com um lugar-comum: todos os personagens, até os masculinos, têm algo meu. De resto, esse é um processo obrigatório. Embora conheçamos bastante o corpo dos outros, a única vida interior que conhecemos de fato é a nossa. Portanto, é relativamente fácil aprender a olhar e captar um gesto significativo, uma careta, as características de um modo de andar, de falar, um olhar eloquente. Em contrapartida, é impossível nos transportarmos para a cabeça de outra pessoa: quem escreve corre sempre o risco das simplificações dos manuais de psicologia, e isso é deprimente. Temos apenas a nossa cabeça, e extrair dela um pouco de verdade para dar vida a ficções é um trabalho árduo. Lá dentro, há o vozerio de uma multidão que soma tudo a tudo entre choques e confusão. Por isso, no fim das contas, a vida interior dos outros é o fruto literário sempre insuficiente (linearidade demais, coesão demais, lógica demais) de uma autoanálise extenuante ajudada por uma imaginação vívida. Mas a senhora me pediu para indicar um personagem com o qual me identifico e, como determinei de antemão que daria respostas talvez exaustivas, direi que, neste momento, gosto de alguns traços da tia Vittoria de A vida mentirosa dos adultos. Não sou eu, mas com certeza fico feliz de ter sido a sua autora.

 

 

Margarida Periquito, tradutora para Relógio d’Água, Portugal

 

Eu gostaria de saber se a voz de Andrea em 'A vida mentirosa dos adultos', que tanto atormenta Giovanna, é o eco do pensamento de Emma Bovary em relação à sua filha (... comme cette enfant est laide!), juízo que, segundo o que lemos em 'Frantumaglia', a senhora queria usar em uma página sua a fim de ponderá-lo e entender se poderia ser uma frase feminina. Sim, mas não se trata apenas de filiação literária. Por muito tempo, quando menina, senti que aquela frase de Emma podia ser algo que me dissesse respeito. Eu dizia a mim mesma: não seria terrível se não apenas meu aspecto físico, mas também certos traços de caráter desagradassem aos meus pais em primeiro lugar?

Giovanna vem, pelo menos em parte, da união do incômodo daquela página com uma ansiedade minha. Quanto à plausibilidade da exclamação comme cette enfant est laide!” na boca de uma mãe, mesmo que frívola como Emma, não, não resolvi o problema. Atribuí a frase a um pai, no entanto, na história; a mãe de Giovanna não se rebela, não contradiz o marido.

 

Livros de Elena Ferrante.  Foto: Chris Warde-Jones/The New York Times

 

 

Anna Jampol’skaja, tradutora para Corpus, Rússia

 

A cidade de Nápoles está entre os protagonistas dos seus livros, inclusive do romance 'A vida mentirosa dos adultos'. O que representa para a senhora essa cidade, suas paisagens, seus habitantes, sua língua? A propósito da língua: alguma vez a senhora pensou em seguir o exemplo de Andrea Camilleri, cujos romances muitas vezes são ambientados na Sicília, e elaborar uma língua especial misturando o italiano literário e o dialeto napolitano?

Nápoles é uma cidade complexa, que não pode ser reduzida a uma fórmula literária ou sociológica. Eu a sinto como a minha cidade, a cidade dos meus antepassados. Nela existe um longo fluxo de experiências minhas e de muitas pessoas que guardo na memória com suas vozes. As vozes, justamente. Nápoles é impensável sem a sua sonoridade dialetal. Todos os degraus sociais da cidade são permeados pelo dialeto. Conheci pessoas abastadas, cultíssimas, que dominavam diversos idiomas e que, contudo, utilizavam em todas as ocasiões o dialeto napolitano em suas vertentes plebeias e também em suas expressões de finíssima execução literária. Eu, no entanto, nunca tive uma boa relação com o dialeto, tanto em sua forma mais dura quanto em sua forma mais cativante. Os motivos são muitos, aqui só revelo um, mas que contém todos os outros. Mas, antes, devo relatar brevemente um antigo mal-estar meu. Sobretudo quando menina, quando eu tinha que traduzir para a escola trechos em latim e grego para o italiano, ou então tinha que transpor uma centena de versos do italiano do século XVI, digamos, para o italiano contemporâneo, e eu tinha pressa porque eram tantos os deveres que a tarde não bastava. Algumas vezes, sofri um esgotamento: sentia os idiomas como um fluxo de vozes que atravessavam o tempo e acavalavam-se, uma espécie de teatro situado dentro da minha cabeça, onde mortos e vivos falavam todos juntos com um fragor que me extenuava. Essa alucinação passou, mas não com o dialeto napolitano. Nesse caso, ainda perdura e de uma maneira que vai muito além da minha antiga sugestão da adolescência. O dialeto napolitano me parece ter uma tal potência sonora, uma carga emocional tão devastadora, que não quero cometer a afronta de prendê-lo dentro do alfabeto, como um tigre dentro de uma jaula. Quando escrevo, eu o vigio, mantenho-o sob observação, uso-o com apreensão. E sempre excluindo sua tonalidade irônico-patético-sentimental-bonachona. Prefiro sua tonalidade agressiva, sarcástica, uma ameaça para as mulheres que eu narro.

 

 

Ioana Zenaida Rotariu, livreira, St. O. Iosif da Brasov, Romênia

 

Quanto, na sua opinião, as amizades da nossa vida nos mudam?

Uma amiga não nos muda, mas suas mudanças acompanham discretamente as nossas, em um contínuo, recíproco esforço de adaptação.

 

Muauia Al-abdulmagid, tradutora para Dar al Adab, Líbano

 

No quarto volume da 'Tetralogia Napolitana', a senhora alude à universalidade da violência humana e expõe ao leitor indícios que dizem respeito ao mundo árabe e à cultura islâmica: o marido de Dede é de origem iraniana e seu filho se chama Hamid etc. Poderíamos, portanto, esperar de Elena Ferrante um romance que se concentre no conflito atual entre Islã e Ocidente, focando em temas políticos contemporâneos como racismo, terrorismo, imigração e islamofobia? Além disso, a senhora faz uma breve alusão a uma das cenas mais presentes na história humana contemporânea: o 11 de Setembro de 2001. Por acaso, vê nessa cena um exemplo concreto de “desmarginação”? Existe talvez uma ligação visual entre a queda das duas torres e o terremoto que atingiu Nápoles e aterrorizou Lila a ponto de fazê-la ver pessoas “se desmarginando”?  “Desmarginação” é, portanto, a metáfora de uma metamorfose violenta?

Volto com prazer à palavra desmarginação. Sim, ela tem a ver com violência, mas em um sentido que resume os efeitos de uma força fora de controle que rompe os contornos de pessoas e coisas. As margens artificiais dentro das quais nos fechamos e dentro das quais fechamos os outros de repente tornam-se enganadoras e pouco resistentes, de maneira que, diante dos olhos de Lila, verifica-se o espetáculo atroz da destruição e da autodestruição. E também quando, ao longo da narrativa, esse vocábulo muda sutilmente de sentido, tornando-se metáfora de crescimento, revelação da verdade etc., ele é sempre acompanhado por essa ideia de rompimento, de dilaceração, de explosão. Nossa vida comum é cheia de ações explosivas, não escapamos da violência, nem mesmo nas figuras de linguagem. Escrevi bastante a respeito e - sobre a sua primeira pergunta - respondo que talvez não, a esta altura é improvável que eu escreva sobre terrorismo, racismo, islamofobia: o final da Tetralogia Napolitana queria simplesmente mostrar quanto o horizonte de Elena havia se aberto através de suas filhas, seus genros, seus netos, não mais presos ao bairro, mas ao pano de fundo amplo e perigosíssimo do planeta. Entretanto, continuarei a dizer em todas as ocasiões como detesto a violência, sobretudo contra os mais fracos, mas também dos fracos contra outros fracos e até mesmo a violência justificada pela intolerabilidade de todas as formas de opressão. O ser humano é um animal feroz que procurou domesticar a si mesmo com as religiões, com as advertências da sua terrível história, com a filosofia, com a ciência, com a literatura, com o nexo temerário entre bondade e beleza, com uma regulamentação totalmente viril do conflito, desde o duelo até a guerra. Mas, até agora, o resultado é uma forma difusa de hipocrisia: a guerra, por exemplo, prevê a punição de crimes específicos definidos como crimes de guerra, como se a própria guerra não fosse por si só, pela sua natureza, um crime horrível; os direitos humanos, que deveriam estar pacificamente consolidados, representam um campo permanente de batalha e são continuamente violados ou defendidos; o Estado detém o monopólio da violência, mas, em primeiro lugar, isso não é verdade e, em segundo, é evidente demais que tal monopólio sofre abusos: porções amplas da população planetária sabem que precisam temer antes de mais nada as forças da ordem constituída, mesmo onde as tradições democráticas são robustas. Nem mesmo nós, mulheres, somos alheias à prática da violência, e isso é algo que deve ser dito com veemência. Mas estamos desde sempre tão expostas à violência masculina e fomos tão excluídas dos modos como os homens a exercitaram que talvez somente nós, hoje, possamos encontrar uma maneira não violenta de bani-la para sempre. A não ser que, confundindo emancipação e cooptação, findemos nos entregando também nesse campo à tradição masculina da agressão, do extermínio, da devastação, tomando para nós, ao mesmo tempo, suas justificativas doutas e suas regulamentações filisteias.

 

Enza Campino, Libreria Tuttilibri, Formia, Itália

 

Enquanto penso que a verdade presente em suas histórias é a chave universal que faz palpitar os corações de leitores tão diversos entre si no que diz respeito a cultura e área geográfica (saber que Michelle Obama e um administrador chinês, Madonna e uma menina turca vão lê-la), pergunto em que medida sua relação com a realidade, que conflui para os seus romances, é influenciada por esse dado de fato.

Escrever é uma atividade muito privada. Sempre escrevi para mim mesma e muitos textos nunca saíram das minhas gavetas. Mas, todas as vezes que decidi tornar pública uma das minhas histórias, sempre esperei que ela se afastasse o máximo possível de mim, que viajasse, que falasse idiomas diferentes daquele no qual eu a havia escrito, que fosse parar em ambientes e casas fechadas ao meu olhar, que mudasse de mídia e se transformasse de livro em teatro, filme, televisão, história em quadrinhos. Eu pensava assim e não mudei. Minha escrita é extremamente tímida enquanto escrevo, mas, quando decide virar livro, ela se torna ambiciosa, é imodesta. Quero dizer que eu não sou os meus livros, não tenho, sobretudo, uma vida presunçosa como a deles. Os livros que cheguem aonde são capazes de chegar, eu continuarei a escrever de acordo com o meu gosto, como e quando sentir vontade. Minha independência, a partir do momento em que meus livros assumem uma veste editorial e vão embora, não tem nada a ver com a deles.

 

Lola Larumbe, livreira, Librería Rafael Alberti, Madri, Espanha

 

Muitos personagens dos seus romances se debatem entre amor e amizade. Quem a senhora gostaria de ter ao seu lado para sempre: o amigo ou o amante?

Prefiro um amante que seja capaz de uma grande amizade. Essa mistura é dificilmente compreensível quando somos jovens, mas, com a maturidade, se tivermos sorte, aos poucos ela abre caminho. Sempre gostei muito de encontrar nas velhas correspondências entre amantes expressões como “meu amigo”, “minha amiga”. E até o apelativo “irmã”, que aparece na literatura cavalheiresca e prossegue por séculos, nunca me pareceu um sinal do ocaso do desejo, pelo contrário.

 

 Suomalainen kirjakauppa, livraria, Finlândia

 

Como Lila e Lenù chegaram até a senhora? Por que quis contar especificamente a história delas? Há algo que gostaria que os seus leitores soubessem a seu respeito? E de que maneira viver em Nápoles é diferente de, por exemplo, viver em Roma? O que torna Nápoles tão única?

Lenù e Lila são fantasmas, como todos aqueles que habitam a escrita. No início, eles se manifestam com aparições breves, fugidias, se parecem um pouco com pessoas que não vemos há tempos ou que morreram. Nós os fixamos com poucas frases, os fechamos em um caderno e, um tempo depois, relemos. Se as frases têm força, os fantasmas reaparecem e nós os capturamos com mais palavras. E assim por diante: quanto mais a cadeia das palavras ganha energia, mais aparições desbotadas ganham carne e ossos, definição, arrastam atrás de si casas, ruas, paisagens, Nápoles, uma trama na qual tudo se move e tem calor, e parece que só você podia dar àquelas formas indefinidas algum contorno e até mesmo uma aparência de vida real. Mas nem sempre dá certo; aliás, com muita frequência dá errado. Os fantasmas erram de endereço, são instáveis demais, as palavras surgem falsas ou esmaecidas, a cidade é só um nome e, se alguém pergunta o que a torna diferente, digamos, de Roma, você não sabe a resposta, sobretudo não a encontra nas frases mais ou menos pálidas que você escreveu.

 

 Ieva Mazeikaite, tradutora para Alma Littera, Lituânia

 

Muitos protagonistas dos seus romances, assim que entram na idade adulta, deixam sua cidade natal. Em que medida esse afastamento de Nápoles influi no desenvolvimento do personagem?

Ir embora é importante, mas não decisivo. Lenù vai embora, Lila nunca abandona Nápoles, mas ambas se desenvolvem, têm uma vida cheia de acontecimentos. Eu, como disse, me sinto próxima das escolhas de Elena. Não devemos temer as mudanças, tudo o que é outro não nos deve assustar. Mas ficar não me parece errado, o essencial é que o fato de nos fecharmos para sempre em um espaço não empobreça nosso eu. Gosto das pessoas que sabem viver aventuras intrépidas até mesmo indo de uma ponta à outra da rua em que nasceram. Foi assim que imaginei Lila.

 

 

Ivo Yonkov, tradutor, e Dessi Dimitrova, livreira, para Colibri, Bulgária

 

Por que a senhora continua a voltar a um passado doloroso? Para a senhora, escrever é, acima de tudo, uma forma de autoterapia? Além disso, o que acha da literatura estudada nas escolas italianas? Acha que reflete as dinâmicas do mundo em que vivemos? Que valores proclama? E esses valores também são compartilhados pela senhora?

Não, nunca considerei escrever uma forma de terapia. A escrita, para mim, é algo totalmente diferente: é girar a faca na ferida, algo que pode causar muita dor. Escrevo como aquelas pessoas que viajam de avião o tempo todo por necessidade, mas têm medo de não sobreviver, sofrem durante todo o voo e, quando aterrissam, ficam felizes mesmo estando reduzidas a um fiapo. Quanto à escola, sei pouco de como ela funciona hoje. A que eu frequentei transformava leituras, que achei maravilhosas quando adulta, em exercícios chatíssimos que deviam ganhar uma nota. Aquela escola ensinava literatura eliminando o prazer da imaginação e da identificação. Quando removemos a energia de uma frase para brincar com um adjetivo ou uma figura de linguagem, deixamos na página apenas combinações alfabéticas macilentas e transformamos os jovens, na melhor das hipóteses, em requintados vendedores de vento.

 

Fleur Sinclair, livreira, Seven Oaks Bookshop, Sevenoaks, Reino Unido

 

Com tantos acontecimentos em um romance que começa com algo que é dito e nunca poderá ser retratado, em um momento especialmente sensível da adolescência de Giovanna, me pergunto se há algo que a senhora gostaria de dizer ao seu eu adolescente, fazendo-a sentir vontade de voltar no tempo (ou algo que a senhora gostaria que o seu eu adolescente tivesse ouvido por acaso). Enfim, algo que poderia ter mudado o rumo da sua vida em relação ao modo como a senhora efetivamente a viveu até agora, algo que tivesse lhe dado a confiança e o impulso para fazer alguma coisa mais cedo ou que a tivesse impedido de realizar ações das quais hoje se arrepende.

Em nossa vida cotidiana, o que passou passou. Isso para não falar da adolescência: no que me diz respeito, foi um tempo parado, desolado. Quando adulta, sempre evitei dizer a um adolescente, mesmo quando aparentemente feliz: sorte a sua. Acho que, quanto mais cedo aquele período terminar, melhor. Mas escrever a respeito, em contrapartida, é apaixonante. Acho que um pedacinho da adolescência aflora em todos os livros, a despeito do que é narrado, justamente porque aquela é uma fase de trovões, raios, tempestades e naufrágios. Você é quase menina, é quase adulta, o corpo por um tempo eterno não se decide a abandonar uma forma e assumir outra. O próprio idioma parece não ter o módulo certo para você, em dado momento você fala como uma menina, em outro se expressa como uma mulher feita e, em ambos os casos, sente vergonha. Na realidade, o passado não muda. Mas, quando escrevemos, a adolescência é inesgotavelmente mutável. Todos os fragmentos podem encontrar sua posição e, de repente, merecer a dignidade de um significado dentro da história. Quando você escreve, aquele tempo parado e asfixiante, observado a partir da margem da vida adulta, começa a fluir, se compõe e se recompõe, encontra os seus motivos.

 

Fe Fernández Villaret, livreira, L’Espolsada Llibres, Corró d’Avall, Barcelona, Catalunha

 

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que achei extremamente prazerosa a leitura dos quatro livros da 'Tetralogia Napolitana'. Como livreira, indiqueio-os para todo mundo, mas foram lidos principalmente por mulheres porque, desde o início, foram classificados como leitura “para mulheres”. O olhar dos seus livros é feminino, mas isso não significa que eles sejam exclusivamente para mulheres, pelo contrário. Na sua opinião, por que os livros que olham para o mundo com um olhar feminino não interessam aos homens?

Durante anos, a vida, a história e tudo o que acontecia nos foi contado por eles. Agradeço por sua contribuição para tornar o universo feminino mais rico e plural. O que dizer? Os homens, até os muito cultos, muitas vezes sequer tentam ler os nossos livros. Eles os consideram, como a senhora destaca, “para mulheres” e, com essa fórmula, não apenas parecem proteger sua virilidade de qualquer possível degradação, como, sobretudo, nos negam a dádiva da universalidade, que atribuem apenas a si mesmos. Eles escrevem livros para homens e mulheres, nós, em contrapartida, conseguimos escrever apenas para mulheres. É um dos vários sinais de como eles continuam a nos considerar seres humanos de nível inferior. E, às vezes, nós mesmas parecemos concordar com eles, falta pouco para que voltemos a exclamar como a Ifigênia de Eurípedes: “Melhor que viva um homem do que mil mulheres.” Fomos educadas com a ideia de que uma pessoa do sexo masculino tem, entre suas várias e maravilhosas prerrogativas, aquela de resumir em si o mundo todo. Um homem, quando produz obras grandes, pequenas, minúsculas, se dirige com naturalidade ao gênero humano, aos marcianos, aos venusianos, se sente preparado para o possível e o impossível. A nós foi dito que não nascemos para isso [Osório diz: acho esse tipo de afirmação tão mentirosa! Safo de Lesbos e tantas outras mulheres, como Apha, já escreviam faz milênios. Mas, para escrever precisa ter talento. O que a entrevistada diz induz, para quem é boboca, acreditar que todos os homens escrevem e publicam! Salve Carolina de Jesus!]. A inteligência deles, o talento deles são méritos. Nossa inteligência, nosso talento são defeitos. Cito um exemplo: o extraordinário Baudelaire [Osório diz: Leon Tolstoi não acha que devamos nada a ele, ao contrário. Vejam o livro do russo sobre “o que é a arte”], ao qual todos e todas nós devemos muito, escrevia que a beleza feminina dura mais se não for acompanhada pela inteligência [Osório diz: creio que o francês kiss dizer “chatice”!] e, com seu jeito provocador, destacava que quem se apaixonava por uma mulher inteligente era pederasta. As coisas mudam, é claro. Estão mudando, mas, sobretudo, de maneira profunda, estão mudando devagar demais. Ainda hoje, quando afirmo que a grande literatura não é universal, apenas grande literatura masculina, causo incômodo, pareço um pouco grosseira. Mas é verdade.

 

Malgorzata Zawieska, livreira, KOREKTY, Varsóvia, Polônia

 

Em seus livros, a senhora aborda uma questão importante: a emancipação da mulher através da vida profissional. Como considera os possíveis efeitos do coronavírus na situação feminina? Acha que agravará as disparidades econômicas, determinando retrocessos em relação a algumas conquistas no caminho da emancipação? Acredita que esse poderia ser um tema interessante para uma escritora?

Ainda estou sob o efeito do medo e desnorteada pela facilidade com que as já péssimas condições de vida dos mais fracos do planeta pioraram em poucas semanas. Não me interesso especialmente pelo vírus. É a fragilidade do sistema que me assustou, tanto que tenho dificuldade para me explicar. Quero dizer que tudo se redimensionou bruscamente. A obediência foi parar no topo da hierarquia de valores em um intervalo extraordinariamente breve. E as mulheres receberam mais ordens do que de costume, encarregadas, como tradicionalmente são, de deixar de lado a si mesmas para se ocupar da materialíssima sobrevivência da família: nutrir, vigiar, cuidar, fechar, fechar-se e, enquanto isso, sentir-se culpadas por tudo, como se, até aquele momento, tivessem tido pretensões demais. Nesse cenário, parece inevitável o retrocesso para enfrentar rebeliões primárias: alimento, água, um teto, remédios. Sim, acho que mais do que narrar a difusão da pandemia, deveria ser narrada a difusão do medo que muda e tira sentido das reivindicações elevadas, de ambições refinadas, enfim, de todo aquele “fazer” que fervilha quando o sistema econômico-social-cultural se finge sólido. Mas, repito, preciso pensar. Por enquanto, o problema é como fazer para que a questão feminina permaneça central. É necessário que ela seja sentida como não menos explosiva do que, por exemplo, a condição dos afro-americanos nos Estados Unidos ou as migrações entre guerras e miséria.

 

Tim van den Hoed, livreiro, De Utrechtse Boekenbar, Utrecht, Bélgica

 

O fascínio que Nápoles exerce sobre mim me levou a visitar a cidade duas vezes. Os quatro romances da' Tetralogia Napolitana' e as minhas experiências pessoais na cidade coexistem e, às vezes, se misturam, justamente como os vários personagens nos romances. Em que medida o uso de diversos personagens foi importante para traçar um retrato de Nápoles? E existe um personagem secundário do qual a senhora se sente mais próxima?

O senhor tem razão em destacar que o nosso olhar é nosso e, ao mesmo tempo, nele se confundem tantos outros pontos de vista expressos em romances e através de várias outras formas. Acontece com qualquer pessoa e, naturalmente, também com quem escreve, quem oferece ao público seu próprio modo de ver, absolutamente único e, todavia, de forma alguma singular. De fato, nele convergem antepassados e antepassadas, geografia, história, filosofia, ciências, os livros que lemos, as técnicas narrativas orais e escritas que aprendemos, muitíssimos lugares-comuns e, sobretudo, nossos contínuos embates com os outros, a maneira como deduzimos e imaginamos os sentimentos e pensamentos deles, o que é indizível, mas que, se decidirmos contar, precisaremos tentar encontrar as palavras certas. No relato de Nápoles - mas também no relato de objetos bem mais simples do que Nápoles -, entram em ação todas essas coisas e, geralmente, quem escreve sequer se dá conta. É um contínuo misturar, contaminar até estragar que fabrica um mundo falso, mas que, se bem-sucedido, finda contendo mais verdade do que o verdadeiro: a verdade que está ali, diante dos nossos olhos, mas que nunca vimos. Mas quem escreve realmente nunca sabe se esse resultado foi de fato alcançado. Nem o sucesso traz essa certeza. Aliás, assim que termina o livro, o autor se torna menos consistente do que os personagens secundários. Eu, como autora, se devo dizer a verdade, me sinto como a mãe dos Solara: tem todo o bairro nas mãos com aquele seu livro vermelho de agiota, todavia é uma senhorinha de pouquíssimo destaque. Aparece somente em poucas linhas, incomodada pelo calor, abanando-se.

 

 Readings Victoria, livraria, Austrália

 

O que significa para a senhora ouvir falar de “escrita feminina”?

Agarro-me à sua pergunta para me explicar melhor. Não há nada de errado em dizer “escrita feminina”, mas é necessário fazê-lo com circunspecção. Como existe uma vivência que é indubitavelmente feminina, toda a sua expressão oral ou escrita deveria ter um selo inequívoco de mulher. Mas, infelizmente, não é o que acontece. Tudo o que nós, mulheres, usamos para nos exprimir pertence pouco a nós, é um produto histórico com domínio masculino, em primeiro lugar a gramática, a sintaxe, as palavras, o próprio adjetivo “feminino” com suas várias conotações. A escrita literária, é claro, não é exceção. Portanto, a literatura das mulheres só pode surgir, com esforço, de dentro da tradição masculina, mesmo quando afirma a si mesma com força, mesmo quando busca uma genealogia específica que seja própria, mesmo quando absorve e toma para si a mistura dos sexos e a irredutibilidade do desejo sexual dentro de margens pré-fixadas. Isso significa que somos prisioneiras, que estamos destinadas a sermos de fato ocultadas para sempre pela própria língua com que tentamos falar de nós? Não. Mas é necessário perceber que se exprimir nesse quadro é um processo de tentativa e erro. Precisamos partir constantemente da hipótese de que, apesar de tantos progressos, ainda não somos realmente visíveis, ainda não somos realmente audíveis, ainda não somos realmente compreensíveis, e é preciso voltar a misturar mil vezes a nossa vivência como fazemos com uma salada, reinventando vozes surpreendentes para pessoas e coisas. Trata-se de encontrar o misteriosíssimo caminho (ou caminhos) que, a partir de uma rachadura, de um desvio nas formas já manifestadas, leve a uma escrita imprevisível até mesmo para nós que trabalhamos com isso.

 

Ivana Dobrakovová, tradutora para Inaque, Eslováquia

 

Até agora, a senhora sempre usou a ótica de uma narradora adulta (Leda, Olga, Delia) ou então deixou que a protagonista crescesse (Elena) para depois retroceder no tempo na narração; por que mudou no caso de Giovanna?

Não me parece que mudei, mas há algo diferente. Deixei indeterminada a identidade de quem dá forma literária ao eu de Giovanna. Leia novamente, cara Ivana, o brevíssimo prólogo no qual se alude ao “emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção”. Preste atenção naquele “quem”. É um trecho importante para mim. Sempre imagino minhas narradoras distantes dos fatos narrados. Quando põem a mão na escrita, elas já se sentem bem diferentes do que são na narrativa e devem se aproximar o máximo possível daquilo que foram para conseguir falar de si mesmas de alguma maneira. Também no caso de Giovanna, quem narra está em um tempo distante em relação aos eventos narrados e tem dificuldades em fazer o relato. Mas o fato, digamos, novo para as minhas histórias é que aquele “quem” não é necessariamente Giovanna.

 

Ann Goldstein, tradutora para Europa Editions, Estados Unidos

 

Como a senhora trabalha? Faz muitas correções? E de que tipo? Considera-se uma boa editora de si mesma? Muda com frequência palavras ou o tipo de linguagem?

O ponto decisivo para mim é chegar, partindo de absolutamente nada, a um esboço denso, caótico. O trabalho em cima do esboço é extenuante. Gasto muita energia para obter um texto com um início, um fim e repleto de vitalidade. É uma aproximação lenta, como à espreita de uma forma de vida sem uma fisionomia definida. Posso avançar sem parar, às vezes, até mesmo sem nunca reler, mas é raro. Geralmente avanço poucas linhas a cada dia, compondo-as e recompondo-as. Muitas vezes, perco o interesse e ponho tudo de lado. Mas esse é um caso muito sofrido e prefiro não abordá-lo aqui. Quero dizer, cara Ann, que, somente quando esse esforço preliminar teve um bom resultado, começa para mim o verdadeiro prazer de escrever. Recomeço desde o início. Apago trechos inteiros, reescrevo muito, mudo o percurso e até mesmo a natureza dos personagens, acrescento trechos que me ocorrem e me parecem necessários só naquele momento, quando já existe um texto, desenvolvo episódios que haviam sido apenas mencionados, modifico a posição de alguns acontecimentos, muitas vezes recupero páginas descartadas, primeiras versões mais longas, talvez mais feias, porém mais imediatas. É um trabalho que faço sozinha, não o dividiria com ninguém. Em contrapartida, a certa altura, preciso de leitores muito atentos, mas que devem prestar atenção somente nas minhas distrações: cronologia errada, repetições, formulações incompreensíveis. Mas tenho medo das sugestões que tendem a normalizar o texto, do tipo: não é assim que se diz, está faltando pontuação, essa palavra não existe, é uma formulação imprópria, é uma solução antipática, assim fica mais bonito. Mais bonito? A edição perigosa é a que zela pelo respeito do cânone estético vigente e também a que favorece anomalias compatíveis com o gosto difuso. Se um editor diz “no seu texto há coisas boas, mas precisamos trabalhar nisso”, é melhor retirar o manuscrito. Aquela primeira pessoa do plural é alarmante.

 

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Há muita paixão e coragem na voz feminina da autora

 

Luiz Zanin Oricchio, O Estado de S. Paulo, (30,08.20).

 

Há semelhanças e diferenças entre A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante, e a tetralogia napolitana, A Amiga Genial, que consagrou a autora. As 1.700 páginas da tetralogia compõem um roman-fleuve sobre os altos e baixos da amizade entre duas personagens, Lila e Lenù, da infância à velhice. As 432 páginas de A Vida Mentirosa dos Adultos (tradução de Marcello Lino) concentram-se numa única protagonista, Giovanna, dos 12 aos 16 anos de idade.

Pode-se dizer que o ambiente é o mesmo – Nápoles, a metrópole ao sul da Itália. Mas Nápoles é multifacetada, um mundo, como se sabe. A cidade das duas meninas da tetralogia resume-se ao “rione” pobre da classe trabalhadora. Uma delas é filha de um sapateiro, a outra, de um contínuo. Já a Nápoles de Giovanna (Giannina para os íntimos) é a de uma classe média intelectualizada. O pai, Andrea, é professor de história e filosofia. A mãe, Nella, leciona latim e grego. Família progressista, com ideias libertárias tanto na política como nos costumes. Eles são amigos íntimos de outra família, Mariano e Costanza, com duas filhas, Angela e Ida. Pais e mães se frequentam, as filhas são amigas entre si. Em especial, Giovanna e Angela, com a mesma idade.

Esse mundo quase idílico tem lá suas fraturas. A trinca mais evidente atende pelo nome de Vittoria, a irmã proscrita de Andrea. Ele se refere à irmã como a mais odiosa das criaturas, mulher destrutiva e feia como a fome, a ser evitada a todo custo. Tanto assim que Giovanna nem sequer conhece a tia, moradora de um bairro popular.

Livros de Elena Ferrante.  Foto: Chris Warde-Jones/The New York Times

Um dia, Giovanna ouve uma conversa em voz baixa entre o pai e a mãe na qual Andrea diz a frase fatídica: “Ela está ficando cada vez mais parecida com Vittoria”. Ora, raciocina a adolescente, se estou cada vez mais parecida com essa tia repulsiva, vou terminar sendo como ela ao crescer. Assim, o melhor é conhecê-la.

Esse expediente narrativo abre caminho para o rito de passagem de Giovanna. Se antes se encontrava protegida no nicho familiar e entre amizades com pessoas parecidas, ao decidir conhecer a tia, abre-se para novos personagens que terão influência em sua vida. A começar pela própria Vittoria, uma dessas personagens poderosas, traçadas com linhas fortes por Elena Ferrante.

Junto com Vittoria que, ao contrário do irmão não estudou e é empregada doméstica, toda uma Nápoles desconhecida abre-se para Giovanna. Além da tia, desbocada e agressiva, mas também terna e sincera, vem a família de Margherita e seus dois filhos, Corrado e Tonino, e a filha, Giuliana. Há uma conexão entre Margherita e Vittoria, como descobrirá quem ler o romance.

A autora vale-se também de outro expediente narrativo, uma misteriosa pulseira que ao longo da história passa de uma personagem a outra. Esclarecer a origem da joia e o fascínio despertado em quem a possui significa vislumbrar algo da estrutura das famílias em questão. É uma espécie de objeto transicional, como se diz em psicanálise, carregado de uma simbologia ambígua na vida daquelas pessoas, em especial as mulheres.

O percurso de Giovanna é o desse desvendamento do mundo em que vive e de si mesma. Tudo pouco transparente, como já diz o título do livro, o universo dos adultos é construído em cima de falsidades. “Mentiras, mentiras, os adultos as proíbem, porém dizem tantas”, constata a adolescente. Sim, mas a mesma complicação vale para ela mesma. No processo de tornar-se adulta e confrontar-se com o sexo, Giovanna é obrigada a reconhecer, ao referir-se a um suposto parceiro: “A verdade era difícil. O asco tinha suas ambiguidades” [Osório diz: Isso ela admite que o pai (certamente um machista), sabe!]. O mesmo nojo que sente em relação ao pequeno playboy Rosário também a atrai.

Essa complexidade do sexo torna difícil a partilha simplória entre verdade e mentira. E o sexo vive em toda parte, e em forma de paradoxo, admite a narradora: “Se cavarmos um pouco, encontramos o sexo em qualquer coisa, mesmo nas mais elevadas. Para se definir o sexo, um só adjetivo é insuficiente, são necessários vários – constrangedor, insosso, trágico, alegre, prazeroso, asqueroso – e nunca um de cada vez, todos juntos”. Freud não diria melhor.

No caráter tortuoso desse percurso entre a experiência vivida e a linguagem encontramos o melhor de Elena Ferrante. Os personagens são retratados por inteiro, jamais como clichês. A prosa fluida e elegante, clara em situações complexas, parece dar a cada palavra o peso justo. As oscilações abruptas entre o idioma oficial do país e o dialeto napolitano emergem como um retorno do reprimido justo nas situações-limite da violência, do ódio, do amor, do sexo.

Há muita paixão, coragem e honestidade na voz feminina de Elena Ferrante. Quem a lê, sente essa força.

* JORNALISTA E CRÍTICO DE CINEMA

Fonte: https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,critica-a-vida-mentirosa-dos-adultos-reafirma-paixao-e-coragem-na-voz-de-elena-ferrante,70003418999

 

Fonte da imagem: https://medium.com/@mlletristecoeur/essa-mina-carolina-%C3%A9-de-abalar-4da711afbb61

 

Burro

De novo, a burrice.

Bernardo Carvalho

 

FSP, 8.ago.2020.

 

É difícil separar burrice, má-fé e suicídio coletivo na gestação dos fascismos

 

Até agora ninguém contestou a correspondência entre a estupidez da gênese do nazifascismo e de hoje.

 

Muita gente rechaça a facilidade com que se compara o que estamos vivendo com a gestação do nazifascismo. É compreensível. Invocam o rigor acadêmico para traçar diferenças, apontando uma série de características históricas da gênese do fascismo que não se verificariam entre nós.

O que talvez não percebam é que assim também municiam, entre outras coisas, a hipocrisia retórica de um ministro da Justiça capaz de lançar mão de excrescências da ditadura militar em defesa de uma suposta honra do chefe e contra antifascistas.

Que eu saiba, até agora ninguém contestou a correspondência entre a estupidez dos dois momentos históricos. Como se os exemplos recentes não bastassem, um pequeno ensaio escrito em 1937 por um dos autores mais inteligentes da história da literatura pode nos ajudar na confirmação de que a burrice continua a mesma.

 

“Não existe pensamento importante do qual a burrice não consiga se apossar; ela pode tomar diversas direções e vestir todas as roupas da verdade. Esta, por sua vez, tem apenas uma roupa por ocasião, um único caminho, e está sempre em desvantagem”, escreveu o austríaco Robert Musil (1880-1942) em “Sobre a Estupidez” (publicado no Brasil pela Âyiné, em 2016).

É difícil delimitar as fronteiras entre a burrice, a má-fé e o suicídio coletivo na gestação dos fascismos. Hoje, com as chamadas fake news, temos mais uma correspondência com elementos históricos aos quais não gostaríamos de ser associados.

A cara de pau dos estafetas das autocracias se manifesta na inversão das “roupas da verdade”. Basta o fascista dizer que é a favor do Estado democrático de Direito (dizer que defende os indígenas, a Amazônia e a liberdade de expressão, enquanto promove a extinção de povos indígenas, o desmatamento da floresta e o fim das liberdades individuais) para implodir as instituições democráticas.

Se você perguntar ao Queiroz se ele é contra a corrupção, ele certamente dirá que sim. E é capaz de jurar por Jesus que votou em Jair Bolsonaro para limpar o país do crime.

A falta de pudor é obviamente encorajada pelo financiamento e pela impunidade do anonimato nas redes, travestido de “liberdade de expressão”: “Num manual de psiquiatria outrora bastante conhecido, à pergunta ‘Que é a justiça?’, a resposta ‘Quando o outro é punido’ era citada como exemplo notório de imbecilidade, embora ela forme hoje a base de uma opinião jurídica muito debatida”, escreveu Musil em 1937.

O escritor viveu em Viena até a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, quando se exilou na Suíça. O primeiro volume de sua obra-prima inacabada, “O Homem sem Qualidades”, saiu em 1930. Projeto literário imenso, o livro é assim definido por J.M. Coetzee no prefácio à edição argentina dos textos curtos do autor: “Um romance no qual a camada mais alta da sociedade vienense, dando as costas para as nuvens de tempestade que se avolumam no horizonte, reflete longamente sobre a forma que dará ao próximo festival de autocomplacência”.

Lembra alguma coisa ou é melhor não comparar momentos históricos tão díspares?

Vê-se que a burrice já não era privilégio de ignorantes nem atributo de pobres. Musil inicia seu ensaio com uma formulação cuja ironia talvez não esteja ao alcance dos nossos oportunistas de plantão: “Se a burrice não fosse tão parecida, a ponto de confundir-se com o progresso, o talento, a esperança e o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser burro”.

E assim como ninguém é inteligente sozinho, é mais fácil ser burro em grupo: “As condições de vida atuais são tão pouco claras, tão difíceis, tão confusas, que as burrices ocasionais do indivíduo podem facilmente acarretar uma burrice constitucional coletiva”.

Ao longo da década de 1930, Musil começou a temer pela conclusão de sua obra-prima. O que estava em questão no romance era a falência dos princípios iluministas: “Não é difícil concluir que a desesperança crescente de completar ‘O Homem sem Qualidades’ surgiu em parte do sentimento de que seu projeto, concebido no espírito do que considerava uma ‘suave ironia’, tivesse sido atropelado pelas quadrigas malignas da história”, escreve Coetzee.

A época pedia um estilo menos refletido e distanciado. Algo mais próximo e direto, “como a expressão da vida privada”, Musil anotou em seus diários no mesmo ano em que escreveu “Sobre a Estupidez”. Os tempos pediam que abrisse mão da reflexão irônica do romance, em nome da encenação do eu.

De novo, ocorre algo ou é melhor não insistir na comparação de momentos históricos tão distintos?

 

Autor: Bernardo Carvalho

Romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2020/08/e-dificil-separar-burrice-ma-fe-e-suicidio-coletivo-na-gestacao-dos-fascismos.shtml

 

Fonte da imagem: https://www.vivadecora.com.br/revista/amigurumi/.

 

 

Walter Benjamin 2

 Walter Benjamim, o azarão em pessoa!

 Lendo o livroHistória de livros perdidosde, Giorgio Van Straten (tradução de Silvia Massimini Felix, Unesp) descobri que Walter Benjamin pode até ter sido um cara talentoso culturalmente, mas que o cara tinha um azar que nem toneladas de sal grosso tiraria isso ele também tinha!

 

Nasceu com saúde muito frágil!

 

Foi se refugiar em uma cidade por medo de ataque em outra. Qual das duas foi bombardeada?

 

A lei que lhe permitia cruzar um país foi revogada no dia anterior à sua chegada!

 

Intelectual sim, mas azarão também!

 

Vejam abaixo.

 

Inté,

 

Osório Barbosa.

 

Eis:

  

CATALUNHA, 1940

UMA PESADA MALA PRETA

 

A vida de Walter Benjamin termina em 26 de setembro de 1940 numa pequena aldeia na fronteira entre a França e a Espanha, Port Bou. E é ele quem decide terminá-la.

 

Claro que é estranho pensar que um dos mais importantes intelectuais do século XX, um homem tão cosmopolita, tenha sido obrigado a escolher, ou melhor, a suportar o próprio destino num lugar na periferia de tudo.

 

Quando digo um dos mais importantes intelectuais do século XX, estou certo de não exagerar, e deveria acrescentar outro adjetivo para defini-lo: europeu, porque, se houve um homem que pensou nesses termos, nos anos em que a Europa era apenas uma expressão geográfica, foi ele, levado a mudar de uma nação a outra não só pelos acontecimentos e perseguições por ser judeu, mas também interesses e por sua curiosidade.

 

 

Nascido na Alemanha, em Charlottenburg, em 1892, depois das leis de Nuremberg, foi forçado a se mudar para a França, e Paris se tornou uma segunda pátria para ele, o [p. 82] lugar de suas paixões intelectuais, tanto que uma de suas obras fundamentais, mesmo que não finalizada, Passages, é inteiramente dedicada à Paris do século XIX.

 

Acho que Benjamin é uma figura excepcional, pois é difícil encontrar alguém que tenha juntado à erudição enciclopédica, o gosto minucioso da acumulação de materiais e noções, o refinamento que muitas vezes coincide com o fato de ser um epígono - conclamado a concluir um caminho em vez de iniciar outro -, sua própria capacidade de inovar, de ler o mundo sob uma luz diferente, aproveitando os únicos elementos iniciais das transformações de época que nos aguardavam. E, no entanto, aqueles que revolucionam geralmente não se preocupam com o estilo, apenas em quebrar, destruir, inventar, sem muitas preocupações com a linguagem.

 

Mas Benjamin era um revolucionário muito refinado. Foi ele, por exemplo, o primeiro a entender que a possibilidade de reproduzir a obra de arte, de poder vê-la sem estar fisicamente no lugar de sua conservação, teria esvaziado essa mesma obra de sua aura, dessa conjunção de distância, singularidade e maravilha que marcava a superioridade do artista em relação ao mundo.

 

O que fazia então esse intelectual refinado e criativo, tão profundamente citadino, naquele pequeno país fronteiriço? E acima de tudo, para me aproximar do tema da minha pesquisa, qual é o livro que Walter Benjamin perdeu? Porque se entenderá que, se eu o segui até aqui, nos contrafortes que desciam dos Pireneus para a Catalunha, é para [p. 83] descobrir o que aconteceu com o texto datilografado que levava consigo dentro de uma pesada mala preta da qual ele nunca queria se separar.

 

Voltemos alguns meses. Como eu já disse, desde 1933, Walter Benjamin morava em Paris, com a irmã Dora. Mas, em maio de 1940, após um período de imobilidade absoluta do front entre a França e a Alemanha, as tropas alemãs, invadindo os territórios de dois países neutros, a Bélgica e os Países Baixos, penetraram no território adversário sem enfrentar resistência, apenas porque ninguém esperava um ataque daquela direção. Entraram em Paris no dia 14 de junho de 1940 e, no dia anterior, apenas no dia anterior, Benjamin decidira deixar aquela cidade tão amada, mas que para ele estava se tornando uma armadilha.

 

Antes de fazê-lo, deixou com Georges Bataille, um intelectual como ele cheio de interesses e curiosidade, as fotocópias - digamos as ur-fotocópias, resultado das primeiras tentativas de reproduzir fotograficamente os documentos – de sua grande obra inacabada sobre Paris, Passages. Isso é importante porque, mesmo que na mala que mencionei estivesse preservado o original desse trabalho, a certeza de que outra pessoa tinha uma cópia dificilmente justificaria o apego mórbido àquela mala preta.

 

Quando escapou de Paris, Benjamin tinha uma ideia cabeça: chegar a Marselha e de lá, tendo em mãos a autorização de emigração para os Estados Unidos que seus amigos [p. 84] Theodor Adorno e Max Horkheimer conseguiram obter para ele, ir a Portugal e embarcar para a América.

 

Walter Benjamin não era um homem velho, tinha apenas 48 anos, embora os anos lhe pesassem mais do que antes. Mas era um homem cansado e doente – os amigos o chamavam de velho Benj, ele sofria de asma, já tivera um ataque cardíaco –, sempre incapaz de qualquer atividade física, passava todo o seu tempo em livros ou conversas intelectuais. Cada movimento, cada esforço físico representava para ele um trauma, mesmo que seus reveses o tivessem forçado, ao longo dos anos, a 28 mudanças de endereço. E, além disso, era incapaz de enfrentar a cotidianidade da existência, a vida corriqueira.

 

Hannah Arendt, ao descrever Benjamin, retomou o que Jacques Rivière disse sobre Marcel Proust:

 

Ele morreu da mesma incompetência que lhe permitiu escrever sua obra, morreu porque era inexperiente no mundo, porque não sabia como acender uma lareira, como abrir uma janela.

 

E acrescentou:

 

Sua falta de destreza o levava inevitavelmente ao encontro da má sorte.

 

E agora esse homem inepto nas coisas da vida cotidiana era obrigado a se mudar no meio de uma guerra, para um país em desordem, para uma confusão inextricável. [p. 85]

 

No entanto, e milagrosamente, depois de longas paradas forçadas e etapas percorridas com extrema dificuldade, Benjamin conseguiu chegar a Marselha no final de agosto, numa cidade que naquela época era a encruzilhada de milhares de refugiados e pessoas desesperadas que tentavam escapar do destino que as perseguia. E, para sobreviver, para poder sair daquela cidade, os documentos deveriam estar em ordem: a autorização de residência na França, em primeiro lugar, e depois os vistos para deixar o país, para atravessar a Espanha e Portugal, e, finalmente, aquele de entrada nos Estados Unidos. Benjamin foi tomado pelo desânimo.

 

Afinal, para retornar a sentença de Hannah Arendt sobre a má sorte, ele sempre esteve convencido de que esta o perseguia, que o perseguia o pequeno corcunda que nas cantigas alemãs é a personificação do azar. E muitas já haviam sido as ocasiões azaradas de sua vida: do fracasso no concurso de cátedra na Alemanha, onde apresentou um trabalho, Origem do drama trágico alemão, que ninguém havia entendido, até o fato de que, para escapar dos bombardeios que o aterrorizavam, tinha escapado nos subúrbios de Paris e acabara numa aldeia que foi a primeira a ser destruída, porque era uma junção ferroviária importante (e ele obviamente não sabia disso).

 

Em Marselha, conseguiu resolver algumas coisas. En-tregou a Hannah Arendt o manuscrito de sua tese Sobre o conceito de história para que o desse aos seus amigos Horkheimer e Adorno (e, portanto, esse tampouco poderia ser [p. 86] o conteúdo da mala preta) e retirou o visto para os Estados Unidos; mas ele não tinha um documento fundamental: 0 passe de saída da França, o qual não podia pedir para a prefeitura porque, nesse caso, seria denunciado como apátrida e entregue imediatamente à Gestapo.

 

Ele tinha apenas uma chance: ir para a Espanha clandestinamente através da rota Lister, do nome do comandante das tropas republicanas espanholas que, de lá, percorrendo-a na direção oposta, havia conseguido trazer algumas de suas brigadas em segurança no final da guerra civil.

 

A sugestão chegou de um velho amigo que Benjamin encontrou em Marselha: Hans Fittko. Sua esposa Lisa, que estava em Port Vendres, na fronteira com a Espanha, se ocupava de trazer para o outro lado quem estava naquela mesma situação. Então Benjamin partiu, junto com uma fotógrafa, Henny Gurland, e seu filho de 16 anos, Joseph: um grupo aleatório e totalmente despreparado.

 

Eles chegaram a Port Vendres no dia 24 de setembro. E, no mesmo dia, sob a orientação de Lisa Fittko, percorreram uma primeira parte do trajeto, para experimentar. Mas quando era hora de voltar, Benjamin decidiu não segui-los. Esperaria por eles até a manhã seguinte, para retomar a jornada juntos: estava muito cansado e preferia começar a partir dali no dia seguinte, evitando um pouco de fadiga. “Ali” havia uma floresta de pinheiros. Fisicamente destruído e desencorajado, Benjamin permaneceu sozinho, e não é fácil imaginar como passou aquela noite: se tomado [p.87] por suas ansiedades ou conquistado por esse silêncio, do céu estrelado de um setembro mediterrâneo tão distante do frio de um outono alemão.

 

Na manhã seguinte, foi alcançado pouco depois do amahecer por seus companheiros de viagem. A trilha se tornava cada vez mais árdua, às vezes era quase impossível reconhecê-la em meio às pedras e aos desfiladeiros. Benjamin sentia o cansaço crescer e arranjou um método para resistir: andar por dez minutos e descansar por um, sempre assim, com a precisão de seu relógio de bolso. Dez minutos de marcha e um minuto de descanso. Como o caminho se escarpava, as duas mulheres e o menino foram forçados a ajudá-lo, porque ele não podia carregar sozinho a mala preta que se recusou a abandonar, argumentando que era mais importante que chegasse à América o manuscrito que estava ali dentro do que ele mesmo.

 

Foi um grande esforço e o pequeno grupo esteve muitas vezes à beira de se render, mas, enfim, chegaram no cume e lá embaixo, cheio de luz, o mar apareceu, e um pouco mais além, a vila de Port Bou: eles tinham conseguido.

 

Lisa Fittko cumprimentou Benjamin, Henny Gurland e seu filho e voltou. Os três continuaram em direção à aldeia e chegaram à delegacia de polícia, certos de que, como acontecera com todos aqueles que os precederam, receberiam permissão dos fiscais espanhóis para continuar. Mas as ordens haviam mudado apenas um dia antes: aqueles que chegaram ilegalmente teriam de voltar para a França.

 

Para Benjamin, significava ser entregue aos alemães. A úni- [p. 88] ca concessão que obtiveram, dado o cansaço e a hora tardia, foi a de passar a noite em Port Bou: puderam se hospedar no Hotel França, Benjamin no quarto número 3. Sua expulsão foi adiada até o dia seguinte.

 

Mas o dia seguinte nunca chegou para Walter Benjamin: durante a noite ele se matou com 31 pastilhas de morfina que trouxera consigo, para o caso de ser assaltado por seus problemas cardíacos.

 

Naquela noite, talvez, ele pode ter pensado que o homenzinho corcunda que sempre parecia persegui-lo estava de volta para agarrá-lo permanentemente. Se eles tivessem chegado só um dia antes, de fato, ninguém teria se oposto ao seu desejo de continuar a jornada para Portugal; se, em vez disso, tivessem planejado sua passagem para o dia seguinte, teriam tido tempo de saber que as regras haviam mudado. Então, haveria uma maneira de estudar soluções alternativas e certamente não se entregariam à polícia espanhola. Havia apenas um intervalo de tempo que poderia levá-los à pior situação de todas. E aquele intervalo, justo aquele, foi o que lhes coube. A má sorte ganhou e Walter Benjamin se rendeu.”

 

Fonte da imagem: https://www.artmajeur.com/en/statiusmuller/artworks/5681932/hommage-a-walter-benjamin.

Pintura de: Mihaly Munkacsy (1844-1900).

O último dia de um condenado à morte Mihaly Munkacsy 1844 1900

 

O último dia de um condenado à morte.

 

Victor Hugo

 

 

Prefácio<![if !supportFootnotes]>[1]<![endif]>

 

Encabeçando as primeiras edições desta obra, publicada a princípio sem nome de autor, só figuravam as poucas linhas que seguem:

 

“Existem duas maneiras de constatar a existência deste livro. Ou bem houve, de fato, uma pilha de folhas amareladas e desiguais sobre as quais foram achadas, registradas uma a uma, as últimas reflexões de um pobretão; ou bem houve um homem, um sonhador ocupado em observar a natureza em proveito da arte, um filósofo, um poeta, talvez, que fez dessa ideia sua fantasia, que a tomou ou, melhor dizendo, foi tomado por ela, e que só conseguiu livrar-se dela jogando-a num livro. Das duas explicações, o leitor escolherá a que melhor lhe convier.”

 

Como se pode ver, na época em que o livro foi publicado, o autor não julgou necessário expor logo todas as suas ideias. Preferiu esperar que elas fossem entendidas e ver se, de fato, o seriam. E foram. Hoje, o autor pode desmascarar a ideia política, a ideia social, que ele quis divulgar adotando esta inocente e cândida forma literária. Está portanto declarando, ou melhor, confessando em voz alta que O último dia de um condenado não passa de uma defesa, direta ou indireta, como preferirem, da abolição da pena de morte. O que ele planejou, o que ele gostaria que passasse à posteridade na sua obra, se por acaso ela o merecer, não é a defesa especial, sempre fácil e sempre transitória, deste ou daquele criminoso em particular, deste ou daquele réu designado, é sim o discurso de defesa geral e permanente para todos os réus presentes e futuros; é o grande ponto de direito da humanidade, apresentado, e defendido em alto e bom som perante a sociedade, que é a grande Corte Suprema; é esta suprema recusa, abhorrescere a sanguine, precedendo, para sempre, qualquer processo criminal; é a tenebrosa e fatal questão que palpita na escuridão de todas as causas capitais sob as tríplices espessuras de pathos com as quais é envolta pela retórica sangrenta das gentes do rei; é, em suma, a questão de vida ou morte despida, desnuda, livre das manipulações ruidosas do foro, brutalmente exposta e colocada onde ela tem que ser vista, onde ela tem que estar, no seu meio verdadeiro, no seu meio horrível, não no tribunal, mas sim no cadafalso, não perante o juiz, mas sim perante o carrasco.

 

Foi isto que ele quis fazer. Se, algum dia, o futuro lhe reservasse a [15] glória de tê-lo feito, o que não ousou esperar, não haveria de querer outros louros

 

Por isso, vem ele declarar e repetir que está pleiteando em nome de todos os possíveis réus, inocentes ou culpados, perante todas as Cortes, todos os pretórios, todos os júris, todas as justiças. O presente livro está endereçado a quem quer que julgue. E, para que a defesa seja tão abrangente quanto a causa, foi-lhe preciso - e é por esta razão que O último dia de um condenado é assim feito - podar onde quer que fosse necessário no seu objeto, o contingente, o acidental, o peculiar, o especial, o relativo, o modificável, o episódio, a anedota, o acontecimento, o nome próprio, e limitar-se (se é que é limitar-se) a defender a causa de um condenado qualquer, executado num dia qualquer, por um crime qualquer. Feliz se, sem outra ferramenta que não o pensamento, conseguiu vasculhar o bastante para fazer um coração sangrar sob aes triplex<![if !supportFootnotes]>[2]<![endif]> do magistrado! Feliz, se ele fez com que os que se acreditam justos tenham se tornado piedosos! Feliz se, de tanto fustigar o juiz, conseguiu vez por outra, encontrar nele um homem!

 

Há três anos, quando da publicação deste livro, alguns pensaram que valia a pena contestar que a ideia fosse do autor. Uns imaginaram um livro inglês; outros, um livro americano. Estranha mania essa de procurar a mil léguas as origens das coisas, e querer que a água do regato<![if !supportFootnotes]>[3]<![endif]> que lava sua rua venha do rio Nilo! Infelizmente não temos aqui nenhum livro inglês, nem americano, nem chinês. O autor tirou a ideia de O Último Dia de um Condenado, não de um livro, não tendo o costume de ir buscar suas ideias tão longe, mas sim lá onde todos podemos pegá-la, onde talvez a tenhamos pego (pois quem não fez ou sonhou na própria mente O Último Dia de um Condenado?), simplesmente na praça pública, na praça de Grève<![if !supportFootnotes]>[4]<![endif]>. Foi aí que um dia, passando por lá, ele apanhou essa ideia fatal, que jazia numa poça de sangue debaixo dos cotos vermelhos da guilhotina.

 

Desde então, cada vez que, ao sabor das quintas-feiras fúnebres da Corte Suprema, acontecia um daqueles dias em que o grito de uma sentença de morte ecoava em Paris, cada vez que o autor ouvia passar sob suas janelas os uivos roucos juntando espectadores para a Praça de Grève, cada vez, voltava-lhe a dolorosa ideia que tomava conta dele, enchia-lhe a cabeça de gendarmes, de algozes e de multidões, explicava-lhe, minuto a minuto, os últimos sofrimentos do pobre agonizante, - agora, está confessando, agora estão cortando o cabelo dele, agora estão amarrando suas mãos - o intimava, ele, pobre poeta, a dizer tudo aquilo para a sociedade, que continua fazendo negócios enquanto se perpetra esta coisa monstruosa. A ideia o apressava, o empurrava, o [16] sacudia, tirava-lhe os versos da mente, se ele estivesse fazendo versos, dia tudo, investia contra ele, o obcecava, o assediava. Era um suplício, e matava-os ainda no esboço, dificultava qualquer trabalho seu, impeplício do infeliz que estava sendo torturado no mesmo momento até às quatro. Somente então, após que o ponens caput expiravit alardeado pela voz sinistra do relógio, o autor respirava e recobrava alguma liberdade de espírito. Finalmente um dia, que devia ser, segundo ele, o dia seguinte da execução de Ulbach<![if !supportFootnotes]>[5]<![endif]>, começou a escrever este livro. Desde então, sentiu-se aliviado. Quando um daqueles crimes públicos que são chamados de execuções judiciárias, veio a ser cometido, sua consciência lhe disse que ele já não era mais solidário; nunca mais sentiu na sua testa aquela gota de sangue que, da Grève, respinga na cabeça de todos os membros da comunidade social.

 

Entretanto, isto não é suficiente. Lavar as mãos é uma coisa, impedir que o sangue seja derramado, seria melhor.

 

Por isso, não haverá meta mais elevada, mais santa, mais augusta que essa: concorrer para a abolição da pena de morte. Eis por que, do fundo do coração, aderiu aos votos e aos esforços dos homens generosos de todas as nações que vêm trabalhando há anos para derrubar a árvore patibular, a única árvore que as revoluções não erradicam. É com alegria que ele vem, por sua vez, ele tão fraco, usar do machado e alargar como puder o talhe dado por Beccaria<![if !supportFootnotes]>[6]<![endif]>, sessenta e seis anos atrás, no cadafalso erguido há tantos séculos sobre a cristandade<![if !supportFootnotes]>[7]<![endif]>.

Acabamos de dizer que o cadafalso é o único edifício que as revoluções não derrubam. De fato, é raro que as revoluções sejam sóbrias de sangue humano e, já que vieram para podar, para esgalhar, para decapitar a sociedade, têm na pena de morte uma das podadeiras que só soltam muito a contragosto.

 

No entanto, temos que confessar que se alguma revolução nos pareceu digna e capaz de abolir a pena de morte, foi a revolução de julho. Parece, efetivamente, que cabia ao movimento popular mais clemente dos tempos modernos rasurar a bárbara penalidade de Luís XI, de Richelieu e de Robespierre e inscrever na fronte da lei a inviolabilidade da vida humana. 1830 merecia despedaçar a lâmina de 93.

Por um momento, esta foi a nossa esperança. Em agosto de 1830, havia tanta generosidade, tanta piedade no ar, reinava entre as massas [17] tal espírito de ternura e civilização, o coração parecia tão desabrochado com a chegada de um futuro promissor, que nos pareceu que a pena de morte tinha sido abolida de direito, na mesma hora, por um consenso tácito e unânime, como as outras coisas ruins que nos haviam incomodado. O povo acabava de queimar os andrajos do antigo regime. Aquele era o andrajo sangrento. Pensamos que estivesse no meio. Pensamos que tivesse sido queimado junto com os outros. E, durante algumas semanas, confiante e crédulo, confiamos, para o futuro, tanto na inviolabilidade da vida quanto na inviolabilidade da liberdade.

 

De fato, dois meses mais tarde, foi feita uma tentativa para resolver em realidade legal a sublime utopia de Cesare Bonesana. [Osório diz: O marquês de Beccaria]

 

Infelizmente, foi uma tentativa frustrante, desajeitada, quase hipócrita, e visando outro interesse que não o interesse geral.

 

No mês de outubro de 1830, como sabem, alguns dias após ter afastado, pela ordem do dia, a proposta de sepultar Napoleão debaixo da Coluna, a Câmara inteira pôs-se a chorar e a bramir. A questão da pena de morte veio à tona, veremos daqui a poucas linhas em quais circunstâncias; pareceu então que as entranhas de todos esses legisladores estivessem tomadas de uma repentina e maravilhosa misericórdia. Cada qual queria um tempo para falar, gemer, levantar as mãos para o céu. A pena de morte, oh, Deus! Que horror! Certo velho Procurador da Justiça, encanecido na sua toga vermelha, que a vida toda tinha comido o pão embebido no sangue dos requisitórios, adotou repentinamente um ar lastimável e invocou os deuses para atestar a indignação que lhe inspirava a guilhotina. Durante dois dias, assistiu-se a um desfile na tribuna de oradores feitos carpideiras. Foi um lamento, uma miriologia, um concerto de salmos lúgubres, um Super flumina Babylonis, um Stabat mater dolorosa, uma grande sinfonia em dó, com coro, executada por toda esta orquestra de oradores que enche as primeiras fileiras da Câmara e que dá uns sons tão belos nos grandes dias. Todos vieram: este com seu baixo, aquele com seu falsete. Nada faltou. Não poderia ter sido mais patético e lastimável. A sessão noturna foi particularmente terna, paterna e tão aflitiva quanto um quinto ato de Lachaussée<![if !supportFootnotes]>[8]<![endif]>. O bom público, que não estava entendendo nada, tinha lágrimas nos olhos<![if !supportFootnotes]>[9]<![endif]>.

 

De que se tratava enfim? de abolir a pena de morte?

 

Sim e não.

 

Eis os fatos:

 

Quatro homens da sociedade, quatro homens de bem, desses com [18] quem se pode cruzar num salão, e com quem talvez tenhamos trocado umas palavras corteses; quatro desses homens, digo, tinham tentado nas altas esferas políticas, um daqueles golpes audaciosos aos quais Bacon dá o nome de crimes e que Maquiavel chama de empreendimentos<![if !supportFootnotes]>[10]<![endif]>. Ora, crime ou empreendimento, a lei, brutal para todos, pune o delito com a morte: E os quatro infelizes estavam aí, presos, à mercê da lei, vigiados por trezentas insígnias tricolores sob as belas ogivas de Vincennes. O que fazer e como fazer? Hão de entender que é impossível mandar para a Grève, em cima de uma charrete, ignobilmente amarrados com grossas cordas, encostando nesse funcionário cujo nome nem mesmo deve-se pronunciar, quatro homens como você e eu, quatro homens da alta sociedade? Se, pelo menos, existisse uma guilhotina de mogno.

 

Simples: basta abolir a pena de morte!

 

E, com isso, a Câmara passa à ação.

 

Notem, Senhores, que ainda ontem, taxavam esta mesma abolição de utopia, teoria, sonho, loucura, poesia. Notem que não é a primeira vez que procuraram chamar a atenção dos Senhores para a charrete, as grossas cordas e a horrível máquina escarlate, e que é estranho que este aparato hediondo tenha de repente se tornado gritante para os Senhores.

 

O que importa? Como se se tratasse disso! Não é por sua causa, povo, que estamos abolindo a pena de morte, mas sim por nossa causa, deputados que podemos tornar-nos ministros. Não queremos que a mecânica do Senhor Guillotin venha a morder as classes altas. Nós a quebramos. Tanto melhor se isso agrada a todos, mas só pensamos em nós mesmos. Ucalegon está em chamas<![if !supportFootnotes]>[11]<![endif]>. Apaguemos o fogo. Rápido, eliminemos o carrasco, rasuremos o código.

 

Eis como uma aliança de egoísmo altera e desnatura as mais belas combinações sociais. É o veio preto no mármore branco; circula pela peça toda e, imprevisível, aparece a qualquer instante, sob o cinzel. A estátua há de ser feita de novo.

 

Certamente, não é preciso declará-lo aqui, não somos daqueles que pediam a cabeça dos quatro ministros. Após a prisão desses desventurados, a cólera de indignação que tinha nos inspirado o atentado, transformou-se, para nós como para todos, numa profunda piedade. Pensamos nos preconceitos de educação de alguns deles, no cérebro pouco desenvolvido de seu chefe, recidiva fanática e obstinada das conspirações de 1804, encanecida antes do tempo na sombra úmida dos cárceres estatais, nas necessidades fatais de sua posição comum, na impossi- [19] bilidade de frear nessa descida acentuada na qual a própria monarquia tinha-se atirado de cabeça no dia 8 de agosto de 1829, na influência da pessoa real, até então subestimada por nós, e sobretudo na dignidade que um deles derramava como um manto de púrpura sobre a sua infelicidade. Somos daqueles que, sinceramente, desejávamos que tivessem a vida salva e que estávamos prontos a nos sacrificarnos por isso. Se, por impossível que fosse, o cadafalso tivesse sido erguido algum dia na Praça de Grève, não temos dúvidas – e se for uma ilusão, queremos conservá-la - não temos dúvidas que teria se formado um motim a fim de derrubá-lo, e o que traça essas linhas teria participado deste santo motim. Já que, há de ser dito também, nas crises sociais, de todos os cadafalsos, o mais abominável, o mais funesto, o mais venenoso, o mais necessário de extirpar, é o cadafalso político. Esta espécie de guilhotina está enraizada entre as pedras das ruas e, dentro de pouco tempo, já estão brotando mudinhas em todos os pontos do chão.

 

Em tempos de revolução, cuidado com a primeira cabeça a rolar! Ela abre o apetite do povo.

 

Pessoalmente, concordávamos então com aqueles que queriam poupar os quatro ministros, e concordávamos sob todos os aspectos, tanto por razões sentimentais quanto por razões políticas. Porém, teríamos preferido que a Câmara tivesse escolhido outra ocasião para propor a abolição da pena de morte.

 

Se esta desejável abolição tivesse sido proposta não para o caso dos quatro ministros presos das Tuileries para Vincennes, mas sim no caso de um ladrão de galinhas qualquer, no caso desses pobres que os Senhores mal olham quando passam perto na rua, com os quais não se fala, cuja aproximação poeirenta é instintivamente evitada pelos Senhores; infelizes cuja infância esfarrapada correu descalça no lodo dos cruzamentos, tremendo de frio no inverno, no parapeito dos cais, tentando esquentar-se no respiradouro das cozinhas do senhor Véfour, na casa de quem os Senhores estavam jantando, desenterrando aqui e ali uma casca de pão num monte de lixo e limpando-a antes de comê-la, cavando na sarjeta com um prego o dia inteiro para catar uma moeda, tendo como única brincadeira o espetáculo livre da festa do Rei e as execuções na Praça de Grève, outro espetáculo grátis; pobretões que a vida leva ao roubo e o roubo ao resto; crianças deserdadas de uma sociedade madrasta, que a casa de detenção leva com doze anos, os trabalhos forçados com dezoito, o cadafalso com quarenta; desafortunados que, com uma escola e uma boa oficina, os Senhores poderiam ter tornados bons, morais, úteis, e com os quais não sabem o que fazer, jogando-os como um fardo inútil, ora no formigueiro vermelho de Toulon, ora no cercado silencioso de Clamart<![if !supportFootnotes]>[12]<![endif]>, tirando-lhes a vida após ter-lhes roubado a liberdade; se tivessem proposto a abolição da pena de morte no caso de um desses homens, então, sim! a sessão dos Se- [20] nhores teria sido verdadeiramente digna, grande, santa, majestosa, venerável. Desde os augustos padres de Trento, convidando os heréticos ao concílio em nome das entranhas de Deus, per viscera Dei, porque se esperava deles uma conversão, quoniam sancta synodus sperat hoereticum conversionem, nunca assembléia de homens teria apresentado ao mundo espetáculo mais sublime, mais ilustre e mais misericordioso. Sempre foi prerrogativa dos verdadeiramente fortes e verdadeiramente grandes a preocupação com os fracos e os pequenos. Um conselho de brâmanes seria belo se abraçasse a causa do pária. E aqui, a causa do pária é a causa do povo. Abolindo a pena de morte, por causa dele, sem esperar estarem diretamente interessados na questão, teriam feito mais que uma obra política, teriam feito uma obra social.

 

Entretanto nem conseguiram fazer uma obra política, tentando aboli-la não para aboli-la, mas sim para salvar quatro infelizes ministros apanhados com a boca na botija dos golpes de estado!

 

O que aconteceu? Foi que, como não eram sinceros, o povo ficou desconfiado. Quando viu que queriam enganá-lo, rejeitou em peso toda a questão e, fato notável! abraçou a causa desta pena de morte cujo peso no entanto recai sobre ele. Foi a inabilidade dos Senhores que o levou a isso. Abordando a questão de soslaio e sem franqueza, os Senhores a comprometeram por muito tempo. Os Senhores estavam representando uma comédia. Foi vaiada.

 

No entanto, alguns espíritos tinham tido a bondade de levar esta farsa a sério. Imediatamente após a famosa sessão, a ordem tinha sido dada aos Procuradores, por um Ministro da Justiça honesto, para suspender, por tempo indefinido, qualquer execução capital. Aparentemente, era um grande passo. Os adversários da pena de morte respiraram aliviados. Mas a ilusão durou pouco.

 

O julgamento dos ministros foi levado a cabo. Não sei qual foi a sentença. As quatro vidas foram poupadas. Ham<![if !supportFootnotes]>[13]<![endif]> foi escolhida como o justo meio entre a morte e a liberdade. Após a realização desses diversos arranjos, todo medo desvaneceu nas mentes dos homens de estado dirigentes, e, junto com o medo, foi-se a humanidade. Não mais se falou em abolir o suplício capital; e quando deixou de ser necessária, a utopia voltou a ser utopia, a teoria, teoria e a poesia, poesia.

Entretanto, ainda existiam nos cárceres alguns coitados condenados comuns que, fazia cinco ou seis meses, vinham passeando no pátio, respirando o ar, já sossegados, com a certeza de viver, tomando este sursis por um perdão. Mas esperem.

 

O algoz, na verdade, tinha ficado muito assustado. No dia em que ouvira os fazedores de leis falar em humanidade, filantropia, progresso, pensou que estivesse perdido. Este miserável escondera-se, agachara-se debaixo da guilhotina, tão pouco à vontade naquele sol de julho quanto uma ave noturna em plena luz do dia, tentando fazer com [21] que o esquecessem, tapando os ouvidos e sem ousar respirar. Fazia seis meses que tinha sumido. Não dava mais sinal de vida. Aos poucos, no entanto, tinha ficado mais tranquilo nas tênebras. Tinha ido escutar pelos lados da Câmara e não tinha mais ouvido seu nome ser citado. Nem ouvia mais aquelas grandes palavras sonoras que tanto o haviam apavorado. Nem mais comentários inflamados do Tratado dos delitos e das penas<![if !supportFootnotes]>[14]<![endif]>. Estavam cuidando de outra coisa totalmente diferente, de algum sério interesse social, de um caminho vicinal, de uma subvenção para a Opéra-Comique, ou ainda de uma sangria de cem mil francos num orçamento apopléctico de um bilhão e quinhentos milhões. Vendo isso, nosso homem se tranquiliza, põe a cabeça fora da toca e olha por todos os lados; dá um passo, dois, como não sei mais qual ratinho de La Fontaine<![if !supportFootnotes]>[15]<![endif]>, e arrisca-se a sair de vez de baixo da sua forca, e pulando em cima, põe-se a consertar, restaurar, lustrar, acariciar, acionar, polir, volta a engraxar a velha mecânica enferrujada, estragada pela ociosidade; de repente, vira-se, pega pelo cabelo, ao acaso, na primeira prisão, um daqueles infelizes que contavam com a vida, puxa-o para si, tira-lhe a roupa, amarra-o, e eis que as execuções recomeçam.

 

Tudo isto é horrível mas é a história.

 

Houve, de fato, um sursis de seis meses concedido a uns pobres prisioneiros cuja pena foi assim gratuitamente aumentada, permitindo que eles voltassem a tomar gosto pela vida; depois, sem razão, sem necessidade, sem muito saber por que, pelo prazer, um belo dia, o sursis foi revogado e todas essas criaturas humanas foram friamente realinhadas para o corte. Meu Deus! Eu vos pergunto, será que incomodava alguém se aqueles homens vivessem? Será que não há na França ar suficiente para que todos possam respirar?

 

Para que um dia um miserável adido de chancelaria, para quem tanto fazia, tenha se levantado da cadeira, dizendo: – Vamos, ninguém mais está pensando na abolição da pena de morte. Está na hora de voltar a guilhotinar! - foi preciso que tenha acontecido no coração deste homem algo verdadeiramente monstruoso.

 

De resto, que seja dito, nunca as execuções foram acompanhadas de circunstâncias tão atrozes quanto desde aquela revogação do sursis de julho, nunca a anedota da Praça de Grève foi mais revoltante e nunca provou melhor o caráter execrável da pena de morte. Este recrudescimento do horror é o justo castigo dos homens que puseram novamente em vigor o código de sangue. Que sejam punidos pela sua obra. Bem feito.

 

É necessário citar aqui dois ou três exemplos de quão aterrorizantes e impiedosas foram certas execuções. É preciso atingir os nervos das mulheres dos Procuradores do rei. As vezes, uma mulher é uma consciência.

 

No Sul, pelo fim do mês de setembro passado, não nos lembramos exatamente o lugar, o dia, nem o nome do condenado, mas podemos [22] citá-los se o fato for contestado, e achamos que foi em Pamiers<![if !supportFootnotes]>[16]<![endif]>; lá pelo fim de setembro, foram buscar o homem na prisão onde estava tranquilamente jogando cartas, notificam-no que ele tem que morrer dentro de duas horas, com o que ele começa tremer da cabeça aos pés, pois, depois de seis meses no mais completo esquecimento, já não contava mais com a morte; raspam-no, tosam-no, amarram-no, confessam-no; após o que jogam-no num carrinho de mão entre quatro gendarmes e, passando pela multidão, levam-no ao lugar da execução. Até aqui, tudo muito simples. É assim que acontece. Chegando no cadafalso, o carrasco toma-o do padre, leva-o, amarra-o no básculo, l'enfoure17<![if !supportFootnotes]>[17]<![endif]>, aqui estou usando a gíria, e solta a lâmina. O pesado triângulo de ferro desprende-se com dificuldade, cai aos solavancos entre os trilhos, e aqui começa o horrível, corta o homem sem matá-lo. O homem dá um grito medonho. Desconcertado, o carrasco puxa a lâmina e solta-a novamente. A lâmina entalha o pescoço do paciente pela segunda vez mas não o separa do corpo. O paciente dá urros, a multidão também. O carrasco torna a levantar a lâmina, esperando sair-se melhor da terceira vez. Nada. O terceiro golpe faz jorrar um terceiro rio de sangue do pescoço do condenado, mas não trincha a cabeça. Para encurtar, a lâmina subiu e desceu cinco vezes, por cinco vezes, cortou o condenado, por cinco vezes, o condenado soltou urros sob o golpe e sacudiu a cabeça gritando, pedindo perdão! O povo indignado armou-se de pedras e pôs-se, na sua justiça, a apedrejar o miserável carrasco. O carrasco foge por baixo da guilhotina, lá agacha-se atrás dos cavalos dos gendarmes. Mas a história ainda não acabou. O supliciado, vendo-se sozinho no cadafalso, tinha se levantado da tábua e, em pé, pavoroso, o sangue escorrendo pelo corpo, segurando a cabeça parcialmente cortada que caía no seu ombro, pedia com gritos fracos que viessem soltá-lo. A multidão, tomada pela piedade, estava a ponto de forçar os gendarmes e prestar ajuda ao coitado a quem tinham aplicado cinco vezes a sentença de morte. É neste momento que um ajudante do carrasco, um jovem de vinte anos, sobe no cadafalso, pede para o paciente virar-se para que ele possa soltá-lo e, aproveitando-se de posição do moribundo que estava se entregando a ele sem desconfiar, pula nos ombros dele e começa a cortar o que restava de pescoço com não sei que faca de açougueiro. Isto aconteceu. Isto foi visto. Sim.

 

Nos termos da lei, um juiz deve ter assistido a essa execução. Com um gesto, podia ter interrompido tudo. O que estava fazendo este homem, no fundo da sua carruagem, enquanto um homem estava sendo massacrado? O que fazia este punidor de assassinos, enquanto alguém estava sendo assassinado, em plena luz do dia, debaixo de seus olhos, sob o sopro dos seus cavalos, debaixo do vidro da sua portinhola?

[23]

 

E o juiz não foi submetido a julgamento! e o carrasco não foi submetido a julgamento! E nenhum tribunal inquiriu essa monstruosa exterminação de todas as leis na pessoa sagrada de uma criatura de Deus!

 

No século dezessete, na época de barbárie do código criminal, sob Richelieu, sob Christophe Fouquet, quando o Senhor de Chalais foi assassinado na frente do Bouffay de Nantes por um soldado desajeitado que, em vez de um golpe de espada, aplicou-lhe trinta e quatro golpes<![if !supportFootnotes]>[18]<![endif]> de uma raspilha de tanoeiro, o tribunal de Paris achou, pelo menos, o fato irregular; houve inquérito e processo e, se Richelieu não foi punido, se Christophe Fouquet não foi punido, o soldado sim. Pode ter sido injustiça mas no fundo da qual havia uma certa justiça.

 

Aqui, nada. O fato aconteceu depois de julho, numa época de costumes civilizados e de progresso, um ano após o famoso lamento da Câmara a respeito da pena de morte. Pois bem! o fato passou totalmente despercebido. Os jornais parisienses publicaram-no como uma anedota. Ninguém foi molestado. A única coisa que se soube, foi que a guilhotina tinha sido desregulada de propósito, por alguém que queria prejudicar o executor das altas obras. Era um ajudante do carrasco, expulso pelo seu patrão, que, para vingar-se, tinha aprontado esta artimanha.

 

Não passava de uma espécie de brincadeira. Vamos adiante.

 

Em Dijon, há três meses, uma mulher foi levada ao suplício. (Uma mulher!) Mais uma vez, a faca do Doutor Guillotin fez um serviço mal feito. A cabeça não foi totalmente cortada. Então, os ajudantes do executor puxaram a mulher pelos pés e, no meio dos urros da coitada, e de tanto puxar e sacolejar, separaram a cabeça do tronco por arrancamento.

 

Em Paris, estamos voltando à época das execuções secretas. Como desde julho não ousam mais decapitar na Grève, como têm medo, como são covardes, eis o que fazem. Pouco tempo atrás, pegaram um homem em Bicêtre, um condenado à morte, um tal de Désandrieux, me parece; puseram-no numa espécie de cesto furado sobre duas rodas, fechado por todos os lados, com cadeado e ferrolho; após o que, com um gendarme na frente e outro atrás, evitando o barulho e a multidão, foram depositar o pacote perto da barreira deserta de Saint-Jacques. Lá chegando, às oito horas da manhã havia uma guilhotina erguida fazia pouco e, como público, uma dúzia de meninos agrupados nos montes de pedras em volta da máquina inesperada; rapidamente tiraram o homem de dentro do cesto e, sem dar-lhe tempo de respirar, furtivamente, disfarçadamente, vergonhosamente, escamotearam-lhe a cabeça. Chamam isso de um ato público de alta justiça. Infame derrisão!

 

Como será que os funcionários do rei entendem a palavra civilização? Onde estamos? A justiça rebaixada aos estratagemas e às trapaças! A lei as medidas expeditivas! Monstruoso!

[24]

 

Um condenado à morte deve ser uma coisa particularmente temível para que a sociedade o pegue assim, desse jeito traiçoeiro!

 

Para ser justo, no entanto, devemos dizer que a execução não foi totalmente secreta. De manhã, gritaram e venderam, como de costume, a sentença de morte nas esquinas de Paris. Dizem que tem gente que vive desta venda. Estão entendendo? Do crime de um infeliz, do seu castigo, das torturas, da agonia, fazem uma mercadoria, um papel que vendem por um soldo. Podem conceber algo mais hediondo que aquele soldo, coberto de zinabre no sangue? Quem será que o apanha?

 

Chega de fatos. Basta! Tudo isso não é horrível? O que podem alegar a favor da pena de morte?

 

 

Fazemos esta pergunta seriamente; fazemo-la para que ela seja respondida; fazemo-la aos criminalistas e não aos letrados tagarelas. Sabemos que existem pessoas que tratam da excelência da pena de morte como de um texto polêmico, como tratariam de qualquer outro assunto. Outros só apoiam a pena de morte porque odeiam este ou aquele que a combate. Para eles, é uma questão quase literária, uma questão de pessoas, uma questão de sobrenomes. Aqueles são os invejosos que fazem tanta falta aos jurisconsultos quanto aos grandes artistas. Os Filangieri sentem tanta falta dos Giuseppe Grippa quanto os Miguelângelo dos Torregiani e quanto os Corneille dos Scudéry<![if !supportFootnotes]>[19]<![endif]>.

 

Não é para eles que estamos dirigindo esta pergunta, mas sim para os homens de lei propriamente ditos, para os dialéticos, os argumentadores, os que amam a pena de morte pela sua beleza, pela sua bondade, pela sua graça.

 

Vamos, que deem suas razões.

 

Os que julgam e condenam dizem a pena de morte necessária. Em primeiro lugar, porque é importante eliminar da comunidade social um membro que já a prejudicou e que poderia prejudicá-la outra vez. - Se se tratasse apenas disso, a prisão perpétua seria suficiente. Para que a morte? Retrucam que se pode escapar de uma prisão? Melhorem as rondas! Se não têm confiança na solidez das grades, como ousam manter feras em cativeiro?

 

Nada de carrasco onde basta o carcereiro.

 

Mas, objetam eles, - é preciso que a sociedade se vingue, que a sociedade puna. - Nem uma coisa nem outra. A vingança cabe ao indivíduo, a punição a Deus.

 

A sociedade está entre os dois. O castigo está acima dela, a vingança abaixo. Nada tão grande nem tão pequeno lhe convém. Não deve “punir para vingar-se”; deve corrigir para melhorar. Transformem assim a fórmula dos criminalistas, nós a entenderemos e a adotaremos.

[25]

 

Resta a terceira e última razão, a teoria do exemplo. – Tem que haver exemplos! Tem que apavorar pelo espetáculo da sorte reservada aos criminosos aqueles que poderiam cair na tentação de imitá-los! - Esta é quase textualmente a eterna frase cujas variações mais ou menos sonoras ouvimos em todos os requisitórios dos quinhentos tribunais da França. Pois bem! Primeiro, negamos que haja exemplo. Negamos que o espetáculo dos suplícios produza o efeito esperado. Longe de edificar o povo, desmoraliza-o e arruina nele qualquer sensibilidade, portanto qualquer virtude. As provas são inúmeras e dificultariam o nosso raciocínio se quiséssemos citá-las. Apontaremos no entanto um fato entre mil, por ser o mais recente. Só se passaram dez dias até o momento em que estamos escrevendo. Foi no dia 5 de março, último dia de Carnaval. Em Saint-Pol, imediatamente após a execução de um incendiário chamado Louis Camus, um grupo mascarado veio dançar em volta do cadafalso ainda fumegante. Querem dar exemplos! A terça-feira de Carnaval está aí para ridicularizá-los.

 

Se, apesar da experiência, fazem questão da teoria rotineira do exemplo, que nos devolvam então o século dezesseis, sejam verdadeiramente formidáveis, que nos devolvam a variedade dos suplícios, Farinacci<![if !supportFootnotes]>[20]<![endif]>, que nos devolvam os atormentadores-jurados, que nos devolvam a forca, a roda, a fogueira, a estrapada, o desorelhamento, o esquartejamento, a fossa de sepultar vivo, a cuba de escaldar vivo; devolvam-nos, em cada esquina de Paris, como uma butique a mais entre as outras, a hedionda banca do carrasco, sempre repleta de carne fresca. Que nos devolvam Montfaucon<![if !supportFootnotes]>[21]<![endif]> e junto os dezesseis mastros de pedra, os toscos fundamentos, os ossários subterrâneos, as travas, os ferros, as correntes, as fileiras de esqueletos, o relevo de gesso pontilhado de corvos, as forcas anexas, e o cheiro de cadáver que o vento de noroeste espalha em generosas lufadas sobre todo o Faubourg du Temple. Devolvam-nos na sua permanência e sua potência esse gigantesco alpendre do carrasco de Paris. Agora sim! Isto é que é exemplo! Isto é que é pena de morte bem entendida. Eis um sistema de suplícios de proporções respeitáveis. Isto sim é horrível, mas aterrorizante.

 

Ou então façam como na Inglaterra. Na Inglaterra, país de comércio, pegam um contrabandista na costa de Dover, pegam-no para o exemplo, para o exemplo deixam-no pendurado na forca; porém já que as intempéries do ar poderiam deteriorar o cadáver, ele é cuidadosamente embrulhado numa lona coberta de alcatrão, para ele não ter que ser trocado tão amiúde. Oh! Terra econômica! Passar alcatrão nos enforcados!

 

No entanto, não é desprovido de lógica. É a maneira mais humana de entender a teoria do exemplo.

 

Mas os Senhores pensam seriamente dar um exemplo quando na- [26] dam degolando sordidamente um pobretão no recanto mais deserto dos bulevares periféricos. Na Praça de Grève, em plena luz do dia, vá lá; mas na barreira Saint-Jacques! As oito horas da manhã! Quem passa por lá? Quem vai até lá? Quem sabe que estão matando um homem? Quem imagina que estão dando um exemplo lá? Um exemplo para quem? Para as árvores do bulevar, pelo visto.

 

Não percebem que suas execuções públicas são realizadas às escondidas? Não percebem que estão se escondendo? Que sentem medo e vergonha da sua obra? Que só conseguem gaguejar, ridículos, seu discite iustitiam moniti<![if !supportFootnotes]>[22]<![endif]>? Que, no fundo, estão abalados, sem ação, intranquilos, sem saber se estão com a razão, acometidos pela dúvida geral, cortando cabeças por rotina e sem saber exatamente o que estão fazendo? Será que não sentem no fundo do coração que perderam no mínimo o sentimento moral e social da missão de sangue que seus predecessores, os velhos parlamentares, cumpriam com a consciência tranqüila? Será que de noite, não se debatem mais que eles na cama? Outros, antes dos Senhores ordenaram execuções capitais mas achavam que estavam agindo conforme o direito, a justiça, o bem. Jouvenel des Ursins considerava-se juiz; Laubardemont, La Reynie e Laffemas também, consideravam-se juízes; os Senhores, no seu foro íntimo, não têm tanta certeza de não serem assassinos!

 

Trocaram a Grève pela barreira Saint-Jacques, a multidão pela solidão, o dia pelo crepúsculo. Não fazem mais o seu ofício com a mesma firmeza. Eu lhes digo, estão se escondendo!

 

Todas as razões a favor da pena de morte estão agora por terra. Todos os silogismos dos tribunais foram aniquilados. Todas essas lascas de requisitórios, ei-las varridas e reduzidas a cinzas. O menor contato com a lógica dissolve os raciocínios falhos. Que os funcionários do rei não venham mais pedir-nos cabeças, a nós, jurados, a nós, homens, adjurando-nos, com a voz melosa e em nome da sociedade a ser protegida, da venda pública a ser assegurada, dos exemplos a serem dados. Tudo isso é retórica, empolamento, vazio. Uma alfinetada nessas hipérboles e ei-las murchas. Atrás desse palavrório adocicado, só acharão corações duros, crueldade, barbárie, vontade de mostrar zelo, necessidade de ganhar os honorários. Calem-se, mandarins! Debaixo da pata de veludo do juiz, sentem-se as unhas do carrasco.

 

É difícil pensar a sangue frio no que é um procurador real criminalista. É um homem que passa a vida mandando outros para o cadafalso. É o provedor titular das praças de Grève. De resto, é um senhor que tem pretensões estilísticas e literárias, bom orador ou pensando sê-lo, que declama, se for preciso, um ou dois versos latinos antes de concluir pela morte, que procura impressionar, que empenha o amor próprio, que miséria! Onde outros estão com a vida empenhada, que tem modelos próprios, tipos desesperadamente difíceis de serem alcançados, [27] seus clássicos, Bellart, Marchangy, como tal poeta tem Racine e tal outro, Boileau. No debate, pende para o lado da guilhotina, é o seu papel, é o seu estado. Seu requisitório é a sua obra literária, floreia-o com metáforas, perfuma-o com citações, pois tem que fazer bonito durante toda audiência, agradar as damas. Tem uma bagagem de lugares comuns ainda novinhos para o interior, uma elegância na elocução, os rebuscamentos, os refinamentos de escritor. Odeia o nome próprio quase tanto quanto nossos poetas trágicos da escola de Delille. Não tenham medo que ele chame as coisas pelo nome. Irra! Para qualquer ideia cuja nudez vos repugnaria, possui disfarces completos de epítetos e adjetivos. Com ele, o Sr. Samson<![if !supportFootnotes]>[23]<![endif]>23 torna-se apresentável. Envolve a lâmina em panos. Estompa o básculo. Embrulha o cesto vermelho numa perífrase. Não se sabe mais do que se trata. É dulçoroso e decente. Podem imaginá-lo, à noite, no seu gabinete, elaborando à vontade e da melhor maneira possível, a arenga que fará com que um cadafalso seja erguido dentro de seis semanas? Conseguem vê-lo suando sangue e água para encaixar a cabeça de um acusado no mais fatal artigo do código? Podem vê-lo serrando com uma lei mal feita o pescoço de um pobretão? Podem notar como deixa macerar num amálgama de tropos e sinédoques dois ou três textos venenosos para daí exprimir e extrair com muita dificuldade a morte de um homem? Não é verdade que, enquanto ele está escrevendo, debaixo da escrivaninha, no escuro, encontra-se provavelmente o carrasco agachado aos seus pés e que, vez por outra, levanta a pena para dizer-lhe, tal um dono a seu cão: - Quieto, quieto! Já vou te dar um osso!

 

De resto, na vida privada, este homem do rei pode ser um homem honesto, bom pai de família, bom filho, bom marido, bom amigo, como dizem todos os epitáfios do Père-Lachaise<![if !supportFootnotes]>[24]<![endif]>.

 

Tomara que seja próximo o dia em que a lei abolirá essas funções fúnebres. Só o ar da nossa civilização deveria, num tempo determinado, desgastar a pena de morte.

 

Somos às vezes inclinados a acreditar que os defensores da pena de morte não pensaram o bastante sobre o que ela é. Mas basta pesar na balança de qualquer crime que seja este direito exorbitante que se arroga a sociedade de tirar o que ela não deu, esta pena, a mais irreparável das penas irreparáveis!

 

Das duas uma:

 

Ou o homem que estão castigando não tem família, parentes, nem agregados neste mundo e, neste caso, não recebeu nem educação, nem instrução, nem cuidados para a mente, nem cuidados para o coração; e então, com que direito estão matando este órfão infeliz? Estão punindo-o porque sua infância rastejou no chão sem talo nem tutor! Estão [28] acusando-o do crime de isolamento no qual o deixaram! Da sua infelicidade fazem um crime! Ninguém ensinou-o a saber o que ele estava fazendo. Este homem ignora. A culpa é do seu destino, não dele. Estão castigando um inocente. [Osório diz: que parágrafo lindo!]

 

Ou este homem tem família; e então acreditam que com o golpe que o degolará, só ele será ferido? Que seu pai, sua mãe, seus filhos, não estarão ensanguentados? Não. Matando-o, estão degolando a família inteira. Novamente, estão castigando inocentes.

 

Confusa e cega penalidade que, por onde quer que se volte, castiga o inocente!

 

Este homem, este culpado que tem uma família, sequestrem-no. Na prisão, ainda poderá trabalhar para os seus. Mas como poderá sustentá-los do fundo do túmulo? Podem imaginar sem sentir arrepios o que será daqueles garotinhos, daquelas menininhas de quem estão tirando o pai, isto é o pão? Será que estão contando com eles para abastecer daqui a quinze anos, eles os cárceres, elas os bordéis? Oh! Pobres inocentes!

 

Nas colônias, quando uma sentença de morte mata um escravo, o dono do homem recebe uma indenização de mil francos. Como? Ressarcem o dono e deixam de indenizar a família! Será que no caso também não estão tirando um homem daqueles que o possuem? Será que ele não é, e de maneira muito mais sagrada que o escravo para o dono, a propriedade do seu pai, o bem da sua mulher, a coisa dos seus filhos?

 

Já provamos que a lei dos senhores é culpada de assassinato. Ei-la culpada de roubo.

 

Mais uma coisa. A alma desse homem, já pensaram nela? Sabem em que estado se encontra? Será que ousam liquidá-la tão rapidamente? Antigamente, pelo menos, havia alguma fé no povo; no momento supremo o sopro religioso que pairava no ar podia amolecer o mais empedernido; um paciente também era um penitente; a religião abria para ele um mundo no momento em que a sociedade estava fechando outro; toda alma tinha consciência de Deus; o cadafalso não passava de uma fronteira do céu. Porém, que esperança podem colocar no cadafalso, agora que a grande multidão não tem mais fé? Agora que todas as religiões estão atacadas pela praga da madeira, como aquelas velhas naves que apodrecem nos portos e que, talvez outrora tenham descoberto mundos? Agora que as criancinhas fazem pouco caso de Deus? Com que direito atiram nalguma coisa da qual até os senhores duvidam as almas escuras dos seus condenados, almas que foram moldadas por Voltaire e pelo senhor Pigault-Lebrun<![if !supportFootnotes]>[25]<![endif]>? Os senhores as entregam ao capelão da prisão, excelente ancião sem dúvida; mas será que ele tem fé e divulga a fé? Será que ele não faz da sua obra sublime um serviço matado, como outro qualquer? Será que os senhores consideram como um padre aquele velhote que coteja o carrasco na charrete? [29] Um escritor de muito coração e talento já o disse antes de nós: Que coisa terrível ficar com o carrasco após ter tirado o confessor!

 

Certamente, essas são apenas “razões sentimentais”, como dizem alguns desdenhosos que só aceitam a lógica das suas mentes. Ao nosso ver, são as melhores. Muitas vezes, preferimos as razões do sentimento às razões da razão. Aliás, as duas séries estão sempre ligadas, não nos esqueçamos. O Tratado dos delitos está enxertado no Espírito das Leis. Montesquieu engendrou Beccaria.

 

A razão está ao nosso favor, o sentimento está ao nosso favor, a experiência também está ao nosso favor. Nos estados modelos, onde pena de morte foi abolida, o grosso dos crimes capitais segue, ano após ano, uma diminuição progressiva. Levem isso em consideração.

 

Todavia, não pedimos por enquanto uma brusca e total abolição da pena de morte, como aquela em que a Câmara dos deputados tinha se aventurado tão levianamente. Desejamos, ao contrário, todos os testes, todas as precauções, todos os tateamentos da prudência. Aliás, não queremos apenas a abolição da pena de morte, queremos um completo remanejamento da penalidade, sob todas as formas, de cima a baixo, desde o ferrolho até a lâmina, e o tempo é um dos ingredientes que devem entrar numa obra dessa natureza para que ela seja bem feita. Pretendemos desenvolver em outro livro, a esse respeito, o sistema de ideias que pensamos aplicável. Porém, independentemente das abolições parciais para o caso de moeda falsa, de incêndio, de roubos qualificados, etc., pedimos desde já que em todos os casos capitais, o presidente tenha que fazer a seguinte pergunta ao júri: O réu agiu por paixão ou por interesse? E que, caso o júri responda: O réu agiu por paixão, não haja condenação à morte. Isto pouparia, pelo menos, algumas execuções revoltantes. Ulbach e Debacker seriam salvos. Otelo não seria mais decapitado.

 

Do resto, não nos deixemos enganar, esta questão da pena de morte está amadurecendo a cada dia. Em breve, a sociedade inteira há de resolvê-la como nós.

 

Que os criminalistas mais teimosos prestem atenção, há um século que a pena de morte vem se abrandando. Está ficando quase suave. Sinal de decrepitude. Sinal de fraqueza. Sinal de morte próxima. A tortura desapareceu. A roda desapareceu. A forca desapareceu. Coisa estranha! A própria guilhotina já é um progresso.

 

O senhor Guillotin era um filantropo.

 

Sim, a horrenda Temis, dentuça e voraz de Farinace e do Vouglans, de Delancre e de Isaac Loisel, de Oppède e de Machault, está minguando. Está emagrecendo. Está morrendo.

 

A praça de Grève já não a quer mais. A Grève reabilita-se. A velha bebedora de sangue portou-se bem em julho. De agora em diante, quer levar uma vida melhor e continuar digna de sua última bela ação. Ela que vinha se prostituindo há três séculos em todos os cadafalsos, ei-la tomada de pudor. Sente vergonha da sua antiga profissão. Quer perder seu nome feio. Repudia o carrasco. Está lavando o chão.

[30]

 

A esta hora, a pena de morte já está fora de Paris. Ora, sair de Paris, que seja dito, é sair da civilização.

 

Todos os sintomas estão ao nosso favor. A horrenda máquina, ou melhor o monstro de madeira e de ferro que é para Guillotin o que Galatéia é para Pigmalion também parece estar recalcitrante, relutante. Vistas sob certo prisma, as atemorizantes execuções que descrevemos acima são sinais excelentes. A guilhotina está vacilando. Já está errando o golpe. Todo o velho mecanismo da pena de morte está falhando.

 

A infame máquina deixará a França, estamos confiante, e se Deus quiser, saíra mancando, pois trataremos de desferir duros golpes contra ela.

 

Que vá pedir hospitalidade em outro lugar, de algum povo bárbaro, não na Turquia que está se tornando civilizada, não aos selvagens que não a haveriam de querer<![if !supportFootnotes]>[26]<![endif]>; mas que ela desça mais alguns degraus na civilização, que vá na Espanha ou na Rússia.

 

O edifício social do passado apoiava-se sobre três colunas: o padre, o rei, o carrasco. Já faz tempo que uma voz disse: Os deuses estão indo embora! Ultimamente, outra voz levantou-se e gritou: Os reis estão indo embora! Já é hora de uma terceira voz levantar e dizer: O carrasco vai embora!

 

Assim, a velha sociedade terá ruído pedra após pedra; assim a providência terá completado o desmoronamento do passado.

 

Aqueles que sentiram falta dos deuses, pôde-se dizer: Deus fica. Aqueles que sentem falta dos reis, pode-se dizer: A pátria fica. Aqueles que lamentariam o carrasco, não há nada para se dizer.

 

E a ordem não desaparecerá junto com o carrasco, não pensem isso. A abóbada da sociedade futura não desmoronará por não possuir esta pedra angular hedionda. A civilização não é outra coisa que uma série de transformações sucessivas. O que verão agora? A transformação da penalidade. A doce lei de Cristo penetrará enfim o código e por ele irradiará a luz. O crime será visto como uma doença e esta doença terá seus médicos que substituirão os juízes, seus hospitais que substituirão os cárceres. A liberdade e a saúde serão parecidas. Onde aplicava-se o ferro e o fogo, deitará-se o bálsamo e o óleo. Tratar-se-á pela caridade o mal que antes era tratado pela cólera. Será simples e sublime. A cruz substituindo a forca. É só.

 

15 de março de 1832.

[31]

<![if !supportFootnotes]>

<![endif]>

<![if !supportFootnotes]>[1]<![endif]> O Prefácio de Victor Hugo foi publicado na quinta edição de Le dernier jour d'uncondamné, em março de 1832.

<![if !supportFootnotes]>[2]<![endif]> “A tríplice armatura”, mas também, a rigor, «o tríplice soldo”.

<![if !supportFootnotes]>[3]<![endif]> O autor se refere ao regato (ruisseau) que costuma correr na sarjetas francesas e onde os garis recolhem as imundícies.

<![if !supportFootnotes]>[4]<![endif]> Desde 1806, place de l'Hôtel-de-Ville, em Paris, onde eram realizadas as execuções públicas dos criminosos.

<![if !supportFootnotes]>[5]<![endif]> No dia 10 de setembro de 1827, Louis Ulbach, um jovem de vinte anos, foi executado por haver matado a própria amante, no desespero de ter sido abandonado. A história de Ulbach devia certamente inspirar Hugo, principalmente se sabemos que o jovem tinha começado a escrever, no cárcere, a história da própria vida. Em realidade, Hugo só começaria a redigir O último dia de um condenado um ano depois daquela execução.

<![if !supportFootnotes]>[6]<![endif]> Alusão à obra mais importante de Cesare Bonesana, marquês de Beccaria (1738-1794), Dei delitti e delle pene (1766) que foi conhecida e admirada na França.

<![if !supportFootnotes]>[7]<![endif]> No manuscrito, termina aqui a primeira parte do prefácio. O que segue é um texto anterior, não destinado originalmente a O último dia de um condenado, e cujo título era: Fragmentos sobre a pena de morte.

<![if !supportFootnotes]>[8]<![endif]> P. Claude Lachaussée (1692-1754), dramaturgo francês, foi o criador da chamada comédia lacrimejante (larmoyante).

<![if !supportFootnotes]>[9]<![endif]> Não pretendemos desprezar em bloco tudo o que foi dito naquela ocasião na Câmara. Houve um ou outro belo e digno pronunciamento. Como todos, aplaudimos o discurso grave e simples do senhor de Lafayette e, num outro tom, a notável improvisação do senhor Villemain (Nota de V. Hugo).

<![if !supportFootnotes]>[10]<![endif]> Hugo se refere a Polignac, Peyronnet, Chantelauze e Guernon-Ranville, ministros de Carlos x, considerados como responsáveis pelas leis do 25 de julho de 1830 que causaram a revolução de julho e foram acusados pela Câmara em setembro de 1831. Para salvar suas vidas, a direita propôs a supressão da pena de morte em caso de delitos políticos.

<![if !supportFootnotes]>[11]<![endif]> Alusão à Eneida e à descrição feita por Enéas do incêndio de Tróia. (livre II, v. 311): “Jam proximus ardet Ucalegon”.

<![if !supportFootnotes]>[12]<![endif]> Alusão à prisão de Toulon e ao cemitério de Clamart, onde eram sepultados os corpos dos condenados à morte.

 

<![if !supportFootnotes]>[13]<![endif]> Cidade francesa na Somme, famosa por um castelo do século XV, onde foram encarcerados, entre outros, o Príncipe de Condé e Napoleão Bonaparte.

<![if !supportFootnotes]>[15]<![endif]> Alusão a «Le Chat et un vieux Rat», Fables, III, 18.

 

<![if !supportFootnotes]>[16]<![endif]> Na realidade, foi em Albi. Tratava-se de Pierre Hébrard cuja execução, no dia 12 de setembro de 1831, tinha sido registrada na Gazette des tribunaux, de onde Hugo tirou todos os detalhes.

<![if !supportFootnotes]>[18]<![endif]> La Porte diz vinte e dois, mas Aubery diz trinta e quatro. O Senhor de Chalais gritou até o vigésimo (Nota de V. Hugo).

<![if !supportFootnotes]>[19]<![endif]> Giuseppe Grippa foi um obscuro adversário do grande jurista Gaetano Filangieri (1752-1788); Pietro Torrigiano, tornou-se famoso, menos por ter sido como escultor, do que por haver quebrado o nariz do seu companheiro Michelangelo, cujo perfil ficou deformado para sempre; Georges Scudéry (1601-1667) autor dramático francês, atacou Corneille nas suas Observations sur le Cid (1637).

<![if !supportFootnotes]>[20]<![endif]> Juiz romano da segunda metade do século XVI, famoso pela sua desumanidade.

<![if !supportFootnotes]>[21]<![endif]> Localidade situada fora dos muros de Paris, entre La Villette e as Buttes-Chaumonte onde era erguido um famoso cadafalso remanente do século XIII.

<![if !supportFootnotes]>[22]<![endif]> Eneida, VI, 620 (Aprendam com o meu exemplo o que é a justiça).

<![if !supportFootnotes]>[23]<![endif]> Charles-Henri Samson e seu filho Henri sucederam-se no cargo de «executores das altas obras» (carrasco) de Paris. O primeiro havia guilhotinado Luís XVI, o segundo, Maria-Antonieta.

<![if !supportFootnotes]>[25]<![endif]> Escritor francês (1753-1835), autor de obras licenciosas.

<![if !supportFootnotes]>[26]<![endif]> O parlamento do Taiti aboliu a pena de morte faz pouco (Nota de V. Hugo).

 

 

Freud ...

TEORIA DA MENTE

EM 1884, um jovem interno do Hospital Metropolitano, em Viena, estudava as propriedades anestésicas da cocaína. Numa comunicação preliminar, fazia notar que a ingestão de uma solução da droga produzia o entorpecimento da língua e do céu da boca. E sugeria: “Podemos esperar que esta ação anestesiante da cocaína venha a ter no futuro várias aplicações úteis.”

 Antes de prosseguir neste estudo o jovem médico, Sigmund Freud, foi visitar sua noiva, com quem não se encontrava havia dois anos. Abandonou, pois, temporariamente, a investigação.

Mas a comunicação foi lida por Koller, estudante vienense, que disse a um amigo: “Pelo que diz Freud, presumo que será possível anestesiar o olho com uma solução de cocaína.” Os dois moços deram seguimento às experiências, e ainda naquele ano ouvia o Congresso Oftalmológico de Heibelberg uma memória de Koller sôbre a nova aplicação da droga. Com este golpe de mestre, Koller conquistava para si um lugar no panteão da medicina. Havia solvido um dos problemas mais aflitivos da cirurgia.

 Se Sigmund Freud não houvesse procrastinado a ocasião de que se aproveitou Koller, talvez nunca chegasse a descobrir essa coisa infinitamente mais importante que é a psicanálise. Mas é vão especular sobre o que podia ser. O que aconteceu, sabemo-lo todos. Freud mudou de domicílio científico. Passou para um outro campo, para revolucionar o pensamento humano e trazer à luz uma grande teoria que se propõe à desvendar os mistérios da nossa mente.

 Tinha Freud vinte e oito anos quando Koller se lhe antecipou no descobrimento das aplicações cirúrgicas da cocaína. Nascido numa região que mais tarde faria parte da Tchecoeslováquia, seus pais judeus trouxeram-no para Viena com a idade de quatro anos. Foi nesse centro de cultura europeia que cresceu e se educou Freud. Foi dai também que começou a se aperceber daquela hostilidade aos judeus, que bem cedo lhe ensinou a ser independente e indiferente às opiniões alheias.

No Gyminasium, onde se distinguiu de tal forma que os mestres, em geral, o dispensavam dos exames, o jovem Freud conservou-se  à frente das classes durante os sete anos do curso. Era um estudante excepcional, de espírito aberto a todas as generalidades do saber, e já evidenciando um poder de análise penetrante e profundo. Inicialmente, houve dúvidas quanto à escolha de uma carreira. Mas a sua predileção recaía sobre a vida e os seres humanos. O estudo da medicina parecia estar naturalmente indicado para um moço com tais preferências.

 As teorias de Darwin traziam então a Europa em grande efervescência. Foram, para o jovem Freud, fonte de inspiração e entusiasmo. Começou a alimentar a esperança de que o conhecimento da natureza, já tão enriquecido por Darwin, pudesse receber novo impulso em território ainda inexplorado. O seu sonho era fazer-se instrumento dêsse progresso.

 O que o decidiu a estudar medicina foi um ensaio de Goethe, lido em conferência pouco antes do encerramento do curso ginasial. Neste ensaio Goethe tecia rapsódias à natureza, exalçando a sua imensa variedade, sua abundância infinita e seus segredos fechados a sete chaves. Foi uma impressão inesquecível. O poeta falara ao coração do jovem Freud. Agora só lhe parecia haver um caminho por onde alcançar essas magnificências, um só caminho compatível com as suas condições econômicas. Resolveu-se ali mesmo pela medicina.

 Mas a escolha feita num momento de entusiasmo não lhe correspondeu às esperanças. Em primeiro lugar, havia na Universidade de Viena uma forte corrente antissemítica, que lhe foi causa de grandes vexames; depois, o ensino médico oficial, padronizado, cheio de parcialidades e superstições acumuladas através dos séculos.

Vingariam esses obstáculos matar-lhe a ambição de penetrar os segredos da natureza ?

Afora a psicologia, os vários ramos da medicina pouco ou nenhum atrativo tinham para ele; e, ainda assim, o acesso àquela matéria predileta achava-se obstruído por preconceitos e teorias gratuitas, que a envolviam em trevas. Freud começou a dar-se conta de que os seus talentos eram muito especiais, com limitações coercitivas. Parecia-lhe que era incapaz de adaptar-se a coisa alguma. Seu entusiasmo arrefeceu temporariamente: nada lhe parecia digno da sua atenção, ou suscetível de lucrar com ela. Em consequência, descurou-se da medicina, só vindo a formar-se em 1881.

Entrementes, consolava-se com os trabalhos experimentais realizados no laboratório psicológico de Ernst Brücke. Começou alí a aprofundar as operações misteriosas do sistema nervoso. Passava horas a dissecar nervos de peixes raros, adquirindo assim sólidos conhecimentos sobre o substrato físico dos fenômenos nervosos.

Mas estas inquirições teóricas não lhe podiam dar um meio de vida. Brücke aconselhou-o a que deixasse o laboratório, procurando o serviço mais remunerativo de interno no Hospital Metropolitano de Viena. Não perdeu ali a paixão da pesquisa, que o seu novo posto lhe permitia transferir do sistema nervoso dos peixes para o dos seres humanos. E assim, em 1883 ele ingressou como investigador ativo no Instituto de Anatomia Cerebral, conservando todavia o lugar de interno no Hospital Metropolitano. Aproximava-se, pois do objeto de seu verdadeiro interesse. Ia plantando os alicerces físicos da teoria psicológica que devia elaborar um dia.

Aprofundou-se ainda mais no estudo das doenças nervosas, especialmente das de natureza orgânica, provenientes de trumatismos, malformações e defeitos constitucionais que afetavam a base física do espírito. Mas, também neste campo de pesquisas, as condições eram desanimadoras. Não se conhecia, a bem dizer, tratamento para tais doenças. O estudioso não tinha com quem aprender, devendo fazer tudo por si. A psiquiatria, esse ramo da medicina que trata dos distúrbios nervosos, gozava de pouco prestígio naquela época, se bem que por toda a Europa se começasse a sentir a necessidade de estudos niais profundos e mais científicos da mente, em suas manifestações normais e anormais.

Em 1885 Freud logrou a distinção de ser nomeado lente da neuropatologia, e, graças à recomendação de Brücke, foi-lhe concedido um auxílio considerável para viajar e aperfeiçoar em outros países o conhecimento da matéria sobre que deviam versar as suas lições.

Este encargo era a porta aberta aos primeiros passos da aventura intelectual que lhe encheria toda a existência.

 

2

 

Em Paris (cidade que escolhera para realizar os estudos de aperfeiçoamento), o sábio médico Jean-Martin Charcot investigava a histeria em sua clínica da Sorbona. Os êxitos que alcançara com os seus novos métodos experimentais haviam-lhe espalhado a reputação por tôda a Europa. Seu estudo da histeria fôra conduzido mormente com o auxílio de hipnotismo, que lhe facultava a produção de paralisias e sintomas locais nos pacientes, por simples sugestão.

A histeria é hoje universalmente reconhecida como uma perturbação psíquica. Mas, antes de havê-lo demonstrado Charcot, tinham curso opiniões de toda sorte quanto à sua origem desde a ideia do “sangue ruim” até os “diabos” que Cristo expulsara do corpo da mulher a que se refere o Novo Testamento. A doença costuma manifestar-se por paralisias, semi-êxtases, posturas catalépticas e quejandos sintomas, caprichosos e aparentemente inexplicáveis.

Charcot afirmava, e demonstrava com os seus experimentos de hipnose, que a histeria não era um produto dos tecidos orgânicos, mas da mente. Não ia além disto; contentava-se, quanto ao resto, em descrever as grandes fases do ataque histérico (divisão que perdeu todo valor desde que se conheceu não haver nenhuma regularidade na histeria), provando que esses ataques não eram simulados, mas verdadeiras crises nervosas.

ARQUITETOS DE IDÉIAS

280

Quando Freud entrou para a clínica de Charcot, começava já a considerar a possibilidade de um estudo das neuroses como espécie patológica distinta das perturbações nervosas puramente físicas, com que até então se ocupara. A sua habilidade na diagnose das doenças nervosas orgânicas já se fizera notada, granjeando-lhe uma certa reputação. Mas ele sentia que tal habilidade não lhe era de nenhum préstimo no vasto campo da neurose – esse distúrbio mental que reside exclusivamente no espírito, sem reflexo aparente sobre o corpo. Esperava encontrar na clínica de Charcot um critério mais esclarecido.

Não o encontrou, mas sucedeu-lhe algo mais importante. Estudando sob a direção de Charcot os numerosos casos de histeria que se apresentavam na clínica, Freud deu-se conta de que, nos casos cujos sintomas consistiam na paralisia e perda de sensibilidade em regiões localizadas do corpo, tais regiões não eram determinadas pela posição real dos órgãos, mas por aquela que a crença popular lhes designava. Por exemplo: um paciente queixando-se de opressão e anestesia do coração, sentia a dormência, não na região cardíaca propriamente dita, mas no sítio que o vulgo erroneamente acredita ser ocupado pelo coração. Isto, evidentemente, demonstrava a origem psíquica da doença. [Osório diz: vide, abaixo, os parágrafos: 2º, 3º e 8º]

Freud referiu sua observação a Charcot, que concordou mas não se mostrou interessado em aprofundar a psicologia das neuroses. Charcot era um cientista de espírito limitado pelos fundamentos físicos e anatômicos da sua educação. Era incapaz de dar atenção ou crédito a qualquer coisa que ficasse fora desse âmbito. Freud compreendeu então que, se havia de aprender alguma coisa, seria por seus próprios esforços. [Osório diz: até hoje, 2020, nada!]

Uma ocasião, em presença de Freud, Charcot aludiu a um fato que o espírito do discípulo ainda não estava em condições de fazer frutificar. Anos depois lhe acudiria a lembrança, revestida então da sua significação especial. Sucedeu a coisa deste modo; descrevendo a um outro médico o caso de um casal neurótico, a mulher inválida e o marido impotente, sugerira Charcot que em tais eventualidades os distúrbios sempre tinham raízes na sexualidade. Freud, que o escutava, perguntou de si para si: “Se ele pensa assim, por que nunca o diz?" Mas Charcot, apegado à tradição médica francesa, não podia admitir a sexualidade como causa de doenças. Ao espirito audacioso e desprendido de Freud, essa abstenção parecia contrária aos verdadeiros interesses da ciência. Se a futura teoria já houvesse começado a germinar no seu cérebro, a alusão não teria passado em claro. Mas Freud estava ainda na sua fase de formação, e o incidente ficou logo esquecido.

Todavia, embora não quisesse acompanhar Freud no caminho que este escolhera, Charcot deu ao moço, pelo exemplo, um código de hoje paciência, sobriedade e esforço imaginativo que muito 6. Auxiliaria na formação de seu aparelhamento mental de teorista. Charcot, como o fez ver o próprio Freud, era um vidente, um homem que considerava e reconsiderava as coisas, intensificando a impressão delas recebida, até que de súbito a inteligência se lhe iluminava: Possuía, sobretudo, a faculdade de agrupar as suas observações em sistemas bem organizados, que punham ordem no caos. Tudo isto constituía um ótimo adestramento para Freud.

 Do outono de 1885 ao estio de 1886, estudou com Charcot. Voltando para Viena, estacionou em Berlim, trabalhando vários meses na clínica infantil de Max Kossewitz, onde fez extensivas observações dos distúrbios mentais e nervosos das crianças. De novo em Viena, desposou no outono a noiva que lhe ficara à espera. Esta nova responsabilidade, acrescentada à constante pressão das necessidades econômicas, fê-lo abraçar a carreira de clínico.

 

3

 

Era sua obrigação comunicar à Sociedade de Medicina de Viena o que tinha aprendido no estrangeiro. Dispôs-se a fazê-lo, com toda a boa fé. Falou nas provas, apresentadas por Charcot, de que certas manifestações físicas da histeria não são necessariamente físicas em sua origem, podendo ser mentais, visto que é possível provocá-las por influência mental isto é, pela hipnose. Os experimentos de Charcot com a hipnose demonstravam a possibilidade de se produzir por sugestão um sintoma histérico no homem, com intensidade não menor do que na mulher. Freud referiu tudo isto à Sociedade, em linguagem cientificamente clara. Riram e zombaram dele.

A-fim-de compreender este acolhimento é necessário saber que naquele tempo, em Viena, a psicologia, que hoje é a ciência da mente, pouco mais era que a ciência do cérebro e dos nervos. Considerava-se, por outra, o espírito humano como uma máquina, e em consequência todas as discussões se limitavam à estrutura dos lobos, divisões do cérebro, etc. Conhecer psicologia Conhecer psicologia significava, então, nada mais que dominar o aspecto físico, estudar os nervos e suas múltiplas ramificações. Resultava daí, necessariamente, que o dever do médico era tratar as várias perturbações mentais por meios exclusivamente materiais e químicos.

Em vista destas crenças, era natural que os colegas vienenses de Freud sorrissem com desdém ao ouvir-lhe declarar que Charcot havia provado de modo cabal não serem certos sintomas físicos da histeria forçosamente físicos em sua origem, podendo ter procedência mental. Era natural que desatassem a rir francamente quando ele se abalançou a afirmar que muitos males físicos eram produto do espírito.

Foi este o primeiro encontro de Freud com as fôrças reacionárias da medicina ortodoxa. De começo ficou desorientado. Mas, ao cair em si, sentiu a mesma revolta que indignara Pasteur ao ver a sua teoria microbiana tomada para alvo de hilaridade. Freud ouviu um dos doutores repudiar o caso dos histéricos masculinos com este comentário: "Mas como pode haver homens histéricos? Se hysteron quer dizer útero!” – voltando assim placidamente ao nível dos conhecimentos médicos em que se encontrava a Grécia uns três mil anos atrás!

Finda a sessão, alguns médicos procuraram Freud para lhe aconselhar que esquecesse aquelas fantasmagorias que se deixara impingir. Era moço, e um clínico sério. Para que desprestigiar-se com tais disparates? Pensasse na sua carreira.

 No meio dos seus protestos, de que cada palavra do relatório era verdadeira e verificável, Freud súbito compreendeu a inutilidade de discutir. Aqueles homens não acreditariam nele; não queriam acreditar. Começou a cristalizar-se então, no seu espírito um grande desprezo da opinião ortodoxa, desprezo em que encontrou refúgio muitas vezes nas décadas seguintes.

Não desistiu. Procurou nas clínicas de Viena casos de histeria masculina, e após muita oposição por parte dos diretores, que não queriam que ele estudasse os seus pacientes, conseguiu trazer um dêstes Sociedade de Medicina, para uma demonstração. Desta vez não podiam despedí-lo com risos. Os doutores aplaudiram, mas esqueceram imediatamente o assunto. Isto não obstou a que Freud ficasse marcado com o estigma de revolucionário e radical. Excluíram-no do Instituto de Anatomia Cerebral.

4

 

Nem todos os médicos de Viena repudiavam Freud. Além dos  simples tolerantes, houve uns poucos que notaram o espírito operoso e esclarecido do moço, seus dotes de observador sereno e raciocinador incisivo. Destas simpatias, a mais valiosa para Freud foi a do conceituado médico de famílias, Joseph Breuer.

Breuer, amigo de Freud desde antes da sua estada na França referia-lhe as suas observações no tratamento de neuróticos e histéricos. Havia, em especial, um caso que parecia revelar a origem da histeria. Seriamente empenhado agora na solução do problema, Freud resolveu submeter o caso a novo estudo.

O paciente era uma rapariga histérica. Apresentava como sintomas ataques temporários mas recorrentes de paralisia, desordens de elocução, tendências sonambúlicas. Breuer tinha empregado a hipnose, interrogando-a sobre as suas reminiscências com o fito em aprofundar as origens da doença. Capacitou-se de que cada um dos sintomas tinha o seu ponto de partida, um momento de aparecimento. Logo que ele remontava, pelo interrogatório, ao nascimento do sintoma, este desaparecia. E foi assim que Breuer conseguiu eliminar em grande parte as perturbações nervosas da sua cliente.

As coisas, iam, pois, tomando rumo. Breuer denominara o processo de catharsis, ou purgação dos sintomas. Acreditava que a cura se efetuava pela sugestão, que canalizava para as vias normais a energia desviada no sintoma. Freud entusiasmou-se. Começou a verificar em seus pacientes a teoria de Breuer, e os dois homens colaboraram no empenho de compreender melhor esses mistérios.

Freud via-se pouco menos que impotente no tratamento dos casos nervosos. Mas o método de Breuer parecia comportar amplas possibilidades. Naquela época a terapêutica dos distúrbios nervosos consistia em aplicações elétricas, cujo valor mediocre não passava despercebido a Freud: sua eficácia, se é que a tinha, devia-se à sugestão do médico. Empregava-se também a hidroterapia, a que o pobre Darwin se vira obrigado a recorrer, mas Freud compreendera que não podia ganhar o seu sustento, nem fazer bem aos pacientes, mandando-os a uma estação de águas logo após a primeira consulta. E foi assim que a catarse se tornou um novo e auspicioso método.

Breuer desinteressara-se da sua descoberta durante vários anos após o primeiro caso. Freud perguntava a si mesmo a razão deste fato. Também ignorava o motivo de nunca lhe haver relatado Breuer o êxito final do caso - se a paciente se curara de modo completo e permanente, ou se tivera uma recaída ao cabo de algum tempo, como havia sucedido com seus anteriores ensaios de tratamento hipnótico. Mas não se deteve nestas interrogações. Entrou a aplicar intensivamente o novo método, que o recompensou com resultados notáveis. Os dois médicos resolveram escrever um livro.

Antes de publicá-lo, Freud partiu para uma nova visita à França. Desta vez foi a Nancy, onde o neurologista Bernheim operava maravilhas, ao que se dizia, com o hipnotismo. Freud, cuja habilidade de hipnotizador era medíocre, achou que a ocasião era excelente para aperfeiçoá-la. Além disto, o seu colega de Nancy devia ter abundantes materiais com que completar o cabedal de observações e conclusões embrionárias que se lhe agitava no cérebro.

 

5

 

Em Nancy presenciou casos interessantes. Cria Bernheim que toda a virtude do hipnotismo residia na sugestão, e com este critério realizava curas dignas de nota e experimentos de ainda maior porte.

 Um destes, em particular, impressionou grandemente a Freud, pois lançava uma luz nova, sobre os materiais que iam pouco a pouco tomando forma em seu espírito. Bernheim ordenava a um homem submetido ao sono hipnótico que praticasse um ato trivial qualquer abrir um guarda-chuva, por exemplo - ao despertar, ou seja, cinco minutos depois. O paciente acordava, comportava-se de modo normal durante algum tempo, e acabava invariavelmente por ir buscar o guarda-chuva e abri-lo.

Isto, embora fosse um fato curioso, não era nenhuma novidade. O que causava assombro era que, ao lhe ser perguntado porque abrira o guarda-chuva, o paciente ficava embaraçado e esquivava a pergunta. Não porque se envergonhasse concientemente do motivo que o levara a praticar o ato: é que havia esquecido por completo tal motivo e estava incapacitado de responder.

Bernheim não ficava aquí. Sem recorrer à hipnose, fazia com que o paciente tomasse conciência da origem do seu ato. Mediante a sugestão, a persuasão reiterada, induzia-o gradualmente a recordar-se de todos os incidentes do transe hipnótico. Desfazia assim o embaraço e eliminava a necessidade da evasiva. [Osório diz: o sofista Antifonte, no século V antes da era atual já montara uma “clínica” onde oferecia o serviço de “curar pelas palavras”!]

Freud refletiu muito neste e noutros experimentos de Bernheim. Pareciam combinar com as observações que ele e Breuer tinham feito, ao trazer à consciência origens esquecidas de sintomas, pelo método hipno-catártico. Parecia existir um mecanismo mental incumbido de reprimir certas ideias desagradáveis. Tão pouco era consciente a repressão; e o fosse, não teria utilidade alguma. Parecia ser um processo automático inconsciente, que subtraia a atenção do paciente as associações desagradáveis ou revoltantes.

Mas os resultados da técnica de Bernheim não correspondiam as esperanças. Uma paciente neurótica muito inteligente, que Freud trouxera consigo de Viena, foi submetida ao poder hipnótico, reconhecidamente muito superior, de Bernheim. Freud, que só conseguira melhoras passageiras com a hipnose, supunha que o empêço residia na sua incapacidade de produzir um sonho hipnótico bastante profundo. Em consequência Bernheim tratou de fazer alguma coisa pela mulher. Foi mal sucedido, e confessou francamente a Freud que só lograva êxito com pacientes de hospital, e muito pouco na clínica particular *.

Freud voltou para Viena, ainda sem uma teoria, mas cheio de entusiasme. Já tinha um ponto de partida, a doutrina da repressão: o sintoma histérico originava-se de uma sensação, incidente ou impulso desagradável que, sendo reprimido, desviava a sua energia para o atalho do sintoma. Mas isto era apenas o começo: diante dele estendia-se um vasto território virgem a explorar.

 

* Deve-se o fato a essa tendência geral que faz com que os pacientes hospitalizados sejam mais sugestionáveis e submissos aos médicos do que os outros.

 

Freud meteu ombros à construção da teoria, munido de três princípios que tinha assentado solidamente.

Para ele era evidente que o primeiro princípio devia ser o determinismo, porque os sintomas em apreço não eram fortuitos nem desprovidos de significação. Tinham uma causa definida e uma razão para se manifestarem. Este sentimento determinista, Freud o trazia infuso desde aquele dia em que, ainda na escola, ouvira o ensaio de Goethe sobre a natureza. Nada, nesta, era obra do acaso; tudo tinha a sua lei.

 

O segundo princípio, tirou-o ele diretamente da observação dos seus pacientes. A origem procurada do sintoma não se achava na superfície, isto é, não era consciente. Atuava numa parte oculta do espírito, no inconsciente. Com esta divisão expressa do espírito em conciente e inconciente, Freud não fazia mais que sistematizar observações quotidianas. Mas que tumulto isto provocou! Os filósofos e fisiologistas da velha escola não podiam admitir que houvesse no espírito alguma coisa além do que se pode apreender imediatamente. "Como pode haver fatos mentais inconcientes?” perguntavam. “Porventura mental não significa consciente?" Freud não perdeu tempo com tal jogo de palavras. Os fatos estavam ao alcance de todos. A evidência de um só experimento hipnótico bastava para convencer de que havia qualquer coisa abaixo da superfície qualquer coisa que só se podia trazer à tona pelo emprego de meios indiretos.

A premissa final de Freud era a mais expressiva das três. Fora, também, deduzida dos casos que estudara. A repressão devia-se à qualidade desagradável do material reprimido e conservava certa ligação com este. Esta qualidade desagradável podia dever-se simplesmente a um choque sofrido, que fazia com que o fato fosse esquecido - isto é, soterrado no inconsciente ou podia acompanhar um violento conflito no espírito do paciente, como seja o amor sexual por um parente muito próximo para que a satisfação legal ou moral do impulso fosse possível.

Armado destes três conceitos - o determinismo, o inconsciente e a repressão das emoções desagradáveis na vida consciente - Freud preparou-se para desvendar os mistérios do espírito humano.

 

6

 

Em 1895 Freud e Breuer publicaram as suas conclusões nos Studien Ueber Hysterie. Chamavam a atenção da medicina para fenômenos que pela primeira vez eram compreendidos e interpretados convenientemente. Citavam casos de histeria observados em suas clinicas, ilustrando o fenômeno da conversão, pelo qual uma experiência emocional se transformava em manifestação física, qual fosse o sintoma, que não aparentava ter relação consciente com a causa excitadora. “Os sintomas histéricos formam-se a expensas das emoções reprimidas.” Expunham nos Estudos o método catártico, apresentando grande cópia de casos em que a nova técnica era coroada de êxito.

Propunham à medicina um método comprovadamente eficaz para o tratamento de uma enfermidade de que até então nada se sabia ao certo. Mas a medicina desprezou-os. O acolhimento que o livro teve foi na maior parte pejorativo, mas ao menos os críticos reconheceram a existência da nova interpretação. A maioria da classe médica, no entanto, voltou as costas com desdém.

Esta atitude hostil da medicina oficial tinha um móbil muito mais profundo do que o conservantismo profissional. Os Estudos deixavam pressentir uma revolução que iria abalar veneráveis princípios de puritanismo e subverter valores morais fortemente implantados. O próprio Breuer tinha-se esquivado a reconhecer no estudo da histeria o fator sobre que insistia Freud, o motor primacial de todos os casos de neurose que lhe tinham passado pelas mãos: o inevitável impulso do sexo.

 Dava-se-lhe, por certo, relativamente pouco relevo. Freud ainda não aprofundara suficientemente o mistério para contemplar o monstro na sua plenitude. Breuer, quatorze anos mais velho e médico de famílias, fiel aos preconceitos e opiniões da época, protestara contra as referências à sexualidade que se haviam insinuado no livro. Não obstante, alí estava o começo.

 Ante as potencialidades desta ameaça, os poderes das trevas e da pudicícia correram às armas. O interdito lançado sobre os assuntos sexuais tinha raízes profundas. Reinava em tôda parte, na escola, no lar, na sala de aulas -- e até, com poucas exceções, no consultório dos médicos. Não era propriamente uma conspiração de silêncio contra aquilo que hoje denominamos, à boca cheia, "as realidades da vida”. Era um tabu arraigado e universal, que governava o pensamento e a alma de todas as camadas sociais.

 Aqui e acolá, uns poucos audaciosos tinham empreendido a cruzada de revelação. Havelock Ellis começava então a publicar os Estudos de Psicologia Sexual, pesquisas exaustivas e compilações de todo material que concorresse para elucidar as múltiplas faces do vasto assunto. Krafft-Ebing, na Alemanha, tinha editado a sua Psychopathia Sexualis, exclusivamente para os médicos, referindo milhares de casos de sexualidade anormal e mórbida. Edward Carpenter oferecia a Maioridade do Amor a um editor após outro, e todos recusavam imprimir o livro. Aparte estes e outros poucos precursores, as trevas da ignorância eram absolutas.

Foi para alumiar esta escuridão estigiana que surgiu Sigmund Freud, cujo espírito, por algum capricho de hereditariedade ou de ambiente, ficara imune aos disseminadíssimos preconceitos e tabus contra o sexo. Sem buscar uma causa de preferência a outras, estudara milhares de neuróticos e criara um método que permitia trazer essas causas para a luz. E agora que o seu método se achava em plena operação, com os Estudos sobre a Histeria apenas a saírem do prelo, Freud encontrava provas cada vez mais claras e precisas de que no centro de todos os sintomas estudados havia alguma sorte de reação contra a sexualidade.

 

7

 

Freud não partira da idéia preconcebida de que o sexo tivesse importância primacial. Embora possuísse um cérebro muito mais receptivo e lúcido que o de outros investigadores, aceitara a principio a tendência corrente, que timbrava em abstrair dos fatores sexuais a neurose. Achava, então, que presumir tais fatores era um insulto aos seus pacientes. Mas, contra a sua vontade, por assim dizer, teve de reconhecer que eles se impunham constantemente à sua consideração.

Antes de dar a lume os Estudos publicou um artigo sobre a neurose de angústia. Era esta uma espécie particular de perturbação nervosa caracterizada por fobias, ou temores aparentemente inexplicáveis. Aplicou a sua técnica aos pacientes, com o fim de sondar a origem dos sintomas, e em todos os casos o paciente terminava por revelar algum abuso desmedido da função sexual. Masturbação, coitus interruptus, coitus reservatus, eram os tais abusos que se apresentavam quase invariavelmente nos casos de neurose de angústia. Cessada a prática e voltando o paciente à vida sexual normal, os sintomas desapareciam. Que outra conclusão podia tirar Freud? A origem da doença estava na função sexual. [Osório diz: eis o xis da questão! A origem “material” da tese freudiana: sexo! Especialmente o frustrado!]

No seu estudo da histeria e das neuroses de defesa, em que um sintoma qualquer é adotado como meio de fugir a uma ideia intolerável, ele acabava sempre por verificar que tal ideia estava associada a experiências e sensações sexuais. Havia casos típicos, como o da jovem que se tornou repentinamente histérica após a morte de uma irmã. O tratamento hipnótico esclareceu que o distúrbio nascera ao pé do leito de morte, quando passou pelo cérebro da moça o pensamento de que seu cunhado podia agora casar com ela. Escandalizada consigo mesma por haver, sequer durante um momento, entretido uma tal ideia, ela desenvolvera a histeria como meio de defesa. Quando a sua origem foi trazida à consciência pelo processo catártico, os sintomas desvaneceram-se. [Osório diz: kkkk. Por que rio? É que a moça já devia ter pensado no cunhado há muito tempo. Sem querer, admitamos, mas por conta daqueles processos que fazem o “pensamento pensar a gente, e não a gente pensar o pensamento”, como ensina Nietzsche. O escândalo, se existiu, se deve pela presença da moribunda.  Morte e sexo, mais uma vez, se enfrentando. Desvaneceram, mas não passaram. Ou seja, diminuíram, mas continuaram lá!]

Sempre que tratava um caso de neurose desta espécie, Freud deparava tarde ou cedo com o fator sexual. Tinha escrúpulos de generalizar. Em sua memória sobre as neuroses de defesa, afirmava apenas que "tais ideias intoleráveis desenvolvem-se em mulheres, mormente em conexão com assuntos sexuais... Em todos os casos que tenho analisado, foi sempre na vida sexual que se geraram os efeitos dolorosos... Limito-me... a declarar que até hoje não lhes descobri nenhuma outra origem.”

Debatendo ulteriormente o assunto consigo, ele compreendeu com grande clareza por que motivo as neuroses tinham causas sexuais. Não era precisamente neste terreno que a ignorância e a supressão se mostravam mais pronunciadas? Não se recusava, mais que aos outros, livre expressão aos impulsos sexuais? Era de admirar que aquela parte da natureza que entrava em conflito com a civilização fosse a região onde se formavam os distúrbios?

Julgara que seria relativamente fácil persuadir os seus colegas. Eles, por certo, deviam ter deparado vezes inúmeras com o fator sexual em suas clínicas. Sem dúvida ouviriam com avidez um homem que trabalhava num campo em que o sexo era o leit motiv. Freud resolveu esquecer as antigas desfeitas da medicina oficial e apresentar ao mundo as suas conclusões mais recentes.

Mais uma dura decepção: aquela gente não queria ouvir nada que dissesse respeito à sexualidade. Receberam-no com frieza, chamaram-lhe extremista e maníaco. Uma atmosfera de desaprovação pesava sôbre as sessões em que Freud lia as suas memórias. Até aqueles que outrora lhe davam palmadinhas nas costas começaram a mostrar-se menos tolerantes. Acoimavam-no de obscuro, lúbrico, perverso. Um detrator gabava-se, num grupo de colegas, de empregar o método de Freud na pesquisa da origem de um sintoma, mas interrompendo-se imediatamente e fazendo calar o paciente assim que ele, ou ela, começava a falar em coisas do sexo. Foi este o golpe final. Tão especiosos argumentos convenceram a Freud da sua posição  de pária, que ele devia aceitar: pertencia ao número daqueles que "perturbam o sono do mundo”.

Na persuasão de que tinha de fazer só a caminhada, aplicou-se com redobrado zelo à tarefa de desvendar os segredos do espírito como investigador independente. Desfez-se de todo temor e caminhou direito ao alvo, sem olhar para os lados. Os interesses materiais, que tantas vezes lhe haviam ditado os seus atos, passaram a um plano acessório na sua consideração. Perdeu muitos pacientes, porque os interrogava sobre a sua vida sexual. Eles escandalizavam-se, irritavam-se, ficavam abalados com aquilo e resolviam consultar um médico menos rude e inconsiderado. Seus amigos, salvo pouquíssimos, sumiram-se; "formou-se um vácuo em torno dele”.

 

8

 

Mas que conquistas não havia já feito sozinho! Em primeiro lugar, tinha revelado o fenômeno da repressão (recalque): tudo que, nos fatos vividos, nos magoa as emoções que não podemos suportar é recalcado para o inconciente, e a energia que acompanha essas emoções encontra expressão equivalente no sintoma neurótico. Descobrira também que estes recalques estavam, ao parecer, invariavelmente ligados à vida sexual dos pacientes.

Aprendera além disto, casando a descoberta de Breuer com a doutrina de Charcot e ajuntando-lhes a sua própria interpretação, que quando se dava à emoção perturbada e reprimida o ensejo de expressar-se (pela simples narração feita ao médico) esse expediente simples bastava para descarregar a energia e eliminar, portanto, o sintoma.

Desses fatos passara a outras deduções, cada uma das quais era um passo inevitável rumo à completa elucidação da sua teoria psicológica. Já que o recalque era eliminado pela supressão da consciência mediante a hipnose, devia concluir-se que o agente repressor fazia parte da consciência. Freud adotou o “método topográfico”, traçando um esquema que devia ser um índice - puramente hipotético, está claro - dos diversos fatores da mente. Representava por tal modo a consciência como dominada pelo Ego, que susta e reprime os impulsos surgidos do inconsciente. Pertencem estes impulsos mormente à libido, um termo que Freud tomou emprestado ao latim para designar a soma total da energia associada ao instinto sexual. Com o tempo, esse critério topográfico foi-se-lhe revelando cada vez mais prestimoso na elaboração dos seus conceitos. *

O objetivo do tratamento era, pois, dar escoamento à energia prêsa no sintoma, pela repressão, trazendo para a superfície o material reprimido. Em outras palavras, fortalecer o Ego, fazendo-lhe reconhecer a fonte dos seus distúrbios e perturbações, de forma que èle pudesse dar-lhe um destino inteligente, raciocinado, conciente. Até ai, pensava Freud, ia o poder do médico. Cumpria, agora, encontrar o melhor meio de alcançar esse fim.

Começava a perceber que o seu método era insuficiente. Em primeiro lugar limitava-se ao tratamento da histeria e desordens associadas. A hipnose tinha outros inconvenientes, Muitas vezes produzia melhoras apenas temporárias. Não parecia penetrar bastante fundo no inconciente. Era, demais, perigosa, porque as pessoas hipnotizadas adquiriam frequentemente uma lassidão mental, uma predisposição geral que as tornava sensíveis à mais leve sugestão do médico, até quando se achavam no estado normal de vigília.

 

* Freud completou a “topografia da mente" com os conceitos do Ego, Superego e Id.

 

De outro ponto de vista, o método hipnótico era decididamente um entrave para o analista, no seu empenho de descobrir os mecanismos causadores da neurose. Pela eliminação da consciência, eliminava também as forças repressoras, furtando-as assim à observação. Com o emprego da hipnose, o analista punha fora do seu alcance um dos mananciais mais potencialmente ricos. Só pela observação da luta consciente contra os impulsos recalcados se poderiam colher noções importantes sobre a natureza dos impulsos e da consciência.

Cumpria também levar em consideração o fato de ele nunca ter logrado grande sucesso como hipnotizador, falha de que por certo sofreriam muitos outros analistas, aliás argutos e competentes.

Freud pensava pois seriamente em abandonar o hipnotismo e o método catártico, quando certo dia ocorreu um incidente que apressou a decisão. Uma doente, que ele vinha desde algum tempo submetendo ao tratamento hipnótico, abraçou-se-lhe de inopino ao despertar de um transe, o que teria criado uma situação em extremo embaraçosa se uma empregada, entrando inesperadamente, não viesse clarear a atmosfera. Freud não desejava a repetição de tais incidentes, que ele não podia em absoluto prever pelas informações colhidas no tratamento hipnótico. Decidiu, pois, tacitamente, não mais empregar o hipnotismo, e houve mister de recorrer a um novo método.

Lembrava-se de que Bernheim fazia uso da sugestão, animando o paciente a recordar os incidentes esquecidos do sono hipnótico. Ajudando-os um pouco, mostrando-se firme e insistente, lograva reconstruir-lhes na memória consciente as ocorrências do transe. Era claro que o paciente sabia dessas ocorrências; apenas, eram elas recalcadas por algum automatismo do espírito.

 Os pacientes neuróticos de Freud deviam também conhecer a origem dos seus sintomas. Tratava--se de descobrir um meio de trazê-la para a consciência. Com este propósito, começou a usar o método de Bernheim, insistindo em fazer o doente recordar, pousando-lhe por vezes a mão sobre a testa. Surtiu efeito: as origens esquecidas começavam a vir à tona pouco a pouco, e de súbito invadiam o espírito do doente, numa vívida rememoração.

O método tinha os seus efeitos: era muito fácil sugerir ao paciente qualquer coisa de que o seu Ego repressor se apossaria sofregamente, como substituto da verdade. Exigia grande esforço, tanto do médico como do doente. Mas dos disponíveis era o melhor, e Freud empregou-o durante algum tempo.

Abandonando a hipnose e o método catártico de Breuer, Freud mudou o nome da sua técnica. Criou, para ela, o nome de psicanálise.

 

9

 

O seu descobrimento ulterior da sexualidade e da libido infantil foi uma coisa que o mundo, com a sua fé semi-religiosa na inocência absoluta da infância, não estava em condições de receber. Fora a infância sempre considerada uma idade à parte, imune às chamadas "torpezas” do sexo e do desejo. Que na “tenra pureza da meninice” existisse qualquer coisa de semelhante às concupiscências e impulsos sexuais do adulto, era inconcebível e chocante!

 O fato é que o próprio Freud relutou em acreditá-lo. Ele também fora educado naquela tradição venerável. Mas a análise de centenas de pessoas sujeitas a perturbações sexuais conduzia-o inevitavelmente a buscar a origem de tais perturbações neste novo conceito revolucionário. A Esfinge do Sexo, à acometida do seu gênio analítico, revelara mais um dos seus segredos: ele aproximava-se progressivamente dos mistérios finais.

 Fez-se-lhe necessário expandir a ideia da libido para fazer-lhe incluir esta nova região, até então insuspeitada. A sexualidade já se não podia confinar nos limites estreitos dos desejos adultos e suas satisfações. As crianças tinham instintos sexuais - ele o sabia pelas reminiscências infantis que os seus pacientes deixavam desbordar à solicitação da análise. Mas não os tinham como os adultos. Os objetos de seus desejos eram outros. Seus impulsos eram vagos e amorfos. E - o que era mais importante - seu mecanismo repressor ainda não estava formado, e os tabus e repugnâncias dos adultos não as podiam influenciar. Eis aí, pois, um novo tipo de sexualidade, que cumpria analisar e compreender, afim de abranger a mente em todas as suas fases.

 Mas bem no início dessas novas pesquisas surgiu um percalço, ameaçando encantoar num impasse toda a sua análise, e que por pouco não inutilizou a teoria tão laboriosamente construída. Freud nunca se tinha visto na conjuntura de rejeitar as ideias de Charcot sobre a histeria como nascida de uma emoção violenta, destrutora do equilibrio psíquico. Em consequência, quando os seus pacientes entraram a contar-lhe recordações infantis de experiências sexuais violentas, sentiu-se inclinado a dar-lhes crédito. Era verdade, sem dúvida, que em muitos casos a causa direta de neurose estava na sedução do paciente em tenra infância por uma pessoa mais velha. Freud não teve dúvidas, portanto, sobre essas histórias de sedução e abuso de corpos passivos de crianças, que os seus pacientes lhe narravam com todas as minúcias. Mas, como via acumularem-se tais histórias no seu caderno de notas, começou a desconfiar.

Deu-se, em particular, o caso de uma jovem cujo pai Freud conhecia como homem de honra inatacável. Levando a sua análise até a fase das reminiscências infantis, qual não foi a sua estupefação ao ouvir da paciente que com a idade de seis anos fora violada pelo pai! Freud estava seguro de que isto não podia ser verdade. Não obstante, obtivera a confidência por processos de análise escrupulosamente meditados, comprovados e estabelecidos Seria possível que as bases de sua teoria fossem totalmente falsas? Teria cometido algum erro inicial, que invalidava todos os descobrimentos ulteriores? Tais foram as dúvidas que o assaltaram. Mas uma recapitulação cuidadosa não revelou erro nenhum.

Só havia uma possibilidade. De que a paciente não mentira estava ele certo; mas a história era fictícia, imaginária uma fantasia histérica, em suma. Devia-se, pois, afastá-la como destituída de importância? Aqui entrou em jogo o princípio fundamental de Freud: o determinismo. Se a paciente concebera essas fantasias, devia ter para tal algum motivo inconciente. A criação dessas imagens minuciosas de acontecimentos fictícios devia ter uma finalidade qualquer. Este propósito, em sendo descoberto, forneceria certamente indícios e inferências que ampliariam o conhecimento do espírito. “Se os histéricos atribuem a origem dos seus sintomas a traumas fictícios", raciocinou Freud, “este novo fato significa que tais cenas são criadas pela sua fantasia, e a realidade psíquica deverá ser levada em conta paralelamente com a realidade objetiva.”

 Em que consiste a vida sexual da criança? Os seus desejos, está claro, não são os mesmos do adulto. Dirigem-se antes a objetos indiscriminados, ao próprio indivíduo, aos seres circunstantes, aos seus pais. As fantasias evocadas pelos pacientes eram, evidentemente, elevações ao nível adulto de atividades sexuais consideradas indecorosas ou insignificantes. Apercebendo-se disto, Freud empenhou-se em aprender com os seus pacientes e, mais, tarde, pela observação do procedimento das crianças o modo por que se manifestava a sexualidade infantil.

 Viu assim confirmada a sua suposição de que a função sexual existia desde o começo da vida individual. Havia, entretanto, uma distinção a fazer: a mentalidade infantil não distingue inicialmente esse impulso de qualquer outra função vital. Comer, beber, brincar, defecar, e outros atos fisiológicos, servem todos como modos de expressão à libido que se agita na criança. Os órgãos genitais, pelos quais o adulto satisfaz a sua sexualidade, não se achando nela desenvolvidos, ainda não se tornaram o centro da atividade erótica. Mas a libido não deixa de estar presente, como a necessidade de comer e beber, e, por conseguinte, expressa-se pelos outros canais já abertos, e em pleno funcionamento, da vida fisiológica.

A libido não se desenvolve sempre de modo normal e sem incidentes. A infância está cheia de situações, experiências e desajustes, que tendem a revestir de indébita importância algum desses componentes iniciais, ou a proporcionar uma satisfação prematura do instinto, antes que o seu veículo normal esteja formado. Tais ocorrências ocasionam muitas vezes uma fixação do instinto no ponto em que se verificam, de forma tal que impede frequentemente o indivíduo de ultrapassar essa fase infantil ou prepúbere da vida sexual.

 E aqui se deparou a Freud um outro fato assombroso, cuja divulgação atraiu sobre ele mais veementes anátemas que todas as partes já conhecidas da sua teoria.

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Era esta nova pedra angular do edifício psicanalítico o complexo de Édipo.

 Transposto o estádio autoerótico do desejo sexual, - verificou Freud - a libido passava a buscar no exterior o seu objeto. Ainda na primeira infância e sob o signo das fases pregenitais, a criança começava a centralizar o se a centralizar o seu amor numa das duas pessoas que lhe estavam mais próximas: os pais.

Os meninos voltavam os seus desejos e seu amor para a pessoa da mãe; as meninas colocavam-se na mesma relação sentimental para com o pai. Nisto, por certo, não havia nada de novo ou de estranho; já fora observada muitas vezes essa fantasia romântica dos meninos a respeito das mães e das meninas a respeito dos pais.

Mas nenhum investigador procurara tirar deste fato as conclusões que ele implicava. Freud descobriu que o amor do menino pela mãe não se limitava a isso. O menino depreendeu ele das histórias que lhe contavam os seus pacientes alimentava desejos hostis com respeito ao pai, tinha ciúmes do homem que o precedia na afeição da pessoa amada, e procurava tomar-lhe o lugar.

Estes dois componentes - amor à mãe e antagonismo para com pai - vinha ele a descobri-los cedo ou tarde em todos os casos de neurose masculina que estudava. Quanto às mulheres, revelavam uma situação análoga. Compreendeu então que esta era a base de um dos grandes mitos da humanidade: a história de Édipo, o homem que, sem o saber, (inconscientemente) matou o próprio pai e casou com a sua mãe. O mito correspondia ponto por ponto ao que a pesquisa psicanalítica desvendara: Édipo, ao dar-se conta do seu crime contra a moral, da violação dos tabus contra o incesto, enlouquecera (a neurose), vazando os próprios olhos e fugindo do país.

Impressionado por esta nítida correspondência do velho conto grego com o resultado das suas investigações, Freud deu à sua descoberta o nome de complexo de Édipo. [Osório diz: é impressionante que alguns autores fazem uma inversão temporal para elogiar seus admirados, em uma total inversão do tempo! O “velho conto grego” antecede a Freud em cerca de mais de dois milênios, entretanto, é o conto que corresponde à descoberta de Freud e não esta àquele!]

Tinha agora a chave das fantasias de abuso sexual engendradas por seus pacientes: estes haviam passado a infância alimentando o complexo de Édipo. A mulher adulta brindava ao analista uma pintura, não de uma realidade vergonhosa do passado, mas do complemento dos seus próprios desejos, em que realizava a aspiração de tomar o lugar da mãe na afeição do pai. As fantasias, portanto, eram meios de satisfação desejos tornados realidade. O inconsciente, comprimido e recalcado pelas repressões do mundo exterior operando através do Ego, criava um mundo fantástico todo seu, em que os desejos se realizavam e o amor encontrava satisfação.

O tratamento analítico trouxe à luz outros gêneros de fantasia, e havia aspectos delas que reclamavam a atenção de Freud.

 

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Os pacientes contavam-lhe constantemente os seus sonhos.

Freud não lhos pedia, mas, atingido na análise o ponto em que o mecanismo repressivo era até certo ponto desfeito, o paciente começava a referir os sonhos que tinha, como se compreendesse intuitivamente que estes eram chave suplementares para os intricados mistérios da sua mente. O próprio Freud não tardou a perceber que o sonho podia ser-lhe um auxiliar valioso na análise.

Percebeu então claramente que durante o sonho, em que são afrouxados os rígidos entraves impostos pelo Ego ao inconsciente, as desejos e anseios do paciente têm uma ocasião de exprimir-se e procuraram na faculdade da fantasia um diversório que lhes está vedado durante a vigília.

Descobriu Freud um sentido nos sonhos, que por muito tempo  a ciência considerara como não sendo mais que reflexos deformados de indigestões e quejandas manifestações físicas insignificantes. Os antigos acreditavam que os deuses mandavam os sonhos para nos anunciar o futuro; na Idade Média, a função de interpretar sonhos fora relegada às bruxas. Em todo caso, não se viam neles senão ocas absurdidades, e toda insinuação de que os sonhos significassem qualquer coisa seria olhada como néscia superstição. Mas Freud reconheceu que eles tinham realmente um sentido, tanto sentido como os sintomas neuróticos, desprezados até havia bem pouco. Aferrou- se, com mais tenacidade que nunca, ao seu princípio original: que tudo na natureza tem o seu papel e a sua lei. Viu-o mais uma vez justificado, ao desvendar o mistério secular do sonho.

 Logo de início compreendeu que o conteúdo aparente do sonho não era o que este tinha de mais fundamental. Essas imagens fantásticas, desconexas e deformadas que povoavam os sonhos dos seus pacientes eram simplesmente traduções de desejos e idéias sepultadas tão fundo no inconciente quanto as origens de todo sintoma neurótico ordinário. As manifestações superficiais do sonho são símbolos, isto é, substitutos, de ideias essenciais. No sono, como na vigília, opera um mecanismo repressor, cuja função é torcer, desfigurar e tornar irreconhecível a verdade desagradável que jaz no fundo do espírito.

Em tudo que descobria, encontrava confirmação da sua grande ideia diretriz: que tudo na vida psíquica tem a sua significação. O sintoma histérico, aparentemente despropositado, as chamadas perversões, geralmente consideradas como sendo escolhas fortuitas ditadas pelos acasos da hereditariedade, haviam assumido uma significação precisa. As divagações incoerentes e quiméricas do sonho (e também os subterfúgios com que se esqueciam partes importantes deste) - todos esses fenômenos tinham a sua finalidade.

Freud ocupou-se por algum tempo com as particularidades desse processo quotidiano, comezinho, normal, conhecido pelo nome de esquecimento. Por que motivo esquecemos? Porque a coisa não tem importância? Às vezes, sim. Mas havia abundantes casos de seu conhecimento, em que eram esquecidas coisas importantes, coisas que deviam ser lembradas. Por que?

 Estudou diversos exemplos deste gênero de distração. O resultado correspondeu-lhe à expectativa: também aqui, o acaso não tinha parte no processo mental. Em todos os casos de esquecimento, a coisa esquecida estava associada em pensamento a algo desagradável: um fato, ou uma pessoa antipática. O amante esquecia a entrevista, não por causa da premência dos negócios, como afirmava à sua amante e persuadia a si mesmo, mas porque estava farto e queria desembaraçar-se dela - e o inconsciente encarregava-se de realizar esse secreto desejo, fazendo-lhe esquecer.

 Freud foi ainda além, examinando outros fatos da vida quotidiana. Nos lapsos de linguagem e de procedimento, que sempre foram tidos como acontecimentos fortuitos, descobriu ligações causais. As pequenas claudicações da língua, observações que surpreendem e divertem os ouvintes, erros de impressão, equívocos absurdos que parecem simples efeitos de infelizes distrações, até os erros de ação, em que uma pessoa se comporta como sob a sugestão hipnótica, cumprindo ordens não conscientemente ditadas - tudo isto mostrava ter origens definidas e determináveis. Eram lapsos do Ego, o agente fiscalizador do espírito, que num momento de cochilo deixava passar uma ponta de desejo inconsciente, ou bem substituía o erro à verdadeira intenção consciente - em que sempre se descobria uma associação desagradável qualquer.

 

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Na questão fundamental da sexualidade, Freud lutou completamente só. Completamente só, construiu a sua teoria, desenvolveu-lhe as potencialidades, submeteu à prova c ao exame o imenso material que ela tornava utilizável. A sua independência intelectual, que datava dos anos universitários, quando o antissemitismo o tinha segregado da comunidade espiritual, avultara, a partir de então, com as suas tribulações. Exacerbava-se Freud por vezes, outras vezes desanimava, mas estas intermitências de depressão iam rareando à medida que crescia nêle a conciência de haver feito importantíssimos descobrimentos e completado uma teoria portentosa. Sua atitude, durante certo tempo, foi de resignação, pois lhe parecia que o seu ostracismo estrangulava a teoria, e que esta não estava destinada a sair à luz. Em tal disposição de ânimo valia-lhe a certeza de que após a sua morte algum outro investigador exploraria as mesmas regiões misteriosas, encontraria os seus trabalhos e tiraria proveito deles.

 Entrementes continuava a trabalhar.

Publicou em 1900 as suas teorias sobre o sonho. O livro foi recebido com a maior indiferença. Não que lhe faltasse importância: tinha até demais! Apareceu uma que outra referência nos periódicos científicos, tão pressurosos, habitualmente, em anunciar tudo quanto é material novo. E, o que era curioso, a própria classe médica, que professava desprezo pelos trabalhos de Freud, porfiou então em refutá-los. Escreveram-se livros que se propunham a demonstrar os erros das suas idéias – dessas mesmas idéias que eles não tinham querido mencionar nos seus jornais. A despeito de tal oposição, as doutrinas de Freud foram-se tornando conhecidas, embora de modo vago e sob um aspecto deformado. Poucos, na verdade, se davam ao trabalho de ler-lhe os livros e estudar-lhe os argumentos. Escreveu alguém um volume inteiro contra a teoria freudiana do sonho. Mais tarde, esse homem confessou a Freud que nunca lera A Interpretação dos Sonhos: dissera-lhe um conceituado clínico que não valia a pena.

 Na esteira dessa teoria do sonho, Freud lançou outro livro em que expunha as suas descobertas no campo dos erros e distrações quotidianas. Deu-lhe o título de Psicopatologia da Vida Quotidiana. Esta obra atraiu alguma atenção, e ulteriormente veio a granjear grande popularidade para a psicanálise.

Em 1905 as teorias da sexualidade foram dadas a lume em forma completa e coesa. Foi então que Freud começou a suscitar franca hostilidade. As acusações afrontosas, que até então eram feitas entre quatro paredes, por assim dizer, passaram para a praça pública. Terminara a fase das escaramuças. Surgidos à plena luz o complexo de Édipo, a sexualidade infantil e toda a teoria do sexo como origem das neuroses, declarou-se guerra aberta a Freud. Desabaram na sua cabeça as imprecações e ataques de toda sorte. Denunciaram-no como degenerado, pervertido, cretino, maníaco do sensacionalismo - termos que hão de lembrar ao leitor os libelos lançados a Copérnico, Darwin e Pasteur.

Embora rugisse ainda em torno dele. a tempestade de anátemas, sarcasmos e críticas, a sua batalha estava finda. Durante mais de dez anos suportara sozinho o assalto, mas em 1902 começou a fomar-se um grupo de moços sob o seu estandarte. Havia Freud angariado pouco a pouco um novo círculo de amigos, em substituição dos que tinham fugido com horror da sua pessoa contaminada maioria desses amigos novos eram colegas. Mandavam-lhe doentes, chamavam-no a conferência e procuravam difundir-lhe as obras. Alguns deles submeteram-se pessoalmente ao tratamento psicanalítico. E um, em particular, demonstrou sua gratidão formando uma agremiação de moços independentes, com a expressa finalidade de estudar, praticar e divulgar a psicanálise.

O grupo começou a reunir-se regularmente em casa de Freud, todas as quartas-feiras à noite, para discutir pontos de psicanálise. Cada um relatava suas observações e expunha os casos da sua clínica. Freud presidia. Lia-se uma comunicação, e todos os presentes deviam tomar parte na discussão. Foi este o núcleo da Sociedade Psicanalítica de Viena. Entre os seus componentes estavam Alfred Adler, Wilhelm Stekel, Otto Rank e Isidore Sadger.

Foi-se alargando gradualmente a influência deste grupo. As doutrinas freudianas começaram a ganhar terreno na consciência da classe médica. Viena ia sendo conquistada pouco a pouco, e também no estrangeiro a psicanálise fazia progressos. Como era de esperar, cada avanço era acerbamente impugnado pela ciência oficial. Nenhum país foi mais veemente no ataque a Freud do que a própria Áustria. Lançou-se mão das armas mais detestáveis. Os apóstolos foram alvo de opróbrio, de baixas injúrias e desalmadas calúnias. Em torno da nova ciência parecia ter-se erguido uma muralha de condenação.

 Mas em 1906 houve uma súbita mutação de cena. A psicanálise tinha ganho terreno, inadvertida pelos seus próprios promotores. Veio da Suíça a notícia de uma grande vitória para a teoria.

 

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A emoção de Darwin, ao receber a célebre carta de Alfred Russel Wallace naquele dia memorável de junho de 1858, não podia ter sido maior que a de Freud quando lhe chegou às mãos uma carta enviada por Eugen Bleuler, o grande clinico suíço. Wallace escrevera a Darwin solicitando-lhe auxílio: o caso de Freud foi algo diferente. Bleuler escrevia ao teorista de Viena para informá-lo de que a psicanálise estava sendo assiduamente estudada na Suíça, e de'que a Clínica Burgholzli de Zurich a empregava com proveito. Para um homem empenhado em luta tão prolongada e desigual, isto era um estímulo de primeira ordem, que seria reforçado ao depois (janeiro de 1907) com a delegação, pela clínica de Zurich, do dr. Eitington a Viena, para estudar nas próprias fontes o método freudiano.

 Destes sucessos originou-se volumosa correspondência entre Freud e os seus prosélitos suíços. Particularmente prestimosas foram as atividades de Karl Gustav Jung, então interno da Clínica Burgholzli, o qual convocou o primeiro Congresso Psicanalítico de Salzburgo, incluindo representantes de Genebra, Londres e Estados-Unidos. Predominaram aí, como era natural, os grupos de Viena e de Zurich. Sem falar em seus fecundos debates, o congresso tornou-se notável por haver fundado o primeiro Jahrbuch (anais) de estudos psicanalíticos, redigido por Freud e Bleuler e editado por Jung.

Conquistadas assim para a psicanálise as merecidas credenciais de ciência internacional, Freud, em colaboração com Jung, dispôs-se a levar avante a batalha. No outono de 1909 foram ambos aos Estados Unidos, para fazer conferências sobre psicanálise no Instituto Politécnico de Worcester. Infortunadamente, o excessivo entusiasmo dos americanos causou mais dano que proveito à teoria. Ninguém o compreendeu melhor do que Freud. Sua viagem à América decepcionou-o. Tornou logo a Viena, para prosseguir nas pesquisas e no combate.

Neste começos, as ideias freudianas se iam disseminando por todo o mundo. Em 1911, segundo Havelock Eliis, as teorias do médico vienense eram pregadas na Áustria, Suíça, Estados-Unidos, GrãBretanha, India, Canadá e Austrália. Criaram-se ramos da associação em Zurich, Berlim, Viena, Munich, Budapest e Londres. A Associação Psicanalítica Americana foi fundada em 1911 por A. A. Brill.

A psicanálise, que deixara de ser obra exclusiva de Freud, encontrou outros campeões, outros investigadores para comprovar e enriquecer as descobertas que o tinham conduzido à formulação da teoria. Assumiu esta o aspecto definido de um movimento cooperativo. O campo era tão vasto que Freud fora obrigado a deixar intacta uma parte considerável. Seus discípulos tomaram a si a exploração desses territórios virgens.

Mas Freud conservou-se na dianteira do movimento. Assegurada a vitória, não pensou em descansar sobre os louros. Não quis transferir para os ombros dos numerosos discípulos que angariara, e a quem respeitava e admirava, a missão de fazer avançar a ciência criada por ele. De qualquer modo, a vitória não fora conquistada de todo. Havia ampla colheita a fazer de novos argumentos, provas e pormenores. Ele voltou-se, pois para o desenvolvimento daquelas ideias que, no primeiro arranco para a grande meta, só pudera examinar de relance.

Uma destas particularidades era a teoria da libido. Definira-a ele originariamente como sendo a energia ligada aos instintos sexuais, mas fora obrigado a modificar e a expandir este conceito. A sexualidade infantil levou-o a reinterpretar a libido em termos que, ultrapassando amplamente as expressões do desejo adulto, incluíam a vasta escala de manifestações emocionais agrupadas sob os nomes de amor, amizade, afeição e paixão. Verificou que os seres humanos possuíam em próprio a faculdade da sublimação, que lhes torna possível descarregar uma porção da sua libido por vias outras que não a sexual. A energia do atleta, do homem de negócios, do profissional, do artista, foi em consequência tida como uma transferência da libido.

 De um novo conceito que formara sobre a sexualidade infantil, extraiu Freud uma explicação mais direta da sublimação. Antes de se constituir o complexo de Édipo, antes mesmo do indivíduo ter suficiente conciência de si mesmo para poder distinguir entre o pai e a mãe, havia uma fase em que a libido ficava encerrada no eu. A esta fase chamou Freud narcisismo, evocando o mito grego do jovem Narciso, que se enamorou da própria imagem refletida num lago. Este estádio narcísico, ao que ele verificou, jamais desaparece por completo em toda a vida de uma pessoa, mas persiste debaixo de várias manifestações.

 

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Em menos tempo que o que medeia entre duas gerações, a teoria de Freud alastrou-se pelo mundo inteiro. Com trinta anos apenas de existência, já deu frutos no campo da educação, da medicina, da antropologia, da filologia, da filosofia, da biologia, da mitologia, da história, da religião, da estética, da sociologia, das leis, e em muitos outros campos de pesquisa científica. Sua influência se fez sentir em todos os ramos da literatura, deixando cunho particularmente profundo na biografia e no drama.

 A 6 de maio de 1936 o mundo festejou o octogésimo natalício de Freud. A-pesar-das dificuldades que há em aquilatar a obra de um contemporâneo, as principais publicações científicas reconheceram generosamente a influência universal das suas ideias. Do anonimato havia-se ele alçado pouco a pouco à popularidade e à fama. A cidade de Viena fê-lo cidadão honorário, é em 1935 Freud foi eleito membro, também honorário, da Sociedade Médica Real de Londres. Reconhece-se hoje francamente que “nenhum outro homem deu maior estímulo ao estudo e à compreensão dos fenômenos psicológicos”. No seu editorial dedicado ao aniversário, o Journal of the American Medical Association expressou-se nestes termos: “A posição de Freud como grande criador está consolidada. As grandes épocas, na medicina, são definidas pelos grandes inovadores. Assim como nós ligamos o nome de Vesalius à anatomia, o de Harvey à fisiologia, o de Virchow à patologia e o de Pasteur à bacteriologia, Freud virá a ser olhado como o inaugurador de uma nova orientação em psiquiatria – um analista dotado de "profunda compreensão da mentalidade primitiva".

 A psicanálise fez mais do que fornecer novos materiais à ciência, à arte e à literatura. Com a sua interpretação inédita dos fenômenos mentais, deu-nos uma nova concepção do mundo.

 Um de seus grandes efeitos foi demonstrar e impor irrefutavelmente o conceito de que tudo na natureza tem um sentido. Foi ainda mais longe, fazendo com que até os nossos pequenos lapsos de linguagem, os gestos insignificantes de nossas mãos, as imagens fantásticas de nossos sonhos, assumissem importância e valor. Apagou assim da vida quotidiana o cunho de trivialidade, enchendo-a de intenções e significações.

 A literatura e a sua crítica foram enriquecidas em grau superlativo pelas idéias freudianas. E' quase supérfluo citar exemplos tão conspícuos como o Ulisses de James Joyce, a Recordação das Coisas Passadas de Marcel Proust, as novelas de Arthur Schnitzler, os dramas de Eugene O'Neil, a poesia de Robinson Jeffers, a crítica de Ludwig Lewisohn, a Montanha Mágica de Thomas Mann obras todas que devem muito de sua orientação e uma parte considerável do seu material, ou diretamente a Freud, ou à geral invasão da atmosfera intelectual pela essência da doutrina freudiana.

Também é digno de relevo o fato de haver Freud demonstrado que a mente normal está submetida às mesmas leis e mecanismos que a anormal, constituindo a diferença no fato de que o neurótico cede a uma tensão que a personalidade normal é capaz de vencer e ajustar às suas conveniências. Â acusação, que se lhe faz, de tentar provar que todo o normal é patológico, pode Freud responder que, por outro lado, também demonstrou ser normal o próprio patológico. [Osório diz: digo isso faz tempo! Muito antes dessa leitura sobre Freud, realizada em junho de 2020]

 

Afim de condensarmos num parágrafo a sua contribuição para a inteligência da natureza humana, frizaremos que Freud transformou por completo a ciência da psicologia, ciência que era antes dele um seco e árido acúmulo de fatos mal compreendidos e sem utilidade. Encontrou a psicologia no estado de um mecanismo morto e fê-la funcionar; encontrou-a automática e mudou-a em dinâmica. Freud fez frutificar os seus trabalhos, primariamente uma simples técnica de laboratório, num guia da vida humana, do seu comportamento e da procura da felicidade, Por tudo isto foi ele chamado o Colombo do Espírito!

 

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Mas o sistema de Freud, não passou sem sofrer rudes ataques. Tinham estes, naturalmente, por alvo principal o papel preponderante que ele dava à sexualidade. Não há negar, contudo, que Freud pagava muitas vezes pelas temeridades e inexatidões dos seus discípulos [Osório diz: o mesmo se aceita de Sócrates, mas dos Sofistas não! A estes se nega a não responsabilidade pelos atos de seus discípulos]. Só depois de publicado o seu último livro foi que muitos críticos reconheceram não haver ele afirmado jamais que todos os sonhos tivessem origem sexual. Era uma generalização dos seus discípulos, pela qual o responsabilizavam [Osório diz: o autor não informa se Freud chegou a repreender seus discípulos ou calou-se!]. É verdade que ele deu muito mais relevo à sexualidade que qualquer de seus antecessores: era natural, conforme frisou Freud, que os distúrbios da neurose nascessem do instinto sexual, por ser esta precisamente a área sobre que se exerce a repressão. Não há inibição das outras funções naturais do corpo. Era, por certo, de esperar que a emoção a que se recusa livre expressão fosse a fonte de todas as perturbações que surgissem.

A tendência freudiana para a impressão nas definições foi debatida por Havelock Ellis. Termos como narcisismo, auto-erotismo, complexo de Édipo, segundo apontou Ellis, são frequentemente empregados na literatura freudiana com variadas conotações, se bem que nos escritos do próprio Freud toda modificação do sentido de uma palavra seja explanada antes de se adotar.

Foi sempre necessário agrupar e interpretar, embora às tentativas, o material bruto de uma ciência antes que se pudesse aspirar a uma visão compreensiva. Com este propósito, recorre o cientista à hipótese auxiliar - a explicação provisória que introduz uma aparência de ordem no caos. Esta hipótese poderá ser rejeitada posteriormente. Ac homem que dela se utiliza cumpre, já se vê, fazê-la flexível para que possa adaptar-se aos novos fatos que surgirem de futuro. Temporariamente, desempenha a função de um andaime. Tais "hipóteses experimentais” encontram-se em muitos conceitos de Freud, como o Ego, o Id, o preconciente, e as várias sugestões apresentadas por ele na esfera da religião e da literatura.

Os críticos de Freud foram muitas vezes tardos em compreender o papel da hipótese experimental. Estabelecer o preceito dogmático de que em ciência não é lícito fazer generalizações antes que estas se possam demonstrar e estabelecer em todos os seus particulares, é, reconhecidamente, rigorismo excessivo [Osório diz: parece que o autor muda ao sabor das suas simpatias! Ele reclama que as teorias de Freud não foram aceitas inicialmente, mas agora, praticamente, justifica que teorias não podem ser aceitas sem maiores pesquisas e testes!]. Se Copérnico se houvesse pautado por este dogma, nunca teria elaborado a sua teoria; e seguramente Hutton, Malthus, Marx e outros se teriam perdido numa selva de dados contraditórios. É preciso fazer suposições. E a faculdade genial de fazê-las o mais próximas que é possível da realidade constitui a marca distintiva do espírito teorizador.

Fonte: Arquitetos de ideias, Ernest R. Trattner, tradução de Leonel Vallandro, Globo, Porto Alegre, 1944, p. 277/301.

 

 


 

 

 

Marx

    Marx.

TEORIA DA INTERPRETAÇÃO ECONOMICA DA HISTÓRIA

 

 

Antes de surgir Darwin, toda a biologia se encontrava numa condição comparável  à da astronomia antes de Copérnico. O que estes dois homens geniais fizeram nas suas respectivas esferas, realizou-o Marx na história. Poucas teorias revelam uma mentalidade tão grandiosa, sobretudo em sua capacidade de absorver o pensamento de homens de várias nacionalidades.

Marx, como Darwin, teve seus predecessores; e a profunda influência que Malthus exerceu sobre este, recebeu-a aquele de Hegel.

É, pois, para Hegel que nos devemos voltar primeiro, afim de compreender o modo por que Marx formou a sua teoria da interpretação econômica da história.

 

2

 

No outono de 1836, quatro anos após a morte de Hegel, Karl Marx viera estudar história e leis na Universidade de Berlim. O professor Hegel era ainda considerado o maior luminar de toda a Europa intelectual. Ele teve a glória rara de ser elevado, em vida, ao posto de filósofo oficial da Alemanha. Estudantes vinham de longe ouvir-lhe as preleções, pois, na opinião geral, esse homem empunhava o cetro da filosofia tão indisputavelmente como Goethe o da literatura e Beethoven o da música.

Hegel foi, sem dúvida nenhuma, o legítimo porta-voz da sua época. Não que personalizasse o espírito de luta e transformação revolucionária (tinha um fundo demasiado conservador para isto). Fornecia, porém, aos seus discípulos e leitores uma fórmula, a que chamava "dialética", mediante a qual se tornavam acessíveis à compreensão todos os numerosos aspectos positivos e negativos da história, da ética, das leis, da política e da biologia.

Por dialética entendia Hegel um modo de pensar que permitia a completa elucidação dos dramáticos entrechoques de ideias, instituições e sociedades. Através dela podia-se ver, com clareza admirável, que na natureza e na história também opera um grande princípio harmonizador (síntese) criando perpetuamente a unidade no próprio seio do conflito. O nome de dialética, portanto, passou em breve a designar o processo pelo qual todas as coisas crescem, transformam-se e tornam a desenvolver-se.

Considere-se um ovo. O ovo é uma coisa positiva, mas que traz dentro de si um germe que gradualmente lhe transforma o conteúdo. Esta mudança, que implica uma negação, não resulta numa destruição ou aniquilação, mas num ser vivo. E, por este teor, ensinava Hegel que todas as coisas são transitivas e não estáticas. Um sexo é a antítese do outro, e contudo, dessa relação antitética nasce um indivíduo vivente. Insistia Hegel em que nós devemos pensar dialeticamente, porque os fatos sobre que pensamos se desenvolvem dialeticamente. Neste processo, cada movimento produz, por uma reação automática, o seu oposto: e do resultante conflito entre opostos, entre tese e antítese, nasce a síntese final. [Osório diz: A dialética de Hegel ensinada com a facilidade de um bom exemplo por um professor que se quer fazer compreender.]

Fonte: Arquitetos de ideias, Ernest R. Trattner, tradução de Leonel Vallandro, Globo, Porto Alegre, 1944, p. 225.

 

A dialética de Hegel causou grande impressão. A ideia nova foi sofregamente recebida por toda parte. Era aquela uma época de transformação, de movimento, uma época que tinha assistido à morte da ordem antiga e a tentativas para criar uma ordem nova. A Revolução Industrial, que devia eliminar todas as formas de relações econômicas previamente existentes, já começava o seu avanço irresistível. O mundo estático mudara-se rapidamente num mundo dinâmico.

Foi nesses tempos tumultuosos que cintilou o espírito de Hegel - o homem da fórmula. Ele via a vida toda como um processo de transformação, de combinação, de luta e desenvolvimento. Como era filósofo, Hegel procurou abarcar a história num sistema de lógica universal. Sua tentativa foi uma brilhante e vigorosa proeza intelectual que influenciou uma geração inteira, inclusive o espírito de um jovem estudante que estava destinado a tornar-se, além de grande teorista, um admirável e original economista.

 

3

 

Hegel escreveu muitos livros, todos eles de leitura difícil por serem as suas ideias vazadas numa linguagem muitas vezes obscura. Já se disse que, quando um homem fala no que não compreende a uma porção de gente que não entende o que ele diz, está falando “metafísica”. Este chiste, especialmente no caso de Hegel, encerra um bocado de verdade, como se vê pela anedota sobre um francês que lhe pediu resumisse a sua filosofia numa frase. Replicou Hegel que preferia responder em dez volumes. Depois de publicados os volumes, e quando toda a gente andava a falar neles, Hegel queixou-se "há um só homem que me compreende, e esse mesmo não me compreende às vezes”.

 

O seu feito mais significativo foi o de explicar o sentido de "relação". Hegel mostrou que tudo no universo é relacionado, interdependente; mostrou que não podemos estudar inteligentemente coisa nenhuma a não ser referindo-a a alguma outra coisa. Por exemplo, não podemos falar no assoalho sem pressupor as paredes; não podemos falar no peixe sem implicar a água; não podemos falar no céu sem subentender a terra. A semelhança nada significa, à parte da diferença. O universo é um conjunto sistemático de qualidades correlatas (positivas e negativas). Toda coisa real envolve uma coexistência de elementos contrários. Por conseguinte, saber ou compreender uma coisa, equivale a ter percepção dela como um grupo unificado de partes contrárias. A verdade sobre uma coisa ou ideia qualquer envolve contrastes e oposições. E assim, o que existia há um momento (tese) envolvia o seu oposto (antítese), e desenvolveu-se agora numa conciliação ou união (síntese). [Osório diz: muito bom]

É está, pois, a famosa tese hegeliana que tão indelevelmente se imprimiu no espírito de Marx: tese, antítese e síntese. Todas as vastas leituras que tinha feito ganharam desde esse movimento nova importância. A história já não era um progresso tranquilo, mas um romper caminho através de oposições um movimento triádico que é a lei de todo desenvolvimento. Deixara de ser um montão de fatos para se tornar uma unidade a emergir de diversidades contraditórias. Tão fundamente foi Marx influenciado por este modo de considerar as coisas, que o seu genro Lafargue fez uma ocasião este comentário: “Ele nunca via uma coisa-em-si, fora de contacto com as circunstâncias; contemplava-a sempre como parte de um conjunto móvel e complicado. Sua ambição era estender até onde podia a compreensão deste mundo de coisas, suas múltiplas ações e reações que variam incessantemente."

 

4

 

Admitindo que toda a vida e toda a história são atravessadas por esse movimento tríplice de tese, antítese e síntese, a questão que se nos defronta é: Qual a causa desse movimento?

Hegel respondia dizendo que ele é obra do Absoluto – isto é, Deus, o Espírito Cósmico – que avança através do tempo. A marcha do Absoluto é, em essência, um processo espiritual que se realiza incessantemente, por passos sucessivos, partindo de formas mais baixas para formas mais elevadas. Para Hegel, Deus era o espírito absoluto pelo qual existe todo o sistema organizado das coisas. Deus é o espírito unitário, e tudo que existe vive nas Suas diferenciações concretas da natureza, do homem e das coisas.

Hegel falou e escreveu muito a respeito do absoluto, em linguagem de um transcendentalismo quase inhumano. Era essencialmente filósofo, e os filósofos misturam com frequência a sabedoria à obscuridade, oferecendo-nos, com a luz, aspectos nebulosos de coisas incompreensíveis. Disto foi Hegel um exemplo conspícuo. Por esta razão, Marx não vacilou em colher o que lhe parecia importante e desfazer-se do resto.

O que ele considerava importante era a dialética hegeliana o absoluto hegeliano era o resto. Quando se lhe apresentou a questão: “Qual é a causa a causa do movimento triádico?” Marx não respondeu que era o absoluto longe disso! Causas econômicas, e não a marcha do absoluto, dizia ele, é que explicam os movimentos da história. Não afirmou, como erroneamente acreditam muitos, que este fosse o único fator. Por sustentar a prioridade das forças econômicas, a teoria de Marx é muitas vezes denominada "materialismo histórico".

Mas seria erro grave julgar que esta teoria seja materialista no sentido que se dá comumente à palavra. É por um lado, verdade que Marx rejeitou o absoluto de Hegel; mas também é verdade (e isto muitos o esquecem, ou ignoram de todo) que ele não refutou menos o materialismo passivo de Feuerbach e o materialismo "vulgar” de Buchner, Vogt e Moleschott.

Ludwig Feuerbach (1804-1872) foi um filósofo alemão que também exerceu grande influência em Karl Marx. Como este, Feuerbach aceitava a dialética hegeliana; como ele, também, não aceitava a 'marcha do absoluto". Feuerbach foi um materialista integral. Ao passo que Hegel fazia o universo originar-se da razão pura, da ideia lógica absoluta, desenvolvendo-se através do processo dialético, Feuerbach afirmava que a natureza, e não Deus, é que está em primeiro lugar - e a natureza é em essência a matéria. Acrescentava que Deus não fez o homem, mas sim que o homem fez o seu Deus, e que o homem não é nada mais que um produto das forças mecânicas da natureza. Ao invés da marcha do absoluto, Feuerbach só via na dialética hegeliana a marcha das forças materiais.

O materialismo de Feuerbach era eminentemente mecânico, chegando a considerar o homem como nada mais que uma máquina um produto dos seus próprios apetites. Tão absolutos eram este materialismo e a sua negação do espírito, que a frase de Feuerbach: Der Mensch ist was er isst (o homem é o que come) caracteriza nestas poucas palavras a índole da sua generalização mecânica.

Mas para Marx o homem era mais do que uma máquina. Explicar a sociedade em conjunto, baseado em que “o homem é o que come”, é ir de encontro aos fatos, porque o homem possui consciência, e esta consciência é determinada por um jogo complicadíssimo de situações histórico-econômicas. Afirmar que o homem é resultado exclusivo do ambiente é esquecer que o próprio ambiente pode ser modificado por ele. "A doutrina materialista", disse Marx em uma de suas reflexões críticas sobre Feuerbach, "de que os homens são produtos das condições e da educação, e, portanto, que homens diferentes são produzidos por condições e educações diferentes, esquece que as circunstâncias podem ser alteradas pelo homem, e o próprio educador precisa ser educado.”

O erro de Hegel foi deixar-se embriagar pelo idealismo filosófico; o de Feuerbach, de atufar-se no materialismo filosófico. Marx apercebeu-se bem cedo da incongruência, das imperfeições e das claudicações de ambos. Pareceu-lhe que o expediente de Feuerbach, apanhando o absoluto de Hegel e pondo-lhe o rótulo de "matéria”, nada resolvia. Ambas as perspectivas desprezavam estolidamente [Osório diz: “falto de discernimento”] os fatos econômicos e industriais. Tanto uma como a outra eram mais inexatas do que o suspeitavam os discípulos de Hegel e Feuerbach.

 

5

 

O homem é, por certo, mais do que uma máquina. Marx o sabia: estava enamorado! Noivara, em segredo, com Jenny, filha do barão von Westphalen. O seu primeiro ano de universidade não foi muito feliz: ele se debatia num desassossego de alma e de espírito. Além de se achar longe da sua querida Jenny, Marx, nessa época de formação, era um poeta sensível a todos os cambientes delicados da beleza e da emoção. Aos que conhecem a face exteriormente fria e seca da sua carreira ulterior, pode parecer estranha dissonância recordar que a primeira obra publicada pelo autor da teoria econômica da história foi um poema lírico! “Tudo se concentrava na poesia”, disse ele, referindo-se a esses primeiros tempos de estudante em Berlim, “como se eu estivesse enfeitiçado por algum poder supraterreno!" A literatura romântica, mais do que a clássica, era o que o atraía particularmente, nessa quadra, em que trabalhava noite e dia no estudo da filosofia, jurisprudência, história, geografia e outros assuntos sem conta.

Marx pediu a mão de Jenny e obteve-a, contra a vontade da família e dos amigos desta. Nem todos os estudos, discussões e aventuras intelectuais desses dias de estudante podiam abater ou reduzir a sua inclinação romântica. À viva força, desfez-se temporariamente o noivado. Os parentes dos Westphalen não queriam ver a filha de um fidalgo prussiano casada com um judeu. Apesar de ter sido Karl Marx batizado com seis anos apenas, sabia-se que todos os seus ascendentes, tanto pelo lado paterno como pelo materno, tinham sido rabís.

Em 1841 o jovem Marx recebeu o grau de doutor em filosofia. Em companhia do seu mestre e amigo Bruno Bauer, candidatou-se ao posto de lente na Universidade de Bonn. Mas não conseguiu a nomeação. Estava-se preparando para desposar Jenny quando lhe recusaram a cadeira, e ele deu-se conta de que ainda era preciso procurar um emprego. Entraram aí em jogo as forças econômicas para encaminhar o destino do moço. Procurou um meio de vida no jornalismo, incorporando-se aos redatores da Rheinische Zeitung, uma folha radical que se publicava em Colônia. Mas o jornal teve vida curta. Foi suprimido pelo governo em começos de 1843. Entretanto, Marx estava apaixonado e isto o governo não podia suprimir. De modo que no verão desse ano ele casou com Jenny e poucos meses depois mudou-se para Paris.

 

6

 

Já muito antes de vir para Paris, sentira a premente necessidade de conhecer melhor o pensamento econômico e político francês. Não que este assunto lhe fosse estranho, mas o espírito insaciável de Marx tinha sede de conhecimentos cada vez mais exatos e de compreensão mais profunda.

Desde pequeno lhe eram familiares as ideias francesas, pois fora educado de acordo com as opiniões de seu pai, defensor e discípulo dos filósofos franceses setecentistas. Em todo estudo do materialismo histórico, cumpre avaliar com justeza o influxo que Marx recebeu dos filósofos franceses materialistas, como Diderot, Helvetius, d'Alembert, Holbach. Foram estes precursores da Revolução Francesa críticos implacáveis da Igreja e do Estado. Aliás, buscavam sempre nos fatos materiais, e não em especulações metafísicas, a elucidação da natureza do homem e da sociedade.

Já na sua juventude havia Marx sofrido a influência dessa poderosa corrente intelectual. Em criança, familiarizara-se com Diderot e Voltaire. E agora, homem feito e vivendo em terra francesa, sentia em si mesmo uma singular afinidade com esses pensadores augustos, que se negavam a aceitar em qualquer assunto as imposições da autoridade. Aprendeu com eles a pesquisar pacientemente os fatos, a encarecer os conhecimentos positivos, a buscar um grau de compreensão que lhe desse o poder de generalizar. Como aqueles homens, Marx começou a revelar uma erudição enciclopédica, um espírito que era como um vasto oceano a banhar muitas praias.

Contava Marx, por essa época, vinte e cinco anos de idade. Quando chegou com sua mulher à capital francesa, andava no auge o movimento socialista. Mas o socialismo daquele tempo não era o socialismo de Marx. Tão profundo foi o cunho imprimido por ele ao pensamento socialista, que hoje raramente se ouve mencionar o socialismo de Owen, de Saint-Simon ou de Fourier, cujas teorias se eclipsaram à sombra da interpretação econômica da história.

Ninguém jamais estudou com tanta sofreguidão como Karl Marx os livros dos socialistas franceses. E, por isso, ninguém estava mais capacitado que ele para analisá-los e apontar os seus defeitos. O erro fundamental de todos os socialistas que tinha lido consistia na atitude anticientífica. Se haviam de pesquisar as origens do capitalismo para compreender a essência do sistema que combatiam, malbaratavam o seu tempo e o dos leitores com a elaboração de teorias fantásticas, segundo as quais todos os inconvenientes do capitalismo seriam cancelados mediante um governo benéfico de trabalhadores. Marx desmascarou facilmente a falácia de tais utopias. O que alguns socialistas precisavam era uma justa apreciação das realidades econômicas que formam a base da existência humana. Também viu com clareza o que era mister fazer: desembaraçar-se das utopias e aplicar toda a força da análise dialética da história passada à política presente, bem como às sociedades futuras. Era inútil entreter-se com esperanças, temores e ideais. Cumpria fazer frente à dura realidade da lei econômica.

 

7

 

Em Paris fez relações com escritores alemães e franceses. Entre eles estavam o poeta Heinrich Heine, o publicista Arnold Ruge, o socialista Pierre-Joseph Proudhon. Marx foi íntimo de todos. A poesia de Heine cativava-o singularmente. Muitos anos após a morte do poeta, Marx, já exilado em Londres, gostava de citar o incorrigível rebelde, “esse bicho estranho, um poeta”, como disse uma vez.

Marx, em Paris, era um moço ocupadíssimo que lia, estudava, tinha entrevistas. O verão e o outono de 1843 transcorreram em intensa atividade intelectual. Releu as histórias da França, da Alemanha e dos Estados Unidos, em busca de fatos econômicos que corroborassem a sua interpretação da história. Os escritos de Maquiavel, Rousseau, Montesquieu e Ricardo também passaram por uma análise das mais rigorosas. Essas largas leituras robusteceram as suas primeiras vistas no tocante às relações da história com a economia.

A história, segundo a convicção a que chegou, devia ser estudada cientificamente, sem o socorro de conceitos místicos tais como a ideia hegeliana do absoluto. Isolar a história das ciências naturais e da indústria era como separar a alma do corpo e "procurar a sua origem, não nas condições palpáveis da terra, mas nas etéreas nuvens do céu”.

Era-lhe, pois, evidente que os fatores econômicos determinavam todos os demais fatos históricos, possibilitando assim a explicação da imensa complexidade dos negócios humanos. Em tal matéria, como é de ver, as provas absolutas e irrefutáveis são pouco menos que impossíveis. Nas ciências físicas, muitíssimos fenômenos repetem-se com suficiente uniformidade de intervalos e circunstâncias, o que permite que eles sejam enfeixados em leis, para fins práticos. Nas ciências sociais, ao que parece, o mais que se pode alcançar é um alto grau de probabilidade. Em consequência, a teoria mais eficaz é a que explica do modo mais satisfatório o conjunto dos fatos em exame, de tal forma que se chegue a esse alto grau de probabilidade reunindo numa só conclusão um número tão grande de fatos que torne absurda qualquer outra interpretação.

Partindo de certas ideias de Hegel, Marx logrou por à mostra a rede de relações que prendem a superestrutura da sociedade à sua base material. Revelou as conexões entre a economia e a política, entre a economia e a cultura, entre a economia e a marcha da história. Pela primeira vez foi esta assentada em suas bases reais, não como narrativa de guerras e pazes, de genealogias régias, de datas soltas, mas como relato da vida humana através dos séculos. Em vez duma novela romântica, tornou-se o estudo da grande massa humana, de como ela vive, luta e avança.

Marx pois fim ao deplorável desdém dos aspectos econômicos, que caracterizava os filósofos e historiadores passados. Com intuição profunda e rica erudição, reuniu os seus argumentos de modo a construir uma teoria dinâmica da história. Indicava, também, com essa teoria, o modo por que a sociedade, em constante transição, passava de uma fase a outra. A nova sociedade não esperava impacientemente nos bastidores até que a velha houvesse terminado as suas reverências de despedida. Desenvolvia-se dentro dela, e quando atingia a maturidade quebrava a casca das leis, das instituições políticas e da cultura tornadas obsoletas.

 

Quanto mais se aprofundava na história, mais se convencia Marx da importância da produção econômica. Fora esta que determinara o espírito de todas as épocas estudadas por ele. A vida social, política, intelectual e religiosa de um povo construía-se sobre ela e em torno dela. Sendo elemento fundamental na luta pela existência, é ela que condiciona e desenvolve a consciência dos homens. Marx punha, pela primeira vez, os bois diante da carreta com esta afirmação: “Não é a consciência da humanidade que determina a sua existência, mas, pelo contrário, a sua existência social que lhe determina a consciência.”

Era esta a nota tônica, ferida então pela primeira vez, da interpretação econômica da história. Antes de passarmos adiante e vermos o modo como desenvolveu Marx a sua concepção, vale a pena considerarmos as teorias históricas anteriores, para avaliar o peso da tradição que teve de afastar este obscuro jornalista alemão, em dificuldades para conseguir dinheiro com que atravessar, mais a mulher, o inverno.

 

8

 

Desde que existem línguas escritas, os homens têm-nas empregado para perpetuar seus feitos. Mas a história é mais do que a soma dos anais deixados pelo homem. É a fase do progresso universal em que ele vive e de que faz parte. Compilar documentos e reunir materiais não basta: documentos e materiais requerem explicação. A história, portanto, é mais do que os fatos, mais do que um relato de acontecimentos superficiais.

Os gregos antigos inauguraram a verdadeira literatura histórica. Heródoto, o pai da história, ainda é uma fonte preciosa. Seus livros, como se sabe, estão cheios de ficções, mas também não faltam ali as descrições vívidas da vida e da época em que ele escreveu. O que fazia falta a Heródoto era uma interpretação, pois nele não vemos outra que não seja o empenho de glorificar a democracia ateniense.

Com Tucídides ficou estabelecido um cânone de crítica histórica: primeiro, a história devia ser exata; segundo, devia ater-se aos fatos principais; terceiro, as narrações do passado deviam “ser úteis, porque, vista a natureza humana, as mesmas coisas tornarão a suceder”. Políbio, quiçá melhor historiador no sentido moderno do que Heródoto ou Tucídides, estabeleceu um método científico da história, em que dava especial relevo ao conhecimento da geografia e da topografia, bem como à atitude filosófica.

Todos estes autores gregos, e os romanos que lhes sucederam, não chegaram a apreender as causas econômicas e sociais sobre que assentam fatos e movimentos históricos. Políbio pressentia uma base latente impessoal, que lhe pareceu ser moral e não econômica, ao passo que Heródoto e Tucídides acentuavam a influência das personalidades e dos efeitos dramáticos.

Com a queda do Império Romano e a ascensão do Cristianismo ao nível de força suprema da civilização ocidental, a história não tardou a perder o tênue fundamento científico que possuía, quando os Pais da Igreja resolveram adaptá-la aos seus propósitos. [Osório diz: crítica contundente!] O seu maior desejo era estabelecer um passado venerável para o Cristianismo; para tanto era necessário tomar certos aspectos da história judaica, que até então haviam recebido lugar insignificante nos tratados, e elevá-los à altura do maior movimento da civilização, que cumprira finalmente o seu destino ao produzir a Igreja. A seguir, apossaram-se dos milagres e das lendas que cercavam a personalidade de Jesus, de seus discípulos e dos santos, e com eles teceram um drama grandioso e transcendental. Nesse empenho foi-lhes mister apoucar e desacreditar toda a história pagã. Pintavam, pois, a esta como um horrível pesadelo de guerras, pestilências, crimes, misérias e impiedades. S. Agostinho, por exemplo, só via dois reinos na terra: o reino de Satanás e o reino de Deus. Tudo que pertencesse à Igreja era de Deus, e por conseguinte, bom, ao passo que tudo mais era de Satā, e, logo, mau. [Osório diz: excelente fonte!].

Esta interpretação teológica, com a sua ideia da intercessão e direção divina pelos milagres, representava uma conscienciosa tentativa para introduzir coerência no fluxo dos acontecimentos. Como tal, calava fundo no espírito medieval. Durante mil e quinhentos anos, foi esta a suprema e "revelada” interpretação da história.

Após o raiar do Renascimento e os movimentos humanistas, esse método teológico não podia aguentar-se por muito tempo. Já no período medieval, pouco antes do Renascimento, houve historiadores que procuraram retornar à serena e proveitosa ocupação de colecionar fatos, que fora hábito antes de haverem os Padres da Igreja começado a escrever os seus manuscritos. O mais notável desses historiadores foi Otto Friesing, que escreveu a história do mundo sob um critério menos sobrenatural, se bem que não conhecesse ainda aquelas causas subjacentes a que tinham chegado os gregos mais avançados. Além de Friesing, houve o árabe Ibn Khaldun, um dos primeiros a falar em revolução histórica, que ele concebia como um processo de nascimento e crescimento.

Com o início da era moderna, homens como Flavius Blondus, Maquiavel, Guicciardini, desembaraçaram-se dos ensaios ineptos da Igreja e apanharam a ponta do fio deixado pelos gregos e os romanos. Maquiavel colaborou com novo e importante subsídio: a percepção de causas e efeitos na evolução política de Florença. Infelizmente, não se reconheceu desde logo o valor deste ponto de vista. A ideia de causalidade no estudo da história estava muito distante da trilha batida da Igreja. Lenta e gradualmente, todavia, começou a fazer progressos. Voltaire, Vico, Turgot, Condorcet e outros puderam emancipar-se das peias teológicas. No seu Século de Luís XIV, Voltaire procurou pintar a civilização francesa integral com as cores da "alma do povo", que ele considerava o grande fator determinante da história. Vico, o italiano, estribou-se na teoria dos ciclos. Turgot e Condorcet adotaram os princípios de continuidade e causalidade.

Brilhantes e vigorosos como eram estes novos trabalhos, deixavam ainda escapar, contudo, o ponto nuclear: nenhum deles atingira o cerne das causas históricas. Montesquieu, marca um progresso sobre todos os seus antecessores. Este francês procurou analisar o "espírito do povo" de Voltaire, em termos topográficos, geográficos e climatológicos. Frisou que as instituições de uma sociedade só era, úteis na medida em que se adaptavam ao espírito da mesma sociedade. Este modo de pensar era um enorme salto à frente, que dava amplas esperanças para o futuro. (Devemos ter sempre em mente que Marx estava saturado pelos filósofos franceses, e que os clarões indistintos do pensamento destes últimos alcançaram através dele a sua máxima refulgência.)

Com o século XIX, começou-se a erigir a abóbada filosófica de que Hegel seria o coruchéu [Osório diz: "arremate pontiagudo que encima as partes elevadas de uma edificação."]. Os expoentes deste idealismo filosófico aplicaram à história o Weltgeist (Espírito do Mundo) hegeliano, que culminou na Kultur germânica. Era a história para Hegel, como já vimos, um movimento dialético cheio de largas oscilações para a direita e para a esquerda, em que os homens representavam pouco mais que instrumentos nas mãos de Deus, do Absoluto, que se exprimia pelo Zeitgeist — o Espírito da Época.

Bem diferente desta é a concepção da história que se nos depara nas obras de Michelet, Froude e Thomas Carlyle temporâneos de Marx. Estes homens, além de votarem profundo desprezo às bases econômicas da vida, insistem no papel do herói, do grande homem, do chefe individual, da personalidade representativa. Esta visão altamente subjetiva da história, com a sua indiferença por tudo que não seja o ambiente imediato, forma o fundo de escolas históricas antagônicas contra que se destaca a inovação de Marx: a interpretação econômica da história. Ninguém, senão ele, podia ter escrito naquela época que “mudando os modos de produção, a humanidade muda as suas relações sociais. O moinho de mão produz uma sociedade de senhores feudais, o moinho de vapor uma sociedade de capitalistas industriais.” Por que? Porque Marx foi o primeiro que percebeu a diferença essencial entre as "técnicas” de produção e os “modos” de produção. Por técnicas entendia ele os inventos, as máquinas, as artes, a organização das fábricas onde o homem produz os artigos de que necessita. Por modos entendia as relações sociais e de propriedade que determinam a posse e a administração desses meios, bem como a sua distribuição. Quando as técnicas de produção passam por grandes transformações, as velhas relações sociais e de propriedade tornam-se muitas vezes inadequadas e atuam cada vez mais como uma barreira ao progresso da sociedade. Este obstáculo cria uma situação intolerável. Para que seja possível um maior desenvolvimento das técnicas (meios) de produção, e, portanto, para prover de modo mais eficiente às necessidades humanas, faz-se mister destruir as velhas relações sociais e de propriedade, e estabelecer outras novas. Eis o sentido que tinha, para Marx, a palavra revolução. [Osório diz: explicação sublime!]

 

E assim, o desacordo entre as técnicas e os modos de produção foi o fato fundamental revelado por Marx aos historiadores que o tinham ignorado durante séculos.

 

9

 

Havia pouco que Marx viera residir em Paris quando começou a publicar, com a colaboração de Arnold Ruge um periódico chamado Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães). Infelizmente, toda a vida dessa publicação limitou-se ao primeiro número. Foi pouco depois disso que Marx e Ruge se desavieram intelectualmente. Em agosto de 1844, sob o título de Notas Marginais, publicou Marx numa revista parisiense longa polêmica contra Ruge, defendendo o socialismo e a revolução e tomando armas pelo proletariado germânico.

Ao contrário de Darwin, Marx era um lutador – pensador e lutador amalgamados num só homem. “Acima de tudo, Marx era um revolucionário”, disse Friedrich Engels, ao pronunciar as palavras que encerravam a carreira do teorista no cemitério de Highgate, em Londres. “Poucos homens têm lutado tão apaixonadamente”. Estas palavras patéticas de Engels em 1883 aplicam-se ao Marx de setembro de 1844, data em que Engels veio para Paris fazer vida comum com Karl e Jenny.

Foi ele o anjo bom de Marx. Jamais teorista precisou tanto de um amigo. Tinham, é de ver, muita coisa em comum. Ambos haviam nascido na província renana da Prússia Marx em Treves, em 1818, Engels em Barmen dois anos depois. Essa região assistira durante séculos ao caldeamento das civilizações germânica e da francesa. Ambas guerreavam-se e traficavam ali entre si, produzindo uma cultura mista, poderosa e exuberante.

O primeiro encontro de Marx com Engels deu-se em Colônia, em 1842. Engels ia de viagem à Inglaterra, como representante comercial de seu pai. A firma possuía uma fiação de algodão perto de Manchester.

Em 1844 Engels veio visitar Marx em Paris, com a resolução de se aliar ao economista. Já tinha contribuído com um artigo para o primeiro e único número dos Deutsch-Französische Jahrbücher. Foi este artigo, intitulado Diretrizes Gerais para uma Crítica da Economia Política, que assinalou o começo de uma amizade para toda a vida. Os dois homens tinham descoberto uma íntima correspondência entre as suas ideias sobre a história e a sociedade. É curioso que Engels, quando Marx lhe era ainda um estranho, tivesse concebido a ideia da interpretação econômica. Como Wallace no caso de Darwin, Engels foi o primeiro a reconhecer que a descoberta de Marx era totalmente independente, e que a sua explicação era “científica”. Enquanto suas relações com Marx não lhe operaram a conversão, Engels foi um socialista utópico. Em sua ativa carreira comercial tinha muitas ocasiões de refletir sobre os problemas econômicos. Achando-os terrivelmente complexos, buscava ansiosamente um ponto de vista mais satisfatório, quando Marx lhe expôs as suas ideias. Engels fez-se, sem perda de tempo, o primeiro dos marxistas, só cedendo a palma ao seu mestre em penetração, vigor intelectual e abnegação.

 

10

 

Sob o estímulo de Engels Marx começou a formular as suas ideias, com clareza sempre maior, e a procurar qualquer coisa em que afiasse as unhas. Não tardou que encontrasse a vítima, no seu ex-amigo Bruno Bauer.

Bauer, como autêntico hegeliano que era, não atendera ao reclamo de Marx para que se procedesse a uma revisão do legado dialético de Hegel com bases mais realistas. Bauer obstinara-se na doutrina mística de que as ideias e os grandes homens são a única fonte dos fatos históricos [Osório diz: muito próximo do evemerismo!]. Marx empregava, como se sabe, a fórmula hegeliana de tese, antítese e síntese, mas substituía um princípio naturalista (que ele identificava com os fatores econômicos da existência) à noção hegeliana do absoluto. Em outras palavras, Marx pugnava por uma dialética de condições e desenvolvimento econômicos.

Acontece que Bauer e seu irmão Edgar haviam fundado um novo jornal, em que atacavam a seita marxista do hegelianismo. Marx, auxiliado por Engels, apressou-se a replicar, num livro que apareceu com o título sarcástico Die Heilige Familie (A Santa Família).

O livro é, para nós, extremamente valioso, não tanto pela polêmica acerba, como porque em suas páginas encontramos a primeira exposição clara da teoria da interpretação econômica. "Julgam esses senhores que poderão entender uma palavra de história”, pergunta Marx, “enquanto excluírem dela as relações do homem com a natureza, com a ciência natural e a indústria ?

...Pensam eles que poderão realmente compreender uma época, sem tomar em consideração a sua indústria e os métodos imediatos de produção na vida social?” Zomba dos filósofos etéreos que não querem ver que os alicerces da história não estão nas nuvens do céu, mas na grosseira produção material da terra que eles pisam [Osório diz: isso me lembra Protágoras quando fala do “homem medida”, que nada mais é do que retirar a construção do vida do homem das nuvens do céu, ou de quem mora nelas, e arregaçar as mangas e fazê-lo ele mesmo]. As transformações da sociedade humana não nascem da ideia metafísica, do Weltgeist de Hegel, ou de outro conceito especulativo semelhante, mas das condições materiais da existência. Por esta razão, argumentava Marx, a base econômica é o Unterbau (alicerce) da sociedade, que sempre determinou o Oberbau (superstrutura) da arte, da religião e da ciência.

 

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Progredindo na história econômica, Marx passou a atacar os socialistas mais velhos na pessoa de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Naquela época a capital francesa regurgitava, literalmente, de teoristas sociais. Havia os anarquistas, os socialistas, os comunistas, os partidários de Weitling, os proudhonianos, os sindicalistas, os cabetistas, os fourieristas, os owenistas todos concordes em condenar o velho sistema, mas asperamente antagônicos em concepções do modo como se devia proceder à mudança. Para Marx, era manifesto que a diversidade provinha da “opinião” pessoal de cada um. Ora, a verdadeira definição de opinião é ignorância dos fatos, pois onde existem fatos ela se torna desnecessária. Aliás, quem há de decidir entre as opiniões, declarando esta justa e aquela errada? Marx convidava-os a que pusessem de lado as suas opiniões e se cingissem aos fatos fundamentais das relações mútuas entre a economia e a história.

 

Assim como Darwin tivera que se desfazer da doutrina bíblica das criações independentes para estudar cientificamente a natureza, também Marx teve de afastar todas as teorias utópicas para estudar os fenômenos da sociedade. Tanto um como o outro se viam a braços com fenômenos amplíssimos e complicados. Cumpria a ambos deitar abaixo doutrinas aceitas. E ambos levaram a cabo a demolição de erros seculares pelo embate irresistível dos fatos. Apenas, ao contrário de Darwin, Marx não fazia experimentos, pois a posição de um economista é diversa da de um biologista.

 

Karl Marx fez-se o ariete da ciência contra todos os utopistas e todos os sentimentalistas. Que valor podem ter os numerosos planos de sociedades ideais, se não assentam numa exata compreensão das causas dos males que se desejam eliminar? Para que tecer ociosamente no ar planos sutis de um Estado perfeito? Não estão as condições sociais presas a forças produtivas? Para que, então, sonhar com transformações antes de compreender a natureza dessas forças? Como toda gente sabe sonhar – diz-nos Marx – os filósofos nos apresentam planos de toda casta, mas o que importa é conhecer a fundo o mecanismo íntimo da história, afim de poder modificar a sociedade de acordo com ele. Foi esse mecanismo íntimo que os economistas ignoraram. Não olhavam as coisas pelo ângulo dialético (Marx quisera ensinar dialética a Proudhon!); não tinham método de análise social: em suma, não eram homens de ciência.

 

Demais, para esses utopistas, o socialismo nada tinha que ver com o espaço e o tempo. Julgavam poder estabelecê-lo a qualquer momento, em toda parte, sem a menor preocupação com o estudo do desenvolvimento econômico. Era necessário apenas (pensavam eles ingenuamente) trazer os homens o mais depressa possível à consciência do que lhes era útil, e zás! estaria transformado o estado atual da sociedade. Destarte, os utopistas cifravam os seus argumentos a um apelo à natureza humana para que endireitasse tudo que estivesse errado.

Para Marx, este modo de considerar as coisas era de todo em todo anticientífico. O socialismo como simples plano para melhorar as condições materiais da sociedade devia ser rejeitado como utópico. Ensinara-lhe a história que os sistemas sociais não se podem modificar à vontade. Não há passe de magia ou esconjuro que possa metamorfosear o mundo. Descobrira que os sistemas sociais não são mais que um reflexo dos seus substratos econômicos, e por isso não se podem mudar, a menos que se opere uma mudança nesses substratos. Eis por que Marx se batia pela interpretação econômica, acentuando que os interesses econômicos, sustentáculo das ações e do pensamento humanos, têm raiz nos modos de produção e de troca. “No sistema de produção social organizado pelos homens, estes colocam-se em relações definidas que são independentes das suas vontades; estas relações de produção correspondem a uma fase definida do desenvolvimento de suas forças produtivas.”

Em outras palavras, a produção é o alicerce da história. A uma modificação do alicerce há de seguir-se uma alteração em todo o edifício que ele suporta. Nenhum sistema social — declarava Karl Marx – pode ser estabelecido onde e quando quer que o desejemos. “Nenhuma ordem social desaparece jamais antes que se tenham desenvolvido todas as forças produtivas que ela pode comportar; e novas e mais elevadas relações de produção não surgem nunca antes que as condições materiais da sua existência hajam amadurecido no seio da velha sociedade.” Em suma, a interpretação econômica de Marx reduzia-se à tese de que um sistema de sociedade mais perfeito só pode desalojar um sistema defeituoso a seu tempo próprio, quando se estabelecem certas condições e a sociedade alcança certo grau de desenvolvimento econômico. Este ponto de vista marxista subentende, naturalmente, a atitude dialética em sociologia. Por tal motivo, a missão do sociólogo não é inventar sistemas perfeitos, mas examinar “a sucessão de acontecimentos histórico-econômicos” de onde nasce a luta (antítese), e descobrir quais são os fatores materiais destinados a servir de meio para a solução do conflito (síntese). O Estado futuro não pode ser confeccionado por nenhum reformador.

 

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No meio de toda essa faina intelectual, Marx, de parceria com Engels, movia guerra feroz ao governo prussiano e tomava parte ativíssima na agitada vida dos grupos revolucionários parisienses. O governo prussiano queixou-se à França de que os ataques à sua dignidade recrudesciam de atrevimento e grosseria. Os dirigentes da França, poucos dispostos de começo a tomar providências, deixaram-se afinal persuadir por Alexander von Humboldt a pôr um dique à propaganda de Marx, Ruge, Bakunin e outros. A 11 de Janeiro de 1845, Marx foi expulso de Paris. Atravessou a fronteira belga e estabeleceu-se em Bruxelas, onde ficou até 1848.

Marx em Bruxelas continuou a ser o mesmo Marx de Paris, o mesmo revolucionário e pensador admirável. Fazia pouco que se achava na Bélgica quando recebeu de Proudhon um livro intitulado A Filosofia da Pobreza. “Espero os açoites da sua crítica”, escrevia-lhe o autor.

Os açoites não tardaram.

A resposta de Marx intitulava-se A Pobreza da Filosofia. Era um remoque pungente e inesquecível, que fez ruído e muito concorreu para engrandecer a reputação de Marx.

O ideal proudhoniano era um socialismo camponês, uma divisão primitiva da sociedade em pequenas comunas sem nenhuma autoridade central forte. Repelindo o industrialismo como um mal imitigável, pregava o retorno àqueles tempos em que a terra, e não a maquinaria, era o manancial direto da subsistência. Entrevia vagamente aquilo que Marx iria em breve demonstrar de modo brilhante; que o trabalho criava o valor, e que capital sem trabalho nada valia. Proudhon não ignorava, pelo estudo superficial de dialética que fizera em Paris sob a direção de Marx, que riqueza e pobreza, capitalistas e proletários, são concomitantes e necessários uns aos outros no sistema vigente; mas só até aí penetrava a sua análise.

A pesar da frouxidão de raciocínio e das conclusões prematuras, o livro de Proudhon teve grande acolhimento popular. Tão grande, na verdade, foi o interesse despertado por ele, que toda réplica seria, forçosamente, muito lida.

O erro essencial de Proudhon, exposto por Marx, era a concepção de categorias econômicas eternas e imutáveis: o erro de supor que as forças econômicas e sociais vigentes em 1848 fossem as mesmas de todos os tempos. Marx demonstrou, com devastadora clareza, que Proudhon não tinha senso histórico, e ao parecer nenhuma compreensão da marcha, mudanças e evoluções das instituições históricas. Do contrário saberia que as relações sob as quais se manifestam as forças produtivas não representam leis eternas, mas correspondem a estados definidos do homem e das mesmas forças produtivas. Os princípios, ideias e categorias de uma sociedade moldam-se pelas relações sociais decorrentes da produção. O conceito da propriedade privada, por exemplo, modifica-se em cada época histórica, criando conjuntos de relações sociais em tudo diferentes entre si. O próprio dinheiro não é uma coisa fixa e definida, mas uma relação social, reflexo de uma forma de produção que tornou obsoleto o sistema da troca direta entre os indivíduos. E quanto às máquinas, "não são uma categoria econômica, como não o é o boi que puxa o arado: são uma força produtiva”. A vida social em dada época é, portanto, produto da evolução econômica. Suponhamos, a título de ilustração, que um copo esteja cheio de água, ou de areia. O recipiente não determina a natureza de uma nem da outra, mas determina a sua forma. É assim que a evolução econômica determina a vida social, política e espiritual do homem.

Além disto – arguia Marx é ridículo julgar que para reformar o mundo basta expurgar os maus componentes da sociedade, conservando apenas os "bons”. Cada sociedade é produto dos seus choques internos, de seus antagonismos inerentes; o proletariado não deixará de ser proletariado enquanto existirem capitalistas para explorá-lo. O que ele devia fazer é o seguinte: não procurar eliminar os capitalistas apenas, mas também a si mesmo, como proletariado. Em outras palavras, estabelecer uma sociedade sem classes, em que, por conseguinte, não poderia haver exploração de uma classe por outra.

 

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A teoria da interpretação econômica fora afinal entregue ao mundo. Mas havia mais que fazer. O segundo passo seria formar uma organização que levasse aos trabalhadores a bandeira desta nova doutrina, divulgasse o novo evangelho, promovesse a revolução social que já se antevia distintamente. Era preciso estabelecer uma relação mais precisa entre a teoria abstrata e as realidades concretas e imediatas da situação política. Foi o que se dispuseram a fazer Marx e Engels.

A Europa achava-se, desde vários anos, em estado de fermentação. Na Inglaterra, a propaganda das trade unions [Osório diz: “As Trade Unions eram um tipo de organização operária surgida no século XIX que eventualmente evoluíram para aquilo que hoje chamamos de sindicatos.”] tomara grande surto, a agitação cartista andava em plena ebulição. Na Alemanha, operários em grande número entravam para as fileiras das diversas seitas socialistas. A agitação democrática contra a monarquia reacionária refervia e explodia numa série de revoltas. No seio do proletariado parisiense também começava a formar-se a consciência de classe. Marx sentia-se mergulhado numa era revolucionária, e buscava um ensejo de coordenar o proletariado num movimento para derribar o capitalismo e fundar uma sociedade comunista.

Desde 1836 os refugiados da perseguição política alemã tinham-se organizado em Paris sob o nome de Liga dos Justos, estabelecendo ramificações pelas principais cidades europeias. Em Bruxelas, Marx não tardou a dominar a cena. Dirigiu, com Engels, vasta propaganda pela extensão do movimento a toda a Europa. No primeiro congresso, reunido em Londres em 1847, trataram de tomar as rédeas nas mãos e realizar a transformação da Liga dos Justos, que até então não tinha política definida, numa Liga Comunista inspirada por princípios marxistas. Para estabelecer de modo seguro esse programa, Marx e Engels apressaram-se a redigir um manifesto em que se declarassem os fins e a política da Liga.

Surgiu daí o Manifesto Comunista – documento que guiou o pensamento comunista e socialista durante mais de setenta e cinco anos –dando à Liga o caráter de organização representativa do proletariado comunista, que se definia então nitidamente.

Pouco após a publicação do Manifesto, rebentou em Paris a revolução de fevereiro de 1848. Marx passou-se para lá a convite do governo provisório, depois que a Bélgica deliberou expulsá-lo do seu território. Em março o rastilho da revolução alcançou a Alemanha, e Marx apressou-se a ir tomar parte nela. Toda a Europa pegara fogo. Na excitação dos acontecimentos políticos imediatos, o Manifesto foi lido às pressas, embora com aprovação, pelos operários europeus. Em junho veio a sangrenta repressão de Cavaignac ao movimento proletário de Paris, e a burguesia firmou-se mais do que nunca no poder. Ao mesmo tempo a contrarrevolução começava a levar a melhor na Alemanha, e a reação triunfou mais uma vez. Continuavam as sublevações por toda a Europa, recebendo o estímulo e o apoio de Marx. Mas a sorte decidira-se: a burguesia estava firme na sela. Marx, que reconhecera nas primeiras revoltas movimentos burgueses, considerando-as como passos iniciais necessários à revolução proletária, compreendeu então que o seu zelo o levara a orçar as esperanças em muito mais do que o autorizava a realidade. Em razão do mal-estar econômico reinante, contava com o ressurgir do descontentamento proletário e do sentimento de revolta. Mas um incidente inesperado veio consolidar a vitória do capitalismo: descobriu-se ouro na Califórnia! Isto fez reflorescer a prosperidade econômica no mundo inteiro, dando por terra com as esperanças Marx. Pelo estio de 1850, andava ele a aconselhar que se liquidasse a revolução e se dispersasse a Liga Comunista, cuja razão econômica de existir havia desaparecido. Foi assim que a força da dura realidade econômica fez o entusiástico Marx retornar a calma ponderação do seu programa revolucionário, que ele, no louco anseio de uma realização imediata, não soubera aplicar com o cuidado e a circunspeção recomendadas por ele próprio.

Mas o Manifesto Comunista continuou a representar o repto do movimento proletário. E é ele ainda que, em suas poucas páginas, traça as linhas gerais da teoria marxista da interpretação econômica da história.

 

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Estabelece o Manifesto que “a história de toda sociedade tem sido, até hoje, uma história de lutas de classes”. E qual – pergunta ele – é a natureza desse conflito, de que depende o curso da história? Responde Marx à sua própria pergunta, definindo-o como um conflito de classes motivado pela posse dos meios de produção econômica.

Vejamos como desenvolve a tese.

Em todas as épocas houve uma classe dominadora e uma classe dominada, uma camada superior e outra inferior. Em todas as épocas, esta distinção tem sido imposta e determinada pelos meios correntes de produção. Em todas elas se tem travado luta implacável entre opressores e oprimidos, entre ricos e pobres, entre possuidores e destituídos. E esta luta prolonga-se ainda no dia de hoje, e não cessará enquanto não forem abolidas todas as classes e conciliados todos os antagonismos.

Marx estudou o desenvolvimento da burguesia moderna, desde que ela quebrara a casca do feudalismo, começando a espalhar-se pelas cidades e aldeias da Idade Média. Dos servos medievais tinham surgido os burgueses, com carta de privilégio, das primeiras cidades; era daí que provinham os elementos da burguesia atual. O descobrimento da América, a extensão dos mercados mundiais, abriram novos caminhos à florescente classe mercante e manufatureira. Apareceram as fábricas, porque o antigo sistema corporativo de produção manual tornara-se incapaz de satisfazer a procura cada vez maior de mercadorias. Os mercados cresciam incessantemente, e a produção manual tornou-se insuficiente. Introduziu-se, pois, a maquinaria com o fim de aumentar e acelerar a produção.

O desenvolvimento da burguesia deu nascença ao mercado mundial, com as transações internacionais e o formidável progresso das comunicações. E, à medida que avançava economicamente, a burguesia se elevava também politicamente: senhores feudais, comunas medievais, cidades-livres, foram formas que caducaram com a sua gradual ascensão, a partir do "terceiro estado" contribuinte, para a supremacia. A criação da sociedade capitalista moderna é um reflexo direto dos interesses da classe média.

E, o que mais é, a burguesia na sua marcha progressiva revolucionou todos os valores da vida medieval: a cavaleria, a cultura, a ideologia, a estética e até os motivos religiosos. Em lugar da velha ordem, estabeleceu o ponto de vista do comerciante; o dinheiro a invadir todos os recantos da vida.

Paralelamente com o crescer da burguesia, foi avultando a classe proletária. Aquela, evidentemente, não podia aguentar-se sem um proletariado que lhe fornecesse a mão de obra para suprir as necessidades, sempre em expansão, de produtos, objetos de utilidade, mercados novos. E com isso, o acento transferiu-se do campo para a cidade. As grandes cidades, regurgitantes de operários, tornaram-se os centros políticos modernos. A centralização não parava, enfeixando a propriedade num número de mãos cada vez mais reduzido, expropriando progressivamente aqueles que ficavam atrás na corrida das indústrias e dos mercados.

Visto, pois, com clareza este quadro da evolução econômica, o segundo passo, conforme Marx, será compreendê-lo dialeticamente, Como? A tese, antítese e síntese processam-se do modo seguinte: A burguesia, ou classe capitalista, tomou a si o monopólio dos meios de produção. Com este ato fez surgir a sua antítese, que é a classe trabalhadora sem capital. O conflito entre a burguesia e o proletariado, entre capital e trabalho, acabará por se resolver com a formação da síntese, uma sociedade sem classes.

Concitando os proletários de todo o mundo a se unirem, Marx confiava ao Manifesto Comunista a missão de despertar a consciência revolucionária da classe, provê-la de um programa para quando entrasse em ação, e desbravar a senda de um novo regime em que a ditadura do proletariado cederia gradualmente o lugar a uma sociedade sem classes. Entrava ele então a delinear os seus planos, em oposição aos planos de outros grupos que também apelavam para a classe trabalhadora como, por exemplo, os socialistas franceses e os adeptos de Robert Owen. Classificava a estes de reformadores, liberais burgueses e utopistas. Apontava os defeitos das suas doutrinas, como já o fizera na polêmica contra Proudhon.

E assim, a obra que Marx realizou antes de completar trinta anos bastaria para uma vida inteira. Não pensava, porém, em repousar, deixando a outros o desenvolvimento dos princípios que ele dera à luz. Continuou a trabalhar, instalado no próprio coração do movimento revolucionário.

Durante a revolução alemã, fundara a Neue Rheinische Zeitung, que em sua efêmera existência publicou alguns dos seus artigos mais brilhantes. Concitava os seus compatriotas a que opusessem resistência armada às tentativas de cobrança de impostos enviadas pelo ministério brandenburguês reacionário. Preso e processado em Colônia, sua brilhante defesa pessoal valeu-lhe a absolvição [Osório diz: nem Sócrates conseguiu!]. As sublevações de Dresden e da Província Renana, dirigidas por Bakunin, tiveram o seu apoio cordial. Ao malogro desses movimentos seguiu-se a sua expulsão da Prússia e o fechamento da Neue Rheinische Zeitung. Publicou ainda uma edição final, em tinta vermelha, e mudou-se para Paris. Mas antes de fazê-lo, Marx, sentindo-se moralmente responsável pelas dívidas contraídas, penhorou tudo o que tinha. Ajudou-o nisso a esposa, desfazendo-se de preciosos bens de herança, pratas e móveis. Teria sido fácil ir embora sem pagar, porém Marx não quis fazê-lo. A despeito de todo o seu ódio à instituição da propriedade privada, era bem vivo nele o sentimento de honra.

Em Paris, Marx assistiu à segunda rebelião, que foi sufocada em julho de 1849 com a ascensão de Luiz Bonaparte ao trono. Mandaram-no novamente fazer as malas, e foi procurar refúgio em Londres. Passados poucos dias, veio ter com ele a família. E ali ficou Marx, a não contar uns breves intervalos de ausência, para o resto da sua vida.

 

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Quando se instalou finalmente em Londres, no ano de 1849, Marx gozava a distinção de haver sido expulso de três países e de haver malogrado em três empreendimentos jornalísticos.

Entrava agora numa quadra de grandes dificuldades. O dinheiro escasseava sempre, apesar de um legado que Jenny recebeu de sua mãe. Até os auxílios periódicos do fiel Engels, que passava aos Marx todas as suas economias de empregado do comércio, pouco lhes adiantavam. Em 1851, Marx obteve a incumbência de escrever artigos semanais para a New York Tribune, de Horace Greeley, que muito se interessava pelos movimentos liberais e radicais da Europa. Mas a libra que lhe rendia cada um desses artigos mal chegava para pagar os aluguéis e os portes postais. Seus móveis, um a um, iam tomando o caminho da loja de penhores.

Como se isto não bastasse, as doenças começaram a apoquentá-lo; eram males de fígado e outros achaques agravados pelo seu hábito de trabalhar até tarde da noite, alimentando-se insuficientemente e fumando péssimos charutos. Por fortuna, Marx era um homem de natureza robustíssima, cuja constituição podia resistir a longos anos de abusos e desleixos. Sua aparência exterior nunca deixou de inspirar admiração. Não era alto, mas possuía uma extraordinária cabeça leonina. A descrição de Hyndman, embora relativa a uma época muito posterior, é, nos traços essenciais, válida para qualquer tempo: “testa imponente, grandes sobrancelhas hirsutas, olhos brilhantes e feros, um amplo nariz sensitivo e uma boca móvel, tudo emoldurado em luxuriantes barbas e cabelos”.

A despeito da sua pobreza, Marx julgava-se com uma missão a cumprir. Projetara uma teoria da história em que utilizara uma grande provisão de fatos até então ignorados ou desdenhados, demonstrando assim de modo incisivo a fraqueza da interpretação ortodoxa. Esforçara-se corajosamente por mostrar como essa teoria se podia aplicar à história; e, baseado nela, ensaiara delinear um programa para o movimento trabalhista revolucionário. Agora, no exílio, queria escrever uma crítica penetrante e completa da economia capitalista, assinalar com nitidez as contradições do sistema atual, que em suas obras anteriores apenas havia esboçado, e desbaratar uma vez por todas as análises ortodoxas e apologísticas da economia burguesa.

Os seus dias e serões passavam-se na biblioteca do Museu Britânico, a ler infindáveis coleções de jornais, a assimilar milhares de artigos, a extrair notas de livros em que se refletiam todas as variedades concebíveis de opinião e assunto. Esperava todas as manhãs que se abrissem as portas do Museu e só se retirava quando os funcionários o mandavam sair. Aquele alemão escuro e barbudo, de olhos negros e penetrantes, sentado a uma mesa com dúzias de volumes empilhados diante de si, parecia fazer parte da mobília da biblioteca. Mais para diante, reuniu um grupo de colaboradores que vinham com ele e o auxiliavam nas pesquisas. Ao mesmo tempo, Marx não renunciava à participação ativa no movimento operário. Interessava-se grandemente pelas trade unions e pelos cartistas, campeões estrênuos de um ideal muito próximo do seu.

Em 1859, o ano que viu aparecer a Origem das Espécies de Darwin, Marx publicou a Introdução à Crítica da Economia Política, em que apresentava uma excelente definição da sua teoria econômica, explicando o modo por que ela o conduzira a uma tentativa de análise da economia capitalista.

 

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Entrementes, andava sempre envolvido em polêmicas, atividades políticas, discussões e disputas com seus amigos e inimigos. Marx era um homem fogoso que em geral não tolerava contradições, e se ainda conservava algumas amizades, devia-o à tremenda força da sua personalidade e ao vigor das suas ideias. Tinha brigado com Bauer, Proudhon, Herwegh, Bakunin, Ruge e sempre com grande violência.

Desta vez ia romper com Ferdinand Lassalle, que fora seu colega na Neue Rheinische Zeitung, e com Karl Vogt, por causa do plano de Luiz Napoleão para auxiliar a unificação da Itália mediante um tratado com a Sardenha contra a Áustria. Marx, que via nisto uma traça de Napoleão para favorecer seus próprios interesses, denunciou o tratado como tal, atacando ferozmente Lassalle e Vogt, seus defensores. O tempo deu-lhe razão, mas Lassalle não perdoou nunca, e Marx nunca buscou perdão. Vogt revidou, acoimando-o de caluniador e degenerado. Tão grande foi a indignação de Marx que escreveu um livro inteiro, Herr Vogt, no qual denunciava o seu adversário como agente assalariado de Napoleão. Neste ponto, também, teve Marx ganho de causa, pois quando a República Francesa divulgou, onze anos depois, a escrituração secreta do governo Bonaparte, lá estava na conta do serviço secreto o lançamento: “Vogt recebeu, em agosto de 1859, quarenta mil francos”.

É difícil formar um juízo definitivo sobre a personalidade de Karl Marx. Quase todos os seus inimigos, e muitos amigos, diziam-no duro, severo, desagradável; e prevalecia a impressão geral de que este era o verdadeiro exterior do homem. Mas, em contraposição a estas críticas, temos o testemunho de Heine, que soube sentir-lhe o encanto. “Marx é o homem mais delicado e gentil que tenho conhecido.” Pode ser que Marx, conforme ao que se diz, tivesse feito os governos tremer, mas o certo é que jamais causou tais tremores a sua mulher e seus filhos. Era a mais feliz das famílias. Entre as crianças das ruas londrinas, com quem estava sempre disposto a brincar, era conhecido pelo apelido afetuoso de “Papá Marx”.

Para fazer-se uma apreciação justa de Karl Marx devem ser levados em conta dois aspectos do homem. Temos, por um lado, o lógico paciente frio a analisar a história com o escalpelo dos fatos e a sonda da sua teoria; e, pelo outro lado, o revolucionário impetuoso e sentimental, acudindo a qualquer motim insignificante, em que via os primeiros impulsos de uma iminente revolução mundial prestes a estabelecer a ditadura do proletariado e a sociedade sem classes.

Suas doutrinas econômicas não podem ombrear com a teoria da interpretação econômica da história, porque muitas conclusões são a priori, refletindo as aspirações do autor. Andava à cata de indícios da próxima queda do capitalismo e ascensão da classe operária; agarrava-se a qualquer ninharia que pudesse servir à demonstração da sua tese, fazendo vista grossa a elementos importantes que não contribuíssem diretamente para isso.

Marx tinha a tendência de racionalizar o seu ardente desejo de revolução, chegando muitas vezes a cômicos extremos de entusiasmo infantil. Veio um dia para casa cheio desse arrebatamento: tinha visto, em uma exposição de Regent Street, o modelo de uma locomotiva elétrica. Este símbolo dos velozes progressos da revolução industrial fora interpretado por ele, ao sabor das suas próprias esperanças, como um indício de que os motivos econômicos da revolução política estavam atingindo rapidamente a sua plenitude. Durante dias, como uma criança, falou na revolução iminente, até que caiu no costumeiro bom-senso e voltou à perspectiva lógica.

Seu estilo revela um dos aspectos desta tendência. Exemplo conspícuo é a inversão do título de Proudhon, A Filosofia da Pobreza, em A Pobreza da Filosofia. Marx buscava constantemente efeitos retóricos brilhantes no emprego de tais inversões, como: “A arma da crítica não pode substituir a crítica das armas”. “Lutero destruiu a fé na autoridade por haver restaurado a autoridade da fé”. “A filosofia não se pode por em prática sem a abolição do proletariado; o proletariado não pode abolir a si mesmo sem pôr em prática a filosofia”. Ora, é verdade que esta técnica revela a base dialética do seu pensamento, mas o próprio Marx compreendeu o seu perigo: uma fraseologia demasiado fácil a reunir antíteses aparentes. Em suas últimas obras desfez-se deste hábito que revelava a tendência a deixar, por vezes, que o gume da sua lógica se embotasse numa retórica bombástica e tonitruante.

 

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Em 1861 atingiu-o um revés de fortuna. Com a irrupção da guerra civil nos Estados Unidos ele perdeu os módicos emolumentos que recebia da New York Tribune.

Quando à guerra civil em si, embora não ignorasse que ela representava um choque entre duas facções opostas da classe dominante, Marx apoiou sinceramente a causa do Norte. Abstração feita de suas convicções histórico-filosóficas, o puro amor da liberdade era mele assaz forte para o colocar em oposição à escravatura. E, o que é mais, Marx teve ocasião de auxiliar a causa abolicionista com alguma coisa mais que a simples aprovação tácita. Quando o ministro Gladstone, na Grã-Bretanha, aventou a ideia de reconhecer-se a Confederação Sulina, concedendo-se-lhe amplos créditos, foi Marx um dos organizadores da grande manifestação trabalhista que forçou Gladstone a mudar de atitude.

Marx começou a assumir importância cada vez maior no movimento das trade unions inglesas. Por ocasião da Exposição Internacional de Londres, em 1862, ajudou a reunir os trabalhadores visitantes, franceses e de outros países, e discutiu-se a formação de uma organização internacional. Marx trabalhou febrilmente para este fim. Em setembro de 1864 teve o prazer de participar, como representante do trabalho alemão, da assembleia que fundou a Associação de Trabalhadores Internacionais – a Primeira Internacional. Não foi esta, desde logo, uma organização marxista; de 1865 a 1867 dominaram-na, ao menos oficialmente, os adeptos de Proudhon. Nesse meio tempo, Marx ia disseminando as suas ideias, e acabou por tomar as rédeas. Os marxistas conservaram-se no poder até que os partidários de Bakunin, que se transformara num intransigente anarquista, introduziram-se na organização e em poucos anos a desmembraram, acabando com ela.

Enquanto existiu, a Internacional foi um meio de divulgação para a teoria econômica da história. Os próprios sequazes de Bakunin e Proudhon, apesar de opostos ao programa de Marx e hostilizados pela agressividade deste, aceitavam plenamente a sua tese fundamental – a base econômica. A teoria passara a formar parte sólida do patrimônio científico.

A todas essas, os trabalhos do seu grande livro iam avançando. Nos fins de janeiro de 1867 ficaram completos os originais do primeiro volume de Das Kapital, e Marx meditou uma viagem à Alemanha para tratar da sua publicação.

 

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Com o primeiro volume do Capital, o grande teorista produzira a sua obra máxima. Nunca pôde dar vencimento à elaboração do formidável material coligido para o segundo e terceiro volume. Fê-lo Engels por ele, depois da morte de Marx. Mas o primeiro volume bastava; não havia mister e de um Novo Testamento para elevar rapidamente este livro à sua posição atual de Bíblia da classe operária.

O principal característico do capitalismo, diz Marx, é a discordância entre o valor criado pelo trabalho e o valor que o trabalhador recebe em troca, sob a forma de salário. Esta diferença, que ele denominava sobrevalor (encontramo-la sob outros nomes: mais-valia, ganho gratuito, lucro, interesse, renda do capital etc.) é o que o capitalista embolsa como prêmio da sua “contribuição" no trabalho produtor. Marx afirmava que, sendo todo valor criado pelo trabalho (aceitava isto como um axioma), o que o capitalista reserva para si é coisa roubada; e só consegue coonestar este furto, está claro, porque sua classe é a classe dominante e tem nas mãos o governo do país.

A penetrante análise que Marx fez do capitalismo e a sua predição do caminho que este seguiria revelaram-se admiravelmente exatas à luz de uma multidão de fatos sobrevindos após a sua morte. As repetidas crises que ele tinha predito sucederam-se cada vez mais graves. O alucinado esforço da classe burguesa em expansão para granjear novos mercados foi amplamente demonstrado pelos sucessos da China, África, América Meridional e Central.

Quando a segunda edição de O Capital foi publicada em 1873, Marx enviou um exemplar a Darwin, que lhe respondeu como segue:

 

"Presado Senhor:

"Agradeço-lhe a honra que me fez enviando-me a sua grande obra sobre o Capital. Desejaria de todo o coração ser mais digno do presente, compreendendo melhor este profundo e interessante assunto da economia política. Apesar da grande diferença que existe entre os nossos estudos, creio que ambos visamos ardentemente o progresso do saber; e isto virá, por certo, a concorrer para a maior felicidade humana. Subscrevo-me, meu caro senhor,

Seu admirador sincero

Charles Darwin.”

 

Na quadra final da sua vida, a pobreza fez-se menos dura e Marx pode abandonar-se a uma das prerrogativas da velhice: a bonomia [Osório diz: “característica ou procedimento próprio de pessoa bondosa, sem afetação e sem malícia.”]. Alargou o seu círculo de amigos, tornando-se um homem mais brando e menos combativo.

Mas a velhice de Marx não foi toda de rosas. Assistiu à dissolução da Internacional, graças à tática funesta de Bakunin. Houve constantes discussões com seus amigos sobre pontos de doutrina. Marx esforçava-se por seguir a linha reta traçada em sua teoria, sem tolerar jamais as tergiversações utópicas e as modificações pequeno-burguesas que nela procuravam introduzir liberais e adversários. Com essa belicosidade intratável, contudo, dava ele um mau exemplo aos seus discípulos, que tratavam de rivalizar com o mestre em arrogância e firmeza dogmática. Apesar de tudo isso, era ele um homem que, sob um exterior ríspido por vezes, escondia infinito amor aos que trabalham e são oprimidos.

Seus males físicos eram cada vez mais difíceis de suportar. Terríveis dores de cabeça o torturavam durante as horas de trabalho. Mas ele permanecia ativo, interessado, lutando sempre pela sua revolução. Acrescentou o russo às numerosas línguas que já possuía, e lançou-se num estudo das condições sociais na Rússia. Viu mais um movimento proletário esmagado na França, em 1870, quando a Comuna de Paris, ao cabo de várias semanas de ingentes esforços para estabelecer um governo operário, tombou ao assalto da reação. Mais uma esperança despedaçada. Marx, entretanto, nunca perdeu a coragem e a fé. Até o último momento pugnou por suas ideias. Vivendo embora no ostracismo e assoberbado pela pobreza, negava-se a qualquer transigência.

Um de seus colegas mais moços disse-lhe uma vez: "É extraordinário, camarada, que você, tendo lutado tanto, possa ser tão paciente”. Respondeu Marx: “Quando você tiver lutado tanto como eu, já não se maravilhará da minha paciência.”

Foi para ele um golpe terrível quando, em dezembro de 1881, a morte levou-lhe a esposa, a companheira dessa grande existência de provações e adversidades. Ao ouvir a notícia, Engels disse: “Marx morreu também”.

Era verdade. O golpe abateu-o, e quando sua filha mais velha faleceu um ano depois, o desgosto minou aquele possante organismo, que já não pode resistir.

Todas as suas doenças antigas assaltaram-no com redobrada violência. Ele voltou do enterro da filha para morrer. Os médicos, contudo, esperavam conservar-lhe a vida, e o próprio Marx pensou que talvez ainda pudesse terminar O Capital. Mas enganava-se.

Na tarde de 14 de março de 1883, Frederico Engels encaminhou-se apressadamente para a casa de Marx, no N.° 45 de Maitland Park Road, Haverstock Hill. Recebera um chamado urgente da família. Marx tinha sofrido um ataque cardíaco e receava-se que o fio da vida se rompesse a qualquer momento. Engels subiu a escada do gabinete. Lá estava o seu amigo, sentado numa cadeira de braços. Parecia dormir, mas ao aproximar-se da cadeira, Engels viu que Karl Marx estava morto.

 

Fonte: Arquitetos de ideias, Ernest R. Trattner, tradução de Leonel Vallandro, Globo, Porto Alegre, 1944, p. 224/250.

 

 

escultura Vitória de Samotrácia 2

Mito: verdade e fantasia.

 

A mitologia helênica é uma das mais geniais concepções que a humanidade produziu. Os gregos, com sua fantasia, povoaram o céu e a terra, os mares e o mundo subterrâneo de divindades principais e secundárias. Amantes da ordem, instauraram uma precisa categoria intermediária para os semideuses e heróis. Grandes observadores, criaram novos nomes e figuras para os diferentes fenômenos da realidade natural. A mitologia grega apresenta-se como uma transposição da vida em zonas ideais. Superando o tempo, ela ainda se conserva com toda a sua serenidade, equilíbrio e alegria. Prodigamente, alimentou a literatura e as artes através dos séculos. A cultura ocidental deve-lhe muito do espírito e do sentido, senão do próprio fato de existir.

Os gregos não foram grandes políticos, nem criaram, militarmente, nenhum império coeso. Admite-se mesmo que seu espírito crítico deve ter contribuído para sua fragmentação política em um punhado de pequenos Estados. Mas levou-os, ao mesmo tempo, à contemplação da vida, do mundo, do homem, para perguntar: qual é a origem dos seres?

A resposta obtida não visava ao Nada, nem a um deus criador, mas a um espaço aberto, chamado Caos, onde existe matéria informe à espera de ser organizada. Não podiam chegar ao Nada, porque para os gregos o Nada é impensável. Mesmo sua matemática ignora o zero. “Do não-existentenada pode nascer e nada pode desaparecer no nada absoluto”, diz o filósofo Empédocles (495?-435? a.C.). Não chegaram à ideia de um deus criador, pois perceberam que tudo o que existia, embora mostrando-se regido por uma força vital única, apresentava várias formas, diferentes maneiras de ser, múltiplas funções, graus infinitos. Um deus criador único, segundo eles, não poderia ter deixado escapar uma variedade tão imensa e até contraditória de fenômenos, sem perder ele mesmo, deus único, a sua unidade criadora essencial.

Portanto, conceberam o Caos, algo já existente, massa rude e carente de estrutura, onde forças intrínsecas e latentes poderiam, se organizadas, produzir e perpetuar a vida. O Caos não é, pois, a desordem, a confusão. É a possibilidade de tudo. A sua ordenação não foi providenciada por um deus operando de fora. Ao contrário, os próprios deuses nascem, de alguma maneira, dessa matéria. Pois é a Terra — condensação da matéria - que, em amoroso amplexo com o Céu, dá origem às divindades primordiais.

O homem também nasceu assim. Por isso, o poeta Píndaro (518-446 a.C.) canta: “Igual é o gênero dos homens ao dos deuses, pois todos tiramos a vida da mesma mãe; apenas, uma força completamente diferente distingue os deuses".

A força que ordenou o Caos deixou nas entranhas da Terra uma multiplicidade de poderes geradores, que engendraram todas as formas existentes na superfície terrestre: seres vegetais e animais, trazendo cada qual dentro de si o eu próprio dáimon (força misteriosa). A vida e suas manifestações são obra de um dáimon, que elas guardam como elemento responsável, também, por sua maneira de ser.

Aqui se encontram as raízes do mito, como tentativa de penetrar, pela imaginação, os esconderijos do que não se explica de outra maneira: o mistério da existência.

 

O QUE É MITOLOGIA

 

Com a palavra mitologia designam-se dois conceitos: o conjunto de mitos e lendas que um povo imaginou e o estudo dos mesmos. A palavra vem do grego mythos, significando fábula, e logos, tratado. O conceito de fábula não nos deve induzir a crer que o mito seja uma ficção caprichosa da imaginação. Dentro da narrativa mítica esconde-se um aspecto, um núcleo, que encerra uma verdade. A fábula, pelo contrário, refere-se a acontecimentos realmente imaginados e que não modificam a condição humana como tal. O mito relata uma "história verdadeira”, na medida em que toca profundamente o homem — ser mortal, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, submetido a acontecimentos e imprevistos que independem de sua vontade. Dizer-se que sob uma forma “fabulada”, imaginária, a mitologia narra uma história do homem através dos milênios, não seria afastar-se muito da verdade.

É a história da criação do mundo, do homem, de múltiplos eventos cuja memória cronológica se perdeu, mas que se preservaram em uma memória “mítica”.

Para a consciência mítica, tudo deve ter tido a sua origem. Se esta origem ficou encoberta pelas trevas do tempo e do mistério, isto não significa que não possa ser recuperada pela imaginação. A realidade das coisas está aí a demonstrar a repetição das origens nos ciclos da vida. A temporalidade dos acontecimentos pouco interessa. Interessa, sim, o fato de que eles se repetem: e por isso são perenes.

O mito consiste nesta “história perene": é a história dos acontecimentos que são eternos porque se repetem. Reconhecendo em cada ato cotidiano uma participação nos grandes ciclos da vida que não são mais que a repetição dos ciclos-modelo narrados pela mitologia –, o homem sente-se participar da grande eternidade mítica, e liberta-se de sua transitoriedade. Integrado em suas origens, ele consegue, senão propriamente sobreviver, viver integralmente. Dentro da mentalidade mítica, a própria morte pode fazer sentido: é o fim da última repetição, e, por isto mesmo, a suprema reintegração nas origens.

Mas esta reconciliação do homem com a vida e com a morte (uma impossível sem a outra) mal pode distinguir-se da integração total com a natureza, especialmente a natureza desde as mais primitivas até a viva. Através da mitologia mais moderna de suas formas, disfarçada em ficção científica – , sempre o homem procurou compensar a distância que o separa, cada vez mais, do universo irracional. Este abismo, o mito busca preenchê-lo, ao misturar todas as origens. Não apenas do mundo e do homem, mas também dos animais e das plantas: e tudo o que nasce, vive, é sexuado e organizado, se desfaz e morre – mas volta e continua.

Devido a seu caráter fundamental, o mito conserva até os nossos dias vitalidade e presença grandiosa: ele trata dos mesmos problemas existenciais, morais e sociais – continuam a afligir a humanidade. Por isto, o homem não deixou de criar novos mitos, muito embora tenha pisado na Lua.

Mircea Eliade, em seu trabalho Mito e Realidade, define de maneira exemplar a estrutura e a finalidade do mito: “De modo geral, pode-se dizer que o mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, 1) constitui a História dos atos dos Entes Supremos; 2) que essa História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere à realidade) e sagrada (porque é obra dos Entes sobrenaturais); 3) que o mito se refere sempre a uma “criação”, contando como algo veio à existência, ou como foram estabelecidos um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar; essa a razão pela qual os mitos constituem os paradigmas de todos os atos humanos significativos; 4) que, conhecendo o mito, conhece-se a “origem” das coisas, chegando-se, consequentemente, a dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é “vivido” ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação; 5) que, de uma maneira ou de outra, “vive-se” o mito, no sentido em que se é impregnado pelo poder do sagrado, que exalta os eventos rememorados ou citualizados".

 

O MUNDO DOS DEUSES

 

Os primeiros mitos brotam, pois, da projeção imaginativa que o homem faz das máximas funções da vida: nascimento, amor e morte; maternidade e paternidade; virgindade. E sintetizam tudo o que o homem, mediante a inteligência e o sentimento, conseguiu conquistar em face de uma vida que não solicitou, de uma morte que o amedronta, de um amor que o domina e de uma natureza cujos fenômenos (sol, chuva, vento, cataclismos, doenças) o assombram, ou o aniquilam.

A mulher que gera torna-se figuração da mãe universal, e a mesma divindade, por analogia de função, passa a presidir aos nascimentos da natureza toda, e é venerada como genitora e consoladora, como Mãe Imortal. Será Gaia, a Terra, e depois, Deméter. De modo semelhante, a função de pai será assumida por Urano, depois Cronos, e, finalmente, Zeus (Júpiter), consagrado o pai dos deuses e dos homens. As demais relações, diretas e indiretas, com a existência e mundo tomam a figura de outros deuses e semideuses, que habitam o Olimpo, a superfície ou as entranhas da terra. Ao lado dos deuses familiares surgem os da guerra e da paz, da lavoura e dos navegantes, figuras as mais variadas que se vão condensando como reflexo de desejos, necessidades, fatos históricos, situações sociais e econômicas. Elas são a expressão profunda dos aspectos básicos da condição humana em si e das dimensões que esta assume no ambiente e no tempo.

Os deuses, por isto, compartilham com os homens alegrias, ódios e outros sentimentos. Zeus, apesar de sua majestosa paternidade, mostra-se fraco em face da paixão amorosa, e ama diversas mortais. Hermes (Mercúrio), o mensageiro dos deuses, pratica furtos. Ares (Marte), protetor das cidades, estimula guerras e carnificinas. Afrodite (Vênus), deusa do amor que tudo vivifica e da beleza que tudo sublima, trai sem cerimônia o marido Hefestos (Vulcano), deus do fogo. A Eros, que o mito primordial identifica com a força ordenadora do Caos, opõe-se Éris, a Discórdia, que tudo desagrega. E, para conservarem a beleza e a juventude eternas, os imortais do Olimpo alimentam-se de néctar e ambrosia.

Ao se afirmarem na Grécia as artes plásticas (séc. VIII-VII a.C.), essas figuras elementares, que até então flutuavam na imaginação de todos e no canto dos aedos, começaram a encontrar uma interpretação realista. Tão forte, porém, era o símbolo que as vivificava, que a imagem artística, materializada no mármore ou na pintura, não eliminou a concepção transcendente da divindade; pelo contrário, perenizou-a.

Esta fixação artística do mito não significou, entretanto, sua estagnação. Enquanto a civilização grega passava por transformações radicais, também o mito se modificava, em resposta às novas condições econômicas e psico-sociais. Explica-se, assim, como um mesmo mito – ou um mesmo deus tenha, ao longo do tempo, adquirido uma multiplicidade de significados e atribuições que, hoje, são difíceis de compreender, ou parecem contraditórios. Assim também nasceram ou foram importadas outras lendas, que vieram combinar-se com os mitos primitivos, tornando ainda mais complexo e mais rico o mundo mitológico dos gregos.

Percebe-se, por exemplo, que os deuses que aparecem nos grandes poemas de Homero (século IX a.C.), Ilíada e Odisséia, já não são exatamente os mesmos das tradições anteriores. São mais diretamente interessados nas questões humanas e gostam de intervir nas vicissitudes dos mortais. Assim em Hesiodo (século VIII a.C.), autor da Teogonia (e do tratado Os Trabalhos e os Dias): quando apresenta a genealogia dos deuses gregos, nota-se a tendência a colocar uma certa ordem na confusa família das divindades, usando de um critério que muito reflete as condições econômicas e sociais da Grécia agrária daquela época. Já em condições diversas, nos séculos VI e V a.C, quando filósofos e dramaturgos manipulam a matéria mítica, deuses e heróis depõem o halo de superioridade de que os cercara o mito primitivo.

 

MITO E RELIGIÃO

 

“Viver o mito” implica uma experiência religiosa. Todavia, no caso específico dos gregos, é necessário esclarecer que o mito não se identifica com a religião, embora as afinidades e os encontros sejam íntimos e frequentes. A religião pressupõe um corpo de doutrinas, de regras, de crenças e práticas autorizadas ou impostas e aceitas por todo um grupo de modo quase uniforme. Tudo isto, inclusive, pode ter sido “revelado” pelo Ente Superior e codificado num Livro Sagrado, que serve de orientação para a conduta humana frente ao Poder extraterreno e sobre-humano.

A religião estabelece, portanto, um vínculo individual e social com o Poder concebido como transcendente. O mito grego, ao contrário, não liga o homem à divindade, de forma a criar entre os dois uma relação necessariamente doutrinária e normativa. O homem grego pode até questionar os deuses que imaginou, sem com isto sentir-se “em pecado” ou sacrílego. O conceito de pecado é estranho à sensibilidade grega. Uma falta contra a divindade não difere muito da falta contra outro homem. Os deuses não criaram a moral, logo, não podem exigi-la. O sacrilégio que o homem possa cometer contra um deus, subtraindo, por exemplo, algum objeto destinado ao seu culto, não é ato diferente, por sua natureza, de um furto praticado na casa de uma pessoa. É uma ofensa à justiça, que regula os deveres para com os outros, uma ação imoral, porém não constitui desobediência a um mandamento divino.

Em face disto, não há, para o grego, o sentimento de contrição, o tormento interior pelo qual se invoca o deus para implorar-lhe o perdão dos pecados. O homem grego conhece, isto sim, o arrependimento, o desejo de emendar-se e assim melhorar sua natureza. O mito não leva a mais que isto.

"Viver o mito" implica, portanto, esse tipo de experiência: conhecer-se a si mesmo, como estava escrito no frontão do templo de Apolo, em Delfos. Experiência que deve ser entendida mais no sentido naturalista do que propriamente como experiência religiosa. O homem segue a sua natureza, nela encontra a força para modelar sua vida. Pelo uso que fizer desta força, ele é responsável diante de si mesmo, e não da divindade, à qual não são aplicáveis nossos critérios morais.

Vale recordar que é a vida, em toda sua variedade e multiplicidade, que toma forma no mundo dos deuses helenos. Quando o filósofo Tales (640? - 547? a.C.) disse que “tudo está repleto de deuses”, não entendeu referir-se a entidades abstratas e distantes que, num determinado momento, tivessem resolvido criar, organizar e dirigir o mundo. Quis significar a força maravilhosa da natureza, que dá forma a tudo em vista de um fim. Em última análise, o dáimon.

Quem, na Grécia, primeiro colhe esse princípio “demônico(não “demoníaco”, pois nada tem a ver com o Demônio dos cristãos) não é a religião, é o mito. É aquela, entre os gregos, que decorre deste. Por esse motivo, na Hélade, nunca houve um Livro Sagrado, revelado, como aconteceu, por exemplo, entre os judeus, egípcios, hindus, assírios. Os deuses gregos não podem revelar nada aos homens, porque “igual é o gênero dos homens ao dos deuses”. O mito não deixa de expressar profundos anseios religiosos, aspirações morais, necessidades de aperfeiçoamento espiritual, porém não chega a fixar um esquema de leis, prometer prêmios aos bons e castigos aos maus, em bases normativas e constantes. Nem promessas de salvação e ameaças de danação eterna.

Em que consiste, portanto, o mundo divino dos helenos? - pergunta o helenista Max Pohlenz. E responde: “É o mundo em seu conteúdo essencial, a totalidade das forças que nele operam; é a vida contemplada, numa multiplicidade de figuras excelsas e imortais”. A religião grega partirá deste substrato ao ditar as normas de conduta moral para o homem, conferindo aos deuses a figura humana, sem desligá-los da ordem da natureza e das coisas usuais da vida.

Apolo, por exemplo, não é apenas o deus da luz (“Fóibos”), da beleza harmoniosa, da profecia, mas ainda o “Boedrómios” (o socorredor), o “Aguiéus” (patrono das ruas e das estradas), o “Delfínios” (favorável à navegação e ao comércio marítimo), o “Nómio” (protetor dos pastores), o “Sminteo” (destruidor dos ratos), o “Thargélios” (que faz amadurecer os frutos). A religião grega não conhece a experiência mística das religiões orientais, nem o messianismo da judaica. Permanece ligada ao mundo dos seres naturais e das relações diretas entre o cotidiano e o transcendente.

Escavações arqueológicas e profundos estudos filológicos informam-nos, hoje em dia, que a quase totalidade dos deuses superiores da mitologia grega não são autóctones, mas importados de outros povos. Entretanto, esses deuses adquiriram os caracteres específicos e originais da inteligência especulativa dos gregos, tornando-se inconfundivelmente helenos.

Quando os romanos entraram em contato mais íntimo com a civilização grega (século III a.C.), assumiram esse espírito da religião helena, e grecizaram seus deuses, a tal ponto que não é fácil distinguir dos habitantes do Olimpo os protetores da Urbs, Roma. Júpiter, ao identificar-se com Zeus, conservou seu nome latino; assim também Vênus com relação a Afrodite, Marte a Ares, Netuno a Poseidon, Ceres a Deméter, Juno a Hera, Vulcano a Hefestos, Mercúrio a Hermes, etc...

Poucos foram os aspectos latinos que neles permaneceram: a estrutura do mito e a concepção religiosa que os romanos encontraram na Grécia correspondia melhor, parece, ao seu senso prático das coisas e da vida. Por esta razão, pode-se empregar o nome latino para indicar uma correspondente divindade grega, embora a origem, a simbologia e a própria lenda mítica não sejam totalmente idênticas.

 

OS DEUSES NAS ARTES

 

Nos poemas homéricos, o conceito de beleza vincula-se ao resplandecente, ao brilhante, ao vivo, ao claro, ao branco, ao dourado, ao vermelho, ao rosado. Há a beleza do que é elevado: das nuvens, do céu, das montanhas, das águas enfurecidas do mar e, no plano espiritual, do altivo, do digno, do nobre. Há a beleza do numeroso, do grande, do largo, do profundo. Há a beleza do juvenil, do delicado, do florescente, do gracioso, e, por contraste, do forte, do inquietante, do inexorável. A civilização dos tempos de Homero ama a beleza plástica dos palácios, das armas e dos barcos, e coloca em evidência a beleza do canto, da dança e da música-prelúdio do grande teatro grego dos séculos sucessivos.

Tudo se liga às manifestações do mundo que está ao redor, de onde chegam ao homem os efeitos das forças que nele operam. É fácil ver que o conceito de beleza está envolvido de mistério, tanto quanto a luz, as cores, as dimensões das coisas, as proporções dos objetos, as qualidades visíveis e audíveis. A beleza é tão divina quanto os deuses, e por isto é representada por muitos deles, sob todos os seus diferentes aspectos. "Tão fascinante”, se dirá, “como o nascimento de Vênus da espuma do mar; tão atraente como a Aurora que é perseguida pelo Dia, da mesma maneira que Apolo persegue Dafne; tão terrível como Júpiter quando lança os seus raios; tão delicada como Diana quando anda pelas selvas sob o luar; tão fecunda como Ceres, a deusa das messes...”

Se, pois, o mito foi o esforço do homem para captar a natureza e chegou, assim, a criar os deuses, a beleza, para os gregos, é mítica síntese da harmonia, da medida, da ordem dessa mesma natureza, que os deuses mais fortes e imortais — possuem em graus e condições diferentes. Aos homens resta imitar o natural para alcançar o belo, deixando que os deuses lhes ensinem os meios para fazê-lo. Um poeta que canta é inspirado por Apolo e as Musas, porque “graças às Musas e a Apolo há na terra cantores e músicos”, diz Homero na Ilíada.

O conceito de arte, para os gregos, enfeixou-se na imitação da natureza e permaneceu assim; ainda quando o mito e os deuses passaram a ser objeto de análises filosóficas, nem sempre devotas, como as dos sofistas (século V a.C.), ou matéria do drama trágico e cômico, nem sempre reverente, como as tragédias de Eurípides (485? - 406 a.C.) e as comédias de Aristófanes (4482-388?a.C.), Platão (427?-347? a.C.) e Aristóteles (384?-322 a.C.), os maiores filósofos gregos, apesar de cada qual ter dado um matiz diferente ao sentido do termo, insistem em que a arte é mímesis – imitação. E por muitos séculos este conceito norteou princípios estéticos e técnicas artísticas.

As primeiras obras que conhecemos da grande escultura grega (séculos IX-VIII a.C.) são estátuas representando deuses com as atribuições que o mito lhes conferia. O mesmo acontece com as primeiras construções arquitetônicas, que parecem ter sido as dos templos. Vasos ornamentais ou de utilidade cotidiana, feitos de argila cozida, estão embelezados por cenas mitológicas. Utensílios domésticos e objetos de uso pessoal (armas, vestes, enfeites de mulheres e crianças) estão decorados da mesma forma. A literatura grega alimenta-se quase exclusivamente de mitos. E sem o mito não haveria o grandioso teatro de Ésquilo (525-456 a.C.), Sófocles (496? -406? a.C.), Eurípides, Aristófanes e Menandro (342-293 a.C.).

Infelizmente não é conhecida a música dos gregos, a não ser por referências indiretas. No entanto, um dos maiores mitos, o de Orfeu, está centralizado justamente nesta arte, que poetas, filósofos e escritores concordaram em julgar a mais divina entre todas. Orfeu seria o inventor do canto e de vários instrumentos musicais com que atraía não apenas os homens, mas até animais e árvores.

Do imenso patrimônio artístico e cultural dos gregos, nada, talvez, existiria sem a presença fecundante do mito. Também o acervo da civilização ocidental seria bastante menos rico e expressivo, pois é dos gregos que ela tirou seus fundamentos e o néctar que a faz, continuamente, rejuvenescer. Penetrar, portanto, na mitologia grega, é remontar às origens de nossa vida intelectual, quer se expresse na arte, quer se reflita no pensamento filosófico, quer se sublime na admiração do belo, ou através do trágico, do cômico, do lírico e do romanesco. Ou, ainda, quando procuramos perguntar de novo: de onde viemos? Para onde vamos? Quem somos? A resposta talvez fosse: ainda estamos diante de um “espaço aberto”, de um Caos, que espera organização definitiva.

 

Fonte: Abril Cultural, São Paulo, 1973.

As almas dos insepultos não podiam atravessar o rio que rodeia o reino dos mortos; teria que vaguear eternamente e sem descans

 Zeus

O Mito como forma de pensamento

 

O mito é uma história perene, isto é, uma história dos acontecimentos que são eternos, porque se repetem; mas é uma história diversa da que conhecemos, pois ela se refere sempre a um tempo que não é irreversível, a uma temporalidade, que se elimina pela participação no sagrado, a um "tempo circular".

O mito não é uma forma de pensamento própria dos povos primitivos, das crianças e das pessoas de pouca cultura, senão que é uma categoria eterna do pensamento racional. [Osório diz: daí vem o arquétipo como “padrão lógico atemporal” do pensar]

O mito, portanto, é um fato vivo, autêntico, que acompanha os povos em todo o seu ciclo de vida. Uma vez aflorado não permanece em sua forma primitiva, mas varia, desenvolvendo-se, primeiro oralmente, e depois fixado na escrita.

Seguem os povos em suas migrações, propaga-se de mitologia a mitologia, de religião a religião, dilatando-se ou diminuindo por influência de outros cultos, ou aliando-se aos sobreviventes e esgotando ou haurindo o seu acervo tradicional. Finalmente, adapta-se ao meio para onde é transplantado, adquirindo feições locais, pois o mito é profundamente popular e nacional, encontrando, nas representações figuradas, matéria para a sua transformação.

Como se vê, abordar diretamente o problema do mito é uma tarefa difícil, já que, através da História da Cultura, ele se apresenta verdadeiramente com aspecto proteiforme, isto é, muda de forma com frequência, e é, ao mesmo tempo, global: ele engloba todos os elementos de uma atuação ou ação. [Osório diz: Proteu era um deus que tomava a forma que ele desejava].

O mito é uma totalidade que não se pode dividir sem destruir; é uma estrutura inatingível racionalmente. Daí qualquer análise racional do mito trazer sempre, em seu bojo, o risco de despojá-lo de sua unidade fundamental.

Na realidade, o mito tem pelo menos duas acepções: primeiro, o sentido natural, como explicação de fenômenos naturais ordinários ou extraordinários; [Osório diz: raios, chuvas, noite, dia eram deuses] o mito é então um pensamento científico primitivo [Osório diz: na falta de uma melhor explicação para os fenômenos que não compreendia, os homens os explicavam por intermédio do mito], por meio do qual o homem explica o mundo antropomorficamente [Osório diz: pelo antropomorfismo o homem atribui qualidades suas ou de animais aos deuses]; é o que faz a mitologia: os deuses são homens divinizados. [Osório diz: Evêmero, filósofo grego, é quem fez, ao que se tem registrado, a primeira afirmativa nesse sentido: homens importantes foram tornados/transformados em deuses por obra de outros homens].

 

Fonte: "Grécia mitológica", João Ribeiro Jr., Papirus, Campinas, 1984, p.18/19.

 

P.S:. na imagem, vemos o deus Zeus (a diferença dos nomes é uma letra!) atirando raios, já que, então, o homem não tinha outra explicação para como os raios se formavam (imagem capturada de postagem de Diann Betz).

 

Fogo

Arquitetos de ideias

Ernest R. Trattner

4. Lavoisier

 

TEORIA DO FOGO

 

MAIS uma vez temos de retrogradar aos gregos, àqueles sábios antigos que tantas coisas meditaram e adivinharam. A ciência cresce por acumulações, e é sempre útil contemplar a lenta conquista de cada um de seus triunfos. De inícios modestíssimos têm-se evolvido resultados magníficos.

A teoria do fogo ilustra os progressos do esforço cumulativo.

 

2

 

Já no quinto século A. C., vemos que certos filósofos pitagóricos, especialmente Heráclito acreditavam ser o fogo a matéria básica e princípio do universo. De acordo com esse prístino conceito, a combustão consistia numa redução do corpo à sua forma elementar. Ensinavam os pitagóricos que, durante a queima, uma estrutura complexa é transformada, pela ação do fogo, em outra de constituição mais simples. A ideia de que um corpo diminue ao ser queimado implica que ele perdeu alguma coisa. Considere-se uma vela. Ao queimar-se esta, decresce-lhe o tamanho; aparentemente, uma parte do que estava contido na vela desapareceu. Esta crença numa perda persistiu até o século XVIII, corporificando-se numa alentada teoria que iludiu três gerações de cientistas. Platão, Aristóteles, Empédocles e outros pensadores de menor nomeada expenderam suas opiniões sõbre o fogo, mas as explicações dadas por eles não se baseavam na experimentação. Ponderavam, é verdade, sobre a natureza de fenômenos tais como a luz, o calor, o movimento e a eletricidade. Aqui e além, nos seus livros, depara-se-nos uma ou outra ideia que é como um relâmpago de argúcia e penetração genial. Conheciam-se, entanto, muito mal esses agentes para que os sábios da antiguidade pudessem formar deles um conceito adequado. Em particular, os filósofos não podiam estudar as relações mútuas desses fenômenos, simplesmente porque nenhum deles suspeitou jamais da existência de tais relações.

 

3

 

No capítulo anterior vimos que o fogo era considerado um dos quatro elementos. Sob o nome de fogo, os filósofos antigos e medievais reuniam tudo que participasse, real ou aparentemente, da natureza da chama. O fato de surgirem chamas dos corpos em combustão levou-os a supor que o fogo e suas manifestações fossem coisas elementares, menos palpáveis do que a água ou a terra, mas não obstante materiais.

A verdadeira natureza do fogo, porém, não foi compreendida por eles. Quando se davam ao trabalho de considerar este assunto, ou lhe atribuíam uma significação mística e semi-religiosa, ou viam-no com os olhos do chamado senso comum: que o fogo é uma substância material refinada, uma espécie de matéria extremamente leve, universalmente espalhada pela natureza. Em proporções várias e desconhecidas, a “matéria-logo” entrava na composição intima de todas as coisas. Esta concepção material, que via no fogo uma substância, foi a que vigorou durante toda a longa e tenebrosa era da alquimia, em que a teoria dos quatro elementos teve papel predominante.

É realmente assombroso, quando refletimos nisso, que o fogo descoberto pelos homens nos primeiros estádios da sua cultura, permanecesse um mistério absoluto até o século XVIII. Isto, está claro, não quer dizer que o homem não conhecesse o uso do fogo. Pelo contrário, a domesticação deste fenômeno foi uma das primeiras conquistas da humanidade, e um feito com justiça celebrado em inúmeros mitos e lendas que figuram em todos os folclores primitivos. Prometeu, indo arrebatar o fogo ao empíreo (região do fogo), é o símbolo dessa conquista.

 

Vai, porém, grande diferença de conquista a conhecimento. Um homem pode ser exímio na direção de um automóvel, conservando-se ao mesmo tempo em absoluta ignorância dos princípios mecânicos que presidem à construção e funcionamento do veículo. Durante séculos incontáveis o homem utilizara-se do fogo para cozer, para aquecimento, para iluminação, como sinal e para fins rituais. O fenômeno amalgamou-se-lhe tão intimamente na vida quotidiana, que veio a ser olhado como uma coisa trivial que não necessitava explicação.

O fenômeno da queima ou combustão é talvez o mais comezinho, o mais espetacular e o mais significativo dos processos químicos. Quando, com o progresso do saber, veio finalmente a fazer-se indispensável uma explicação científica do fogo e dos fenômenos que lhe são conexos, a melhor que se achou foi o flogisto*. Foi a solução dada pelo prof. Georg Ernst Stahl (1660 - 1734). Sendo embora um erro, ela tem lugar na história da química, como a primeira teoria elaborada por esta ciência em sua marcha triunfante para a verdade.

 

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Se o leitor quer saber o que foi a teoria do flogisto, pergunte a si mesmo: Quando uma coisa queima, que é que acontece? O prof.Stahl tentou uma explicação, em que fracassou lamentavelmente. Entretanto, essa solução abortada é um dos mais interessantes ensaios de teoria nos anais da ciência.

Stahl nasceu em Anspach, cidadezinha bávara situada uns 150 quilômetros ao norte de Munich. Os assuntos a que se consagrou particularmente foram a medicina, a química e a astronomia, vastos campos de conhecimento que começavam então a sair das brumas medievais. Leitor onívoro, Stahl acumulara já enorme provisão de saber quando recebeu da universidade de Iena o diploma de médico. Tinha 23 anos apenas, mas ninguém almejava tão ardentemente dilatar as fronteiras da ciência. Aos vinte-e-sete, esse fértil e versátil teorista tornava-se médico da corte em Weimar. Já era um veterano das batalhas do pensamento. Criadores de teorias, às dezenas, têm guindado ao plano de leis naturais coisas que não passavam de hipóteses infundadas. Fizeram-no, entanto, à custa de esforços e sacrifícios enormes. Isto se aplica, indubitavelmente, a Stahl e à sua teoria do flogisto.

O que bem cedo atraiu Stahl para o estudo do fogo foi o genuíno interesse que lhe comunicara em sua juventude aquele excêntrico mas arguto professor de química, Johannes Joachim Becher (1635-1682), autor de um curioso livro dedicado a Deus a quem ele chamava o Onipotente Químico - e escrito num singular estilo, "familiar e não obstante incisivo, que deixava o leitor simpatizante em dúvida sobre se estava lendo um autor ímpio, ou apenas irreverente, ou ainda deveras, se bem que fantasticamente, religioso." Dotado ele próprio de uma personalidade fogosa, Becher imprimiu um fascínio extraordinário ao problema da combustão, que ocupava posição central no seu pagode fantástico de especulações químicas. Mais alquimista do que químico, este extravagante adorador do fogo propôs uma teoria pessoal que iria constituir o ponto de partida da doutrina flogística de Stahl.

Este foi, porém, um pensador original, e a sua dívida a Becher é muito menor do que se tem afirmado. Descobrir predecessores não basta para explicar a gestação de uma ideia no espírito de um teorista. O encadeamento histórico pode, às vezes, resultar num erro grosseiro. Considere-se o exemplo de Dalton, Acentuar que Gassendi, Boyle e Newton acreditavam na estrutura granular da matéria é, talvez, dar uma versão ilusória do que se passou no espírito de Dalton. Somente depois de haver trabalhado por muitos anos, foi que este lançou mão do subsídio deixado por outros pensadores. Mesmo então, fê-lo quanto ao aspecto físico, e não químico, do problema. O mesmo se aplica a Darwin. Este conhecia muito mal os seus numerosos predecessores; havia já muitos anos que a teoria da evolução tomara forma em sua mente quando ele se deu conta de que outros se lhe haviam antecipado, em caminhos paralelos ao seu. Foi Stahl o criador da teoria flogística, e não Becher. Foi o seu autor, porém não o autor de muitas ideias extravagantes que ao depois se lhe agregaram.

 

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Segundo Stahl, era o flogisto um princípio inflamável que se desprende de uma substância quando esta é queimada. Quanto mais inflamável a substância, mais flogisto supunha-se que ela continha. Ao que parece, Stahl não concebia o flogisto como dotado de peso. (Foram os seus sucessores que formaram este conceito.) Imaginava-o como um fenômeno semelhante à luz, um agente que produzia efeitos variados, sem todavia possuir peso. Muitas coisas diferentes podem ser queimadas, tais como a madeira, metais, carvão, papel, pano matérias que diferem grandemente umas das outras, mas que têm em comum a propriedade de serem combustíveis. Para Stahl, isto só tinha uma explicação: essas substâncias diversas participavam todas de um princípio comum, a que ele deliberou chamar flogisto,

Deste seu hipotético “princípio do fogo” dizia estar impregnada toda substância combustível. Se queimarmos, por exemplo, um metal ou pedaço de madeira, a cinza que fica como resíduo é a substância natural, desprovida do seu flogisto. Stahl provou cabalmente, no seu modo de ver, que o enxofre é um composto de flogisto e ácido sulfúrico. E eis como o fez: tomou carvão (que supunha rico em flogisto), e com ele aqueceu ácido sulfúrico, tornando a obter enxofre. Este experimento dava-lhe uma explicação satisfatória da sua teoria. O fogo, ou a chama, foi portanto considerado como sendo flogisto livre - qualquer coisa aprisionada no seio da matéria e libertada na combustão, porque a substância que o continha sofria um processo de redução.

Algumas teorias passam por um período de angustiosa provação antes de serem aceitas. Usualmente, são estas as verdadeiras. Por singular ironia, as doutrinas falsas parecem granjear uma popularidade assombrosamente rápida. Apenas havia Stahl anunciado o princípio do flogisto, que os expoentes da química em toda a Europa apressaram-se a clamar a sua adesão. A interpretação da combustão oferecida por ele (como equivalente a uma perda de flogisto) parecia resolver um sem-número de dificuldades, além de coordenar muitas observações que até então haviam ficado isoladas. Stahl foi o grande herói do dia. Ofereceram-lhe a cadeira de medicina, química e astronomia da Universidade de Halle, e com o avultar de sua fama veio-lhe o cargo definitivo, que foi o de médico particular do rei da Prússia, em Berlim.

Na realidade, a teoria de Stahl não era mais do que o canto de cisne da alquimia. Posta no cadinho da observação, a sua aparente clareza foi-se tornando cada vez mais turva. Isto, como é de ver, não se patenteou desde logo pela simples razão de que as velhas ideais só dão de si muito de vagar, pois andam intimamente unidas a atitudes de aversão ou preferência. Confrontados com fatos que tinham sido esquecidos no ilegítimo entusiasmo pela teoria, os adeptos de Stahl inventaram toda sorte de absurdos. Não fora exatamente isso o que sucedera no caso da teoria ptolemaica? À medida que a observação descobria mais e mais fatos incompatíveis com aquela antiga doutrina, não iam os seus defensores enastrando-a de piedosas complicações? [Osório diz: com a Bíblia ocorre o mesmo processo. Ela sempre é adaptada na tentativa de corrigir suas falhas. É, portanto, um livro em constante mutação!] Primeiro tentaram coser as ideais novas no tecido antigo, resultando dar uma mescla heteróclita e disforme. Obstinaram-se depois em remendar o erro ptolomaico, em vez de procurarem lisamente saber se, em fim de contas, a sua base se firmava na verdade. Os flogisticistas, do mesmo modo, perderam seu tempo em consertar a teoria de Stahl.

Para exemplificar, consideremos um ponto particular. Para os flogisticistas, todos os metais eram substâncias compostas, formadas da cal (cinzas) do metal, mais flogisto. Quando se queimava um metal suponham eles libertava-se o flogisto encerrado 110 mesmo, ficando a sua cal. Reparou-se, todavia, em que depois de calcinado (queimado) um metal, a sua cal pesa mais do que a substância primitiva. Como explicar isto? Segundo a teoria de Stahl, a perda de flogisto devia reduzir o peso do metal queimado. Se as balanças mostravam (e por certo o faziam!) que a cal pesava mais, a inferência mais lógica seria que a cal devia ter agregado a si alguma coisa, ao invés de perdê-la.

Os mestres da flogística responderam a este argumento por subterfúgio, de duas maneiras. Primeiro, declararam que a variação de peso era assunto de somenos importância, indigno de atenção. Depois, engendraram a ideia do peso negativo, explicação baseada no princípio da levidade". Sgnificava isto que o flogisto tornava os corpos mais leves (do mesmo modo que as bexigas usadas pelos nadadores), e assim, a sua extração de um corpo deixava o resíduo mais pesado.

Sabe-se hoje, está claro, que a interpretação de Stahl e seus adeptos era precisamente o inverso da realidade: em lugar de perder substância ao ser queimado, o metal agrega oxigênio, que lhe aumenta o peso, é por isto que a cal pesa mais do que o metal. À luz do que ficou provado posteriormente, patentcou-se a absurdidade das conclusões de Stahl e dos flogisticistas. O avanço da ciência consiste em se afastar gradualmente de pressuposições infundadas. A teoria proposta por Stahl era pouco mais que uma obra de pastelaria. “Meu filho", escreveu Anatole France, "cuidado com os pastéis. Os pastéis são fictícios, adventícios. São uma massa inflada que não consegue esconder a pobreza do recheio.”

 

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Ao aquilatar a obra de um teorista, deve-se ter sempre em conta o que se sabia no seu tempo, e o uso que ele fez desse saber. É esta, sem dúvida, a única maneira justa e caridosa de julgar qualquer homem de ciência. Considerando-se a época em que viveu, Stahl foi, na verdade, um pensador engenhoso e penetrante. Como outros tinham feito antes dele, tirou quanto pôde dos limitados conhecimentos de que dispunha. No entanto, o dano que causou foi enorme. Stahl foi um guia e um desencaminhador da ciência de seu tempo. Sua teoria mistificou os investigadores por mais de cem anos. Só depois de destruída foi que se percebeu o que ela era: um monumento de engenho mal empregado. Enquanto existiu, foi uma gigantesca pedra de empeço para os espíritos mais aptos. Por fortuna, sempre houve uns poucos químicos bastante atilados para não se enredarem nos dogmas flogísticos, mas na sua generalidade o mundo científico deixou-se entravar, e o seu avanço foi retardado.

Porque se mostravam tão simplórios os mestres da química? Difícil é dizê-lo. Talvez possamos aventurar esta explicação: cada época é caracterizada por um corpo de crenças, a que se associa um complexo de sentimentos. Isto implica incapacidade de examinar e rejeitar certos modos de pensar que têm raízes profundas na própria estrutura do espírito. Parecia tão verdadeiro, tão óbvio, tão imediatamente acessível ao senso comum, que uma vela ao arder desprende de si uma chama! E assim, quando Stahl ligou a combustibilidade à presença, no corpo combustível, de um elemento constituinte chamado flogisto, o mundo acolheu de braços abertos a sua explicação. O princípio do flogisto afigurava-se uma coisa axiomática, como o venerável princípio do círculo perfeito da astronomia ptolomaica. O postulado fundamental de que o mundo, tendo sido criado por Deus, deve por conseguinte ser perfeito, combinado com a ideia da perfeição da simetria, acarretou a crença dogmática de que os planetas deviam forçosamente mover-se em círculos. Pensar de outra forma seria pura heresia. Foi só no fim da vida que Kepler se libertou do conceito do círculo como única órbita possível aos planetas. A ciência necessitou de quase um século para se desembaraçar do flogisto. Efetuada essa emancipação, inaugurou-se uma série de descobrimentos, infinita em variedade e extensão.

 

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Dos fumos dessa guerra secular de argumentos surgiu aquele semideus da ciência francesa, Antoine Laurent Lavoisier, cuja obra já foi mencionada sumariamente no capítulo sobre John Dalton. Foi ele quem ultimou a demolição da teoria flogística, mostrando ao mundo que as ideias de Stahl não passavam de uma Saará rebrilhante de áridas especulações.

Para Lavoisier, a ciência era ação e não palavras. Aos demasiado verbosos pedia sempre provas do que diziam. “Os químicos fizeram do flogisto um princípio vago”, observava com mordente sarcasmo, “que não tem definição estrita, e, por conseguinte, presta-se a qualquer explicação que se lhe requeira. Às vezes, o princípio é dotado de peso; outras vezes não... É um verdadeiro Proteu que muda de forma a cada instante. Já é tempo de assentar a química em base mais precisas.” E foi o que ele fez. Conduzindo o assalto irresistível dos fatos, desalojou o flogisto da sua praça forte, secundado pelo alcance e a profundeza das suas demonstrações. Submeteu, depois, as velhas hipóteses a um exame dissolvente. Muito antes de haver proclamado ao mundo sua teoria do oxigênio, provara a si mesmo que a doutrina de Stahl era mais uma hipótese vã naquela brenha de argumentos e réplicas que asfixiava a ciência.

Para quem conhece o mundo pelo que este é, maior se torna o assombro de ver aparecer um homem tão excêntrico que tenha a busca da verdade como o interesse supremo da vida. Qual uma rajada de vento fresco, Lavoisier varejou o mundo da química, onde aparecia escandalosamente insensível às ideias bem-amadas de seus coetâneos. Vasculhadas pela tormenta, romperam-se as teias de aranha seculares do medievalismo. Não foi a revelação, contudo, repentina nem inopinada. Os tempos estavam maduros para se formular uma teoria correta do fogo; o de que tinham mister era um gênio com instintos de um caçador de primeiros princípios, com esse faro infalível do cão que amarra a perdiz, esse “abraço robusto com que a imaginação cinge a verdade possível”.

Como Boyle, Lavoisier pertencia a uma família opulenta, e, também como ele, gozou desde cedo a influência de mestres proficientes. O panorama da ciência desdobrou-se diante dele, convidando-o à exploração. Moço dotado de talentos vários, seu espírito precoce absorveu com rapidez as matemáticas, a química, a astronomia e os assuntos públicos da França. Com a idade de 23 anos era uma autoridade em assunto de iluminação e desvanecido possuidor de uma medalha de ouro, distinção especial com que o agraciara o rei em reconhecimento do seu brilhante ensaio sobre a iluminação artificial das ruas de Paris. Aos vinte-e-cinco, era aceito membro da Academia Francesa. “Parece-me que estou vendo vossos olhos, dansarem de júbilo, agora que vosso sobrinho foi eleito para a Academia", escrevia à sua tia Constância uma amiga desta. “Como é esplêndido que na sua idade, quando os outros moços só pensam em divertir-se, ele tenha trazido grandes contribuições para o progresso da ciência e conquistado uma posição a que só chegam em geral, com enormes dificuldades, homens de mais de cinquenta anos!”

Membro da Academia, Lavoisier combinou uma vida pública e uma carreira científica de energia infatigável e constante atividade. Foi logo nomeado em diversas comissões, que pesquisavam assuntos variados. Entre estes salientava-se a questão da água potável para a cidade de Paris. A água, sob todos os aspectos, fora sempre para ele objeto de estudo absorvente. Seus vastos e acurados conhecimentos neste particular constituem um de seus muitos títulos à celebridade. A par da água, os alimentos; pois Lavoisier é considerado com justiça o pai da ciência da nutrição. Mas não eram só estes os tópicos de interesse público que reclamavam sua atenção. Paris carecia de bombas de incêndio, cujo emprego foi preconizado pelo previdente Lavoisier. Apresentou um orçamento à Academia, incluindo o custo integral da fabricação e instalação desses aparelhos, bem como uns diagramas muito exatos, que demonstravam a eficiência dos diferentes modelos de bombas. A perquirição científica de todas as coisas foi nele uma verdadeira obsessão demoníaca, levando-o a devotar-se a uma vertiginosa variedade de assuntos: o cultivo da couve, a exploração de minas de carvão, a decomposição do salitre, a fabricação do amido, os fósseis, a indústria de tapeçarias, a gravação, a tinturaria, o tabaco, os azeites, as graxas, a mármore, as fossas sanitárias, a fabricação de vidro para espelhos, os combustíveis, a nutrição dos vegetais... A lista é por demais longa.

Precisava dinheiro, cada vez mais dinheiro, para poder dedicar todo o seu tempo à ciência, aprestar laboratórios, custear experimentos, adquirir materiais caros e montar ele mesmo os seus aparelhos, por mais dispendioso que isto lhe saísse. Sendo, como era, um moço rico e independente, estes projetos não seriam castelos no ar. Mas Lavoisier dava-se conta de que os seus rendimentos não bastavam.

 

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A poucos dias da sua nomeação para a Academia, Lavoisier ingressou no mundo dos negócios, com o intuito de acrescer os seus haveres. Comprou sociedade na Ferme, empresa de financeiros que, mediante uma quantia certa, fixada sexenalmente e paga todos os anos adiantadamente ao governo, tinha o privilégio de cobrar os impostos nacionais da França. A história da companhia remontava ao século XIV; fora primeiro organizada para acudir a uma emergência temporária do governo, continuando subsequentemente a prover importante e permanente necessidade. Conforme ao seu modo de proceder característico, antes de entrar na Ferme Lavoisier fizera um estudo pormenorizado da sua história, suas operações e seu lugar na estrutura econômica geral do país. Também sabia - demasiado bem o sabia! - que a Ferme era odiada por toda a gente, não só porque o povo vê com desagrado os exatores em geral, mas também por causa das corrupções, verdadeiras e imaginárias, que de tempos a tempos expunham a companhia à malquerença pública. Os colegas de Academia de Lavoisier, na maioria, censuravam a sua aliança com essa corporação. E estavam acertados, embora fossem inatacáveis os motivos que inspiravam a Lavoisier.

De-fato, o jovem cientista acalentava projetos de utilidade para a sua pátria. Queria exercer sua influência para obstar aos abusos: membro das comissões da Ferme, poderia sugerir expedientes que acarretariam verdadeiras reformas, redundando no bem de todos. Demais, a Ferme daria vasto campo para a sua capacidade administrativa e zelo científico - problemas de agricultura, constituição dos solos, alimentos, animais, habitações, toda sorte de manufaturas, substâncias químicas, transportes. Que perspectiva de interesses práticos a aguçar-lhe o apetite! Podia um moço almejar coisa melhor? Lavoisier levava muito a sério as suas funções na Ferme.

O trabalho era árduo. O jovem atacou-o com energia e entusiasmo. Não lhe faziam mossa as longas viagens em várias regiões da França, que lhe davam ensejo de entremear os negócios com observações científicas de vária sorte. Cada vez que ele voltava a Paris para fazer um relatório, seus associados notavam-lhe o progresso, o domínio do assunto, a crescente habilidade administrativa.

No curso desses trabalhos na Ferme, Lavoisier formou estreita amizade com um colega muito mais velho, o rico e influente Jacques-Alexis Paulze, cuja formosa filha Marie andava então na primeira adolescência. Era bem conhecida em Paris a casa de Paulze como lugar de encontro de financistas, homens de Estado e economistas. Personalidades como Turgot, Condorcet e Pierre Samuel Dupont de Nemours eram vistas ali em frequentes e importantes discussões, de que se sabia haverem nascido os planos da Repartição de Estatística sobre os impostos e o comércio.

E Antoine Lavoisier começou a ir à casa de Paulze - um fausto acontecimento para Marie. Ambos eram formosos, ela de estatura baixa e com apenas quatorze anos, ele alto, atraente e com vinte-e-oito. Enamoraram-se um do outro, ocorrência que fez as delícias de monsieur Paulze. O financista pedira aos céus que sua prendada filha pudesse escapar assim das mãos de outro pretendente, o destituído e quinquagenário conde de Amerval. Após breve namoro, Marie Paulze tornou-se Madame Lavoisier a 16 de Dezembro de 1771, numa cerimônia assistida por brilhante reunião de notáveis.

 

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Os noivos foram viver na casa que lhes dera o pai de Lavoisier, na rua Neuve-des-Bons-Enfants. Tinham fartos rendimentos; o dote de Marie quase igualava as posses do marido. Passou aí nessa residência o jovem casal três anos esplendidamente felizes; foi aí que, bem cedo, Marie começou seu aprendizado como assistente, ilustradora, tradutora e secretária de seu marido. Começou também a receber, no estilo da velha França aristocrática, com uma graça sem par que tornou seus salões famosos e únicos no mundo da ciência. Em 1775 morreu o pai de Lavoisier, e nesse mesmo ano era este nomeado diretor das Fábricas de Pólvora do Governo Francês. A nomeação foi obra de Turgot, que agira inspirado pelo próprio Lavoisier: tinha este alvitrado que o governo encampasse a fabricação da pólvora, a fim de reduzir os custos e obter o produto nas condições desejadas. Até então, a indústria estivera entregue a particulares, que cobravam preços exorbitantes do governo, fornecendo pólvora de qualidade inferior. Turgot rescindiu esses contratos e criou a Régie des Poudres, uma poderosa comissão administrativa composta de quatro homens competentes. Lavoisier foi nomeado diretor. A escolha desse moço para um posto de tamanha importância recebeu ampla aprovação, em particular de Dupont de Nemours, que disse de Lavoisier: “É um homem tão conhecido por seus relevantes trabalhos de química, ciência indispensável num cargo dessa sorte, como pela energia, a competência e a honestidade de que tem dado provas na administração do fisco.”

Foi um venturoso dia para os Lavoisier aquele em que se instalaram no Arsenal. Turgot designara-lhes para residência particular uns aposentos do vasto edifício. Seria esta a morada do casal durante dezessete anos, até que a Revolução Francesa os viesse desalojar dali. Foram dezessete anos cheios, atarefados com os deveres do Arsenal, da Ferme, da Academia, não faltando também trabalhos científicos de vária natureza a ser relatados, dados a coligir, experimentos a realizar e teorias a ser minuciosamente elaboradas. Lavoisier fazia tudo isto nos intervalos de seus pareceres técnicos ao governo, das sessões das Comissões de Agricultura e de Pesos e Medidas, ao mesmo tempo que entretinha volumosa correspondência com pessoas espalhadas pelos quatro cantos da terra, e escrevia um livro que iria revolucionar a química. Múltiplas ocupações de um super-homem.

Uma das primeiras coisas que fez, ao estabelecer-se no Arsenal, foi organizar um laboratório particular, em que lhe servia de assistente a esposa. Com dinheiro de seu próprio bolso, montou as oficinas com aparelhos custosos; feito isto, franqueou as portas da casa a todo homem de ciência que quisesse comunicar-se com ele e aprender com os seus experimentos. Com o recrescer da fama de Lavoisier, seu laboratório fez-se ponto de encontro dos grandes vultos da ciência, que vinham de terras distantes para vê-lo: Priestley da Grã-Bretanha, Benjamin Franklin de América, Ingenhousz da Áustria, Fontana da Itália.

 

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Moço que era, Lavoisier animava outros moços a visitar-lhe o laboratório, assistir às suas demonstrações e por vezes a auxiliá-lo. Pierre Dupont, compreendendo o valor da oportunidade, obteve de Lavoisier que lhe admitisse o filho, Eleuthère Irénée Dupont, como assistente remunerado no Arsenal. Esse dia marca a origem da riqueza dos Dupont; porque Eleuthère, foragido de Paris na Revolução, passar-se-ia para os Estados-Unidos, com aperfeiçoados conhecimentos sobre a fabricação da pólvora, colhidos no laboratório de Lavoisier. Percebeu logo que o produto manufaturado pelos americanos era muito inferior, e, em consequência, resolveu dedicar-se a este ramo de negócios. Fundou, em 1802, em terras de Delaware, próximo ao sítio da atual cidade de Wilmington, a firma E. I. Dupont de Nemours.

Como as oficinas de Lavoisier eram dotadas dos melhores e mais modernos instrumentos, muitos jovens cientistas, franceses procuravam-nas para realizar trabalhos seus ou fazer experimentos sob a direção dele. Era-lhes Lavoisier a inspiração. Além de generoso de seu tempo e dinheiro, (em 1781 morrera-lhe a tia, mlle. Punctis, deixando-lhe todos os seus bens), mostrava uma simpatia ao mesmo tempo penetrante e atenta. Relembrando esses primeiros tempos do Arsenal, escreveu madame Lavoisier muitos anos depois: “De manhã reuniam-se no laboratório alguns seus companheiros de ciência e diversos mancebos, desvanecidos por tomarem parte em seus trabalhos. Pediam que lhes levassem ali as refeições. Discutiam pontos de ciência, e foi nessa atmosfera que se desenvolveu a teoria que imortalizou o seu autor. Ali, naquele laboratório, até ser condenado à morte pelos terroristas da Revolução, Lavoisier encarnou a sede de verdade do filósofo, o esforço do artista pela auto-expressão, a luta do explorador com a natureza, a obsessão de descobrimento do prospector e a ânsia do idealista pela suprema excelência.

 

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Como foi que Lavoisier demoliu o grandioso edifício erigido por Stahl e os flogisticidas? O primeiro golpe, desfecharam-no os seus experimentos sobre a calcinação dos metais. Stahl afirmara que um metal era uma substância composta de sua cal, mais flogisto, e seus adeptos aditavam a isto o absurdo de que o flogisto tinha peso um peso negativo, que fazia o metal pesar mais depois de ser queimado! Essencialmente, a teoria de Stahl sustentava que ao calcinar-se um metal este se convertia em cinza, desprendendo flogisto durante o processo.

A experimentação é a linguagem com que o homem de ciência interpela a natureza. Lavoisier queria uma resposta. Começou por examinar todas as fases do processo de calcinação, durante o qual se supunha que o flogisto era expelido. Em todas as tentativas anteriores para explicar o fenômeno da combustão, o que se visava era demonstrar a perda de qualquer coisa. Para os flogisticistas, a queima era um processo de decomposição. Mas, longe de verificar que o flogisto, ou o que quer que fosse, era expelido, Lavoisier descobriu justamente o contrário: o metal absorvia alguma coisa, e era esta alguma coisa que fazia as suas cinzas pesarem mais. Dez onças de chumbo pesavam mais de dez onças, após serem queimadas e reduzidas a cal. Deveriam, em realidade, pesar menos, si o flogisto fosse uma substância material.

Graças a repetidos experimentos, a cuidadosas pesagens de seus reagentes e produtos de reação durante um período de onze anos, Lavoisier concluiu por ser o oxigênio essa “alguma coisa” absorvida - oxigênio que era tirado diretamente do ar. A cada passo media ele as quantidades das substâncias com que trabalhava. Certificou-se de que, ao serem queimados no ar, os metais, o enxofre, o fósforo, o carbono e substâncias similares aumentavam de peso, proporcionalmente ao volume de oxigênio que retiravam da atmosfera.

Estes experimentos sofreram as fantasias descomedidas dos flogisticistas. Já não podiam eles exigir de homens sérios a fé na existência de uma substância hipotética que não podia ser separada, isolada nem pesada. Lavoisier mostrou que o flogisto e suas propriedades puramente imaginárias não resistiam à prova do laboratório. A prolongada guerra contra o flogisto encaminhava-se, pois, para a vitória, não obstante o fato de ser a teoria de Stahl suficientemente aceita e suficientemente dramática para que os ânimos se acalorassem. Quando, em 1789, Lavoisier publicou o seu Tratado Elementar de Química, o mundo aprendeu que o conceito do flogisto, com todos os seus acessórios, era desnecessário, e, de mão dada com o peso negativo, ele desapareceu lentamente do campo da ciência.

Introduzindo na química a balança como instrumento de precisão, Lavoisier assentou a nova disciplina sobre os fundamentos quantitativos definidos de uma ciência exata. Vibrava, ao mesmo tempo, o golpe de misericórdia em todo aquele sistema de métodos arcaicos. A aplicação da balança aos processos químicos era a condenação inapelável da teoria de Stahl. Com a sua aguçada lógica, Lavoisier compreendera desde o início que nenhum progresso era realizável sem a possibilidade de pesar tudo o que toma parte nos processos químicos. “Costumo dizer”, declarou uma vez lorde Kelvin, “que quando podemos medir aquilo de que falamos e exprimi-lo por meio de um número, conhecemos alguma coisa do assunto; mas, quando não o podemos medir nem expressar com números, os nossos conhecimentos são fracos e pouco satisfatórios. Podem significar uma entrada em relações com a matéria, mas, seja ela qual for, achamo-nos ainda, em tal estádio, mui atrasados no caminho da ciência."

O peso e as proporções, expressos numericamente, formavam a base e a contraprova de todos os experimentos realizados no laboratório de Lavoisier. Não se deixava margem ao acaso ou a hipóteses vagas. De cada quantidade ganha ou perdida tomava-se conhecimento exato. Eis porque os resultados foram tão precisos... e tão revolucionários. Graças aos esforços de Lavoisier, a balança é hoje o instrumento simples mais essencial à química científica. A exatidão crescente de todo conhecimento químico, inclusive a assombrosa precisão a que podem alcançar as nossas balanças modernas, que acusam diferenças de um cento-e-cinquenta-milésimo de miligramo, deve-se em sua origem, mais que a qualquer outro, a esse francês do ancien régime.

 

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O criador de teorias é um homem dotado de uma combinação rara de talentos. Deve alcançar grande perfeição em diversos terrenos e precisa reunir faculdades intelectuais que não costumam andar de companhia. Há de ele tomar os conhecimentos existentes na sua época, redescobri-los, reinterpretá-los e sintetizá-los. Há de negar-se a viver no passado, se bem que deva resignar-se a buscar ali luzes para aclarar o caminho do futuro. Deve ser, sobretudo, um experimentador, "para substituir a honesta descrição dos fatos a uma explicação falaz da natureza. Em Lavoisier, a França produziu um destes gênios da teoria.

Depois de explicar a combustão, ele dedicou-se à respiração. Há milênios que os homens sabem que possuem pulmões, em comum com os outros animais, e que a respiração consiste em inalar e expelir o ar. Mas, em quanto ao que se passa dentro dos pulmões e ao que estes retiram do ar, tudo se ignorava. Por meio de experimentos, estribados na sua própria teoria do oxigênio, Lavoisier mostrou que a queima e a respiração são processos congêneres - uma, uma oxidação rápida, a outra, lenta, ambas produzindo um aumento de peso, igual ao peso do oxigênio que entrou na combinação. A respiração, em outras palavras, é uma forma de combustão. Ademais, combustão e calcinação são dois termos diferentes para expressar a ideia geral de oxidação. [Osório diz: “parafraseando” que: “Há milênios que os homens sabem que possuem mentes, em comum com os outros animais, e que o pensar consiste em ter ideias/pensamentos. Mas, em quanto ao que se passa dentro do cérebro e ao que este produz enquanto ideias, tudo se ignora.]

 

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Antes do advento de Lavoisier podia definir-se a química como “uma congérie [Osório diz: profusão ou caos, como está mais abaixo] de fatos mal concatenados por uma teoria falsa da combustão.” Com suas demonstrações, ele pôs em ordem os dados embaralhados da química, fazendo dela uma verdadeira ciência (conhecimento organizado). Devíamos aprender a ver nas teorias científicas, não só os resultados, mas os caminhos de acesso a estes. A grandeza de Lavoisier consiste, mais que em sua originalidade, na faculdade de redescobrir e reinterpretar fatos. Outros químicos terão posição mais alta como descobridores originais - tais são Priestiey, Cavendish e Black. Mas nenhum pensador de sua época o eclipsou como teorista. Tem já decorrido quase um século e meio depois que Lavoisier deu ao mundo os muitos e laboriosos frutos de seus trabalhos. Desde aquele dia do ano de 1794 em que o guilhotinaram, muitos químicos eminentes têm surgido para trazer a sua contribuição. Mas, sem embargo da vultosa obra de seus sucessores, o espírito de Lavoisier domina a química moderna: é o seu luminar.

Acontece sempre que diversos sábios se aproximam muito de uma verdade, antes de aparecer aquele que a conquistará para a ciência. Bryan e William Higgins estiveram bem perto da teoria da estrutura atômica da matéria, antes de publicar Dalton as suas explanações. É certo que Alfred Russel Wallace chegara a formular a teoria da evolução precisamente quando Darwin se preparava para lançar o seu trabalho. Ninguém, tão pouco, que esteja ao par desses fatos, poderá negar que Augustin Fresnel na França, só e desajudado, formou a ideia de que as ondas luminosas são uma vibração transversal do éter, ao mesmo tempo que o Dr. Thomas Young chegava na Inglaterra à mesma conclusão. As teorias são, muitas vezes, píncaros que escalam, por caminhos diversos, pensadores independentes e que se ignoram. Em cada caso, no entanto, é um só indivíduo o que conquista a vitória final. Os predecessores e contemporâneos de Lavoisier ajudaram a preparar o terreno; mas a coordenação das ideias que fez com que a lei e a compreensão se sobrepusessem ao caos, foi uma expressão do seu próprio gênio criador.

Porque não foi Joseph Priestley (1733-1804), em vez de Lavoisier, quem deitou abaixo o florista estabelecendo a teoria verdadeira da combustão? Porquanto, justiça seja feita, foi Priestley o legítimo descobridor do oxigênio. Numa visita feita a Lavoisier, em Paris, expusera ele ao químico francês certos dados novos relativos ao ar. Com a ajuda destes, Lavoisier achou o caminho da explicação correta. Por que foi o francês bem sucedido onde outros viram malogrados os seus esforços? A resposta que o espírito arquitetônico, uma mente capaz de elaborar fatos, e figuras, do mesmo modo que um arquiteto elabora planos e especificações. Priestley captara o fato bruto: o "ar deflogisticado”, que nas mãos de Lavoisier se apurou em "oxigênio”. O que, no espírito de Priestley, era desconexo, tornou-se no de Lavoisier um sistema coerente. O tino de descobridor daquele não pode equiparar-se ao engenho teórico deste.

É na elaboração da matéria prima dos fatos para formar o produto acabado de uma teoria que entra o fator pessoal do teorista. Com razão protestou Lavoisier contra a tentativa feita para lhe arrebatar as honras de seu feito ou reduzir-lhe o mérito de intérprete da natureza. Planejara, em seu espírito, um templo grandioso, cada um de cujos blocos duradouros ele mesmo lavrara, ao suor de onze anos de intenso labor. “Essa teoria”, declarou com ênfase, “não é, como lhe ouço chamar, a teoria dos químicos franceses, mas a minha. É uma propriedade que reivindico dos meus contemporâneos e dos pósteros”.

 

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Tão longe ficou Joseph Priestley de pressentir sequer a nova teoria ou de compreender a vasta significação do seu descobrimento, que até o seu último dia foi um firme defensor do flogisto. Ao tempo de sua morte, a maioria dos químicos havia abandonado a doutrina de Stahl. Mas Priestley, com as costas à parede, lutava ainda denodadamente pela causa perdida. Um de seus últimos atos memoráveis foi o de escrever um livro refutando Lavoisier. Intitulava-se o volume Doctrine of Phlogiston Established (A doutrina do flogisto estabelecida, 1800).

As doutrinas e crenças perimidas são como as mandrágoras, essas plantas vivas fabuladas pelos antigos, que soltavam gritos de dor ao serem laceradas. Deve-se, contudo, levar ao crédito de Priestley a sua recusa de transigir. Aqueles que acendiam uma vela a Deus e outra a Satanás, olhava-os ele com justo desprezo. Numa carta escrita a Priestley, um certo Dr. S. L. Mitchell, da Universidade de Colúmbia, envidava “Uma Tentativa para Acomodar as Disputas dos Químicos a respeito do Flogisto”. Estava disposto a admitir como verdadeiro muito do que ensinava Lavoisier, porém não queria largar mão do flogisto. Mitchell terminava sua carta com certo humorismo: “É possível que estes meus esforços sejam vãos; ou, se eles fossem capazes de operar um acordo entre as partes, eu poderia repetir-vos em fim de contas as palavras de Prior em sua “Alma”:

 

"For Dictc if we could reconcile

old Aristotle with Gassendus,

How many would admire our toil!

And yet "how few would comprehend us."**

 

Em resposta a Mitchell, Priestley escreveu agradecendo “a engenhosa e bem-intencionada tentativa de promover a paz entre as atuais potências beligerantes da química. Mas receio que hajais laborado em vão. A meu ver, não há concerto possível entre os dois sistemas”. E Priestley, dentro do seu erro, tinha razão.

Voltemos a Lavoisier.

A opinião de Justus von Liebig, um dos vanguardeiros da química do século XIX e fundador da química industrial alemã, representa uma apreciação idônea e conscienciosa. “Ele”, diz Lebig, “não descobriu nenhum corpo novo, nenhuma propriedade nova, nenhum fenômeno natural até então ignorado. Todos os fatos que estabeleceu eram consequência necessária dos trabalhos de seus predecessores. O seu mérito, a sua glória imortal, consiste nisto: em haver infundido no corpo da ciência um novo espírito. Mas todos os membros desse corpo já existiam e estavam corretamente articulados." [Osório diz: todas as palavras já foram escritas e, praticamente, todas as ideais já postas, mas a literatura continua sendo inovada!]

 

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Lavoisier foi um desses homens raros que sabem associar os fatos em combinações novas. Além de rever e estender os conhecimentos de seu tempo, modificou-lhes os postulados - a base teórica. Por que? Porque possuía uma visão clara: “pensées de la jeunesse, exécutées par l'âge mûr(“pensamentos da juventude, executados pela meia-idade). Considere-se um fato simples, como a combustão ordinária. Lavoisier tratou-a de modo fundamente diverso de todos os seus predecessores. Sabia-se, desde séculos, que nenhuma lâmpada, nenhuma vela, nenhuma chama pode arder sem ar. Stahl não o ignorava; sabia, por exemplo, que a própria fuligem (tida por ele como sendo flogisto quase puro) não podia arder na ausência do ar. Stahl, que nunca deixara de afeiçoar os fatos pelos moldes de suas hipóteses dogmáticas, explicava isto com a suposição de que o flogisto não podia separar-se de uma substância a menos que tivesse um lugar qualquer para onde ir. Tanto ele como os seus sucessores consideravam o ar uma sorte de esponja que absorvia o flogisto. Uma vela posta dentro de um vaso fechado arde durante algum tempo, apagando-se ao cabo. Os flogisticistas explicavam isto dizendo que o ar (tal como uma esponja) só podia conter certa quantidade de flogisto. Uma vez saturado, nada mais podia arder dentro dele. Lavoisier mostrou que esta explicação era ridícula por não levar em consideração que o volume do ar diminui durante queima. O mesmo quanto à calcinação: o volume do ar diminui, e o aumento do metal é igual à quantidade de ar desaparecido.

Ao compararmos a obra de Lavoisier com as tentativas de seus predecessores, vemos avultar os seus feitos em solitária grandeza. Quando começou a fazer experimentos no laboratório, o conhecimento das leis da natureza era mesquinho e incompleto. Ao morrer, deixava à química um inapagável legado de precisão, que tem iluminado todo o reino da ciência moderna. Nenhum teorista, vivo ou morto, merece mais do que ele o nome de experimentador no sentido que lhe dava Cláudio Bernard quando dizia: “Para ser digno desse nome, o experimentador deve ser ao mesmo tempo um teorista e um prático”.

 

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Não menos grandiosa que sua teoria do oxigênio é a incomparável generalização de Lavoisier conhecida como a lei da conservação da matéria - um subsídio imperecível.

A ideia da conservação da matéria fora entretida vagamente pelos antigos filósofos gregos. Arguia Empédocles, por exemplo, que no universo não há criação, nem tão pouco destruição dos elementos básicos, mas apenas combinações e transformações. Introduzida a importância do peso na ciência que cultivavam, todos os químicos admitiram mais ou menos tacitamente que, no decurso de uma reação, a soma dos pesos dos reagentes era igual à soma dos pesos das substâncias resultantes. Em outras palavras, a-pesar-de que as substâncias primitivas aparentavam desaparecer, dando lugar a outras novas, o peso total permanecia o mesmo, em cada operação, do começo ao fim.

Lavoisier realizou experimentos escrupulosos para demonstrar a verdade do seguinte: (a) não há nada, no começo, que não tenha o seu equivalente exato no fim; (b) o peso é, na natureza, uma coisa imutável; (c) nenhuma matéria se perde, porquanto toda ela pode ser acompanhada em suas transformações, de que o peso dá conta. Com o argumento irretorquível da balança, demonstrou que toda reação química é expressável por meio de uma equação, e, sejam quais forem os processos químicos que alteram as substâncias reagentes, a quantidade total destas não muda.

Eis aqui como se formula o princípio: a matéria não pode ser criada nem destruída.

 

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Se houvera escapado ao patíbulo revolucionário, Lavoisier teria dado a solução de alguns problemas que assoberbavam a química dos seus dias. Projetara ele uma série de experimentos, com sua mulher por assistente, e que deviam estender o domínio do saber humano. Sua esperança, visionava um império sobre os agentes naturais, muito além do que sonhavam poetas e videntes. Contava cinquenta-e-um anos apenas, no viço do seu gênio científico, quando foi sacrificado pelos terroristas da Revolução.

Os chefes do proletariado revolucionário da França viram em Lavoisier, não o homem de ciência, mas o comissário da odiosa e detestada Ferme. Fizeram constar que ele fingia apenas de sábio. Não era porventura um rico, um homem que recebera duas heranças, que se casara com uma mulher rica e filha desse plutocrata influente, Jacques-Alexis Paulze? Não era ele quem tinha proposto a construção de uma muralha em derredor da cidade de Paris, afim de impedir o contrabando? Lavoisier orçara em um quinto a quantidade de mercadorias que entravam em Paris por vias ilegais. Sua ideia era, pois, judiciosa; mas a tentativa de murar Paris tornou-se logo impopular. O projeto foi interpretado como um plano da Ferme para aprisionar o povo francês dentro da sua capital, e, o que era ainda mais odioso, para roubar o ar puro à cidade! Para os revolucionários, Lavoisier era o indivíduo privilegiado, pertencente às camadas superiores da sociedade, o lacaio da nobreza irresponsável, membro da Academia (também governada pelo rei e por seus áulicos) e diretor das Fábricas de Pólvora - tudo isto por amor ao ganho.

Havia muito tempo que esse despeitado e sanguinário agitador das turbas parisienses, Jean-Paul Marat (1743-1793) observava Lavoisier com envenenada inveja. Marat escrevera em 1780 um tratado de química, destituído de mérito, que apresentara à Academia. Lavoisier formava parte da comissão que o rejeitara, a pesar de uma notícia falsa do Journal de Paris, que anunciava a aprovação do livro. Marat, que publicava agora um pasquim virulento, chamado L'ami du peuple, encanzinava-se brutalmente contra Lavoisier: “Denuncio-vos o corifeu dos charlatães, o sieur Lavoisier, filho de um açambarcador de terras, discípulo do especulador genebrino, fermier général, diretor das pólvoras e do salitre, governador do banco de descontos, secretário do Rei, membro da Academia das Ciências...” assim rezava o artigo de janeiro 1791. E ainda mais: crer que esse senhorzinho, que usufrui uma renda de 40.000 libras, e cujo título único à gratidão pública é o de haver aprisionado Paris vedando-lhe o ar puro, dentro de um muro que custou 33 milhões aos pobres, e o de ter mudado a pólvora do Arsenal para a Bastilha na noite de 12 para 13 de julho, haveis de crer que ele está enfronhado numa cabala para conseguir que o elejam administrador do departamento de Paris ?... Oxalá o tivessem pendurado de um poste público no dia 6 de Agosto”.

 

"Haveis de

 

Por decreto da Assembleia Nacional, de 20 de março de 1791, foi suprimida a Ferme. Pouco depois demitia-se Lavoisier do Arsenal, mudando-se para o n.º 243 do Boulevard de la Madeleine. Vivia em constante temor por sua existência, apesar de que estivera lançando mão de sua fortuna particular para conservar a Academia em pé. Nas revoluções, os fatos sucedem-se com rapidez. O rei foi guilhotinado em janeiro de 1793. A 17 de agosto eram interditadas as portas da Academia, e poucos dias depois dava-se busca à moradia de Lavoisier.

A supressão da Ferme não pusera fim aos seus infortúnios. Nem o seu renome de cientista, nem os serviços prestados ao Estado logravam fazer esquecer a certa classe de gente que ele fora um membro daquela execrada companhia de exatores. Havia muito tempo que se denunciava a Ferme como uma caverna de salteadores que despojavam o povo; agora, no referver da sublevação social, era chegada a hora da sevícia (em grande parte injustificada). Um discurso furioso, pronunciado na Convenção Nacional, açulou o povo contra a companhia. Ordenou-se a prisão de seus funcionários, chamados os Fermiers Généraux. O apelo de Laivoisier ao Comité du Salut Public não teve resposta e ele foi arrastado para a fria e apinhada prisão de Port-Libre, junto com os seus consócios da Ferme, inclusive o sogro, Paulze.

Lavoisier escreveu a Marie. Separava-os agora o braço cruel da Revolução. Ele aconselhava-lhe que poupasse suas forças, não se gastando em tentativas inúteis para lhe devolver a liberdade. Não obstante o desconforto da prisão, fazia-lhe saber que estava preparando suas memórias sobre química. Diversos apelos foram feitos para que soltassem Lavoisier, mas todos em vão. Podia-se, sem dúvida, fazer mais ainda em favor dele, mas os seus amigos, temendo por sua própria segurança, negaram-se a agir. Por fim, madame Lavoisier fez uma tentativa derradeira para salvar o marido do Tribunal Revolucionário, transgredindo a lei que vedava aos ex-nobres a entrada em Paris - mas embalde.

O decreto de 5 de maio de 1794 mandava que os Fermiers Généraux fossem conduzidos perante o Tribunal Revolucionário. Na manhã de 7 de maio esses homens foram submetidos à inútil formalidade do interrogatório, um espetáculo de sórdida hipocrisia. No dia seguinte, às dez horas, foram trazidos à presença do mesmo tribunal, presidido por Coffinhal. O júri, sem perda de tempo, declarou os réus culpados. Conta-se que Coffinhal disse nessa ocasião a Lavoisier: “La République n'a pas besoin de savants" (A República não precisa de sábios).

Os Fermiers Généraux foram decapitados numa guilhotina erguida na Praça da Revolução. Paulze foi o terceiro, Lavoisier o quarto. Morreram a 8 de março de 1794 e seus corpos foram jogados a covas anônimas, no cemitério de Errancis.

 

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Dois anos após a sua morte, os franceses revogaram a sentença de Coffinhal. É verdade que já não se podia restituir a vida ao corpo mutilado de Lavoisier, mas a nação procurou expiar solenemente o seu erro com uma impressionante cerimônia fúnebre. Pronunciaram-se em público orações em sua honra, e os amigos franceses e estrangeiros choraram-lhe a morte. “O maior crime da Revolução Francesa não foi a execução do rei, mas a de Lavoisier”.

Por ocasião de sua morte trágica, estava Lavoisier preparando uma edição de suas obras coligidas, com o auxílio de sua esposa e fiel colaboradora, tanto na esfera literária como na científica. Fora um casamento ditoso, comparável à felicidade fecunda desse outro grande teorista francês, Luís Pasteur, e sua companheira de trabalhos. Foram mulheres excepcionais, essas esposas de teoristas clássicos.

O justamente famoso Tratado Elementar de Química de Lavoisier, que aparecera cinco anos antes da sua execução, contém uma série de diagramas e ilustrações, desenhados e gravados pela bela e talentosa Marie. Esse casamento foi, na verdade, uma associação fora dos moldes habituais. Ficando viúva, ela dedicou-se a reunir sozinha os papéis do marido, e os deu à luz do público sob o título Mémoires de Chimie (1805).

Era um terno tributo ao morto.

 

Fonte: Arquitetos de ideias, Ernest R. Trattner, tradução de Leonel Vallandro, Globo, Porto Alegre, 1944, p. 96/116.

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* Este termo provém de uma palavra que quer dizer queimado.

** Ah! meu caro, se pudéssemos reconciliar o velho Aristóteles com Gassendi, quanta gente havia de admirar a nossa obra! Mas quão poucos nos iriam compreender!

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