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Luciano de Samósata, um dos amados malditos!

 

ESTE LUCIANO, OU A LITERATURA EXECUTADA COMO UM ASSASSINATO.

 

 

DE VEZ EM QUANDO a literatura acolhe certas vozes de uma qualidade tão particular que se fazem enigmáticas. Quando tal sucede (por sua ou alheia culpa) vemo-las ― se lá ficam ― disputar o assento à custa de poderosíssimas originalidades, tão sonoras que é impossível negá-las. Só por esta imposição paralela forçam o seu caminho difícil entre coros e grupos, até ao brilho solitário e perigosamente sustentado ― melhore pior segundo oscilações no humor das épocas e dos juízos. Esta viagem, que reconhecemos em autores injustiçados; antes que o comércio os recupere chamando (malditos), é também a de Luciano dito “o de Samósata” (grego do Séc. II, como adiante se verá), tolerado na história “oficial” das letras por irreprimível veneração da Antiguidade Clássica mas aferido ― sempre ― numa leitura “de moral direta” que a tradição humanista e cristã lhe impôs mas raro se adapta ao desenho da sua contraditória e, assim, desconcertante bipolaridade. Por esta via (que passa nas carteiras universitárias e ainda hoje decide com eficácia quais são os autores abrangidos pela coutada da cultura “nobre” nos chega um Luciano filtrado, diminuído até à sua própria miragem, para o qual se inventaram a designação de céptico e um perfil agressivo-indiferente, a vocação de monstruoso panfletário que em si recolhe os signos exteriores do panfleto e os esvazia ― suicidando-se ― de todo o exemplo.

 

Ernest Rénan1, acadêmico não poucas vezes mais desenvolto do que aconselharia a sua cátedra, talvez tenha sido o primeiro a simplificá-lo e despejá-lo dos trajos que lhe não convêm, valorizando-o no direito ao riso total e mortal, quase sem regras, admirando-o por isso. São dele estas palavras: "Na segunda metade do Séc. II não vemos senão um homem que, superior a toda a superstição, tem o direito de rir das loucuras humanas e delas sentir piedade. Este homem, o espírito mais sólido e interessante do seu tempo, é Luciano." E mais adiante: "Luciano aparece-nos como um sábio perdido num mundo de loucos. Não odeia coisa nenhuma: ri de tudo, excepto da virtude séria".

 

Esta a imagem mais persistente que nos fica de Luciano, a qual se acrescenta pela faculdade científica da imaginação ― única, como dizia Baudelaire, a compreender a analogia universal.

 

Como viveu mal sabemos, e é pena se explicava mais e de outro modo a sua obra.

 

Luciano nasceu em Samósata, na Comagena (país entre a Cilicia e o vale do Eufrates, desde o reinado de Vespasiano ligado à província romana da Síria), talvez em 125. Um episódio capital da sua adolescência, e os dados e suposições que consente, chegam-nos dele próprio no Sonho (discurso a uma assembléia). Vale a pena lê-lo:

 

"Andaria eu nos quinze anos, e já não frequentava a escola, quando a urna roda de amigos o meu pai deliberou o que irra fazer de mim. Várias vozes não aprovaram que me dedicasse às letras, pois o êxito é nelas demorado e faz despesa, seja muito hábil o aprendiz. Insistiam em que eu não era rico e, aprendendo um ofício, em pouco tempo ganharia o sustento e não continuaria encargo do meu pai ou da família. Esta opinião prevaleceu, só faltando encontrar esse ofício que, além de honesto e útil, garantisse o necessário à minha subsistência. Depois de sugestões várias, condenadas ou aprovadas segundo o humor e a capacidade de cada qual, o meu pai fixou o olhar no meu tio, que estava presente e era belíssimo estatuário.

 

"Por que lhe não ensinas o teu ofício, visto ele ter para a escultura vocação?

 

"Dizia isto porque me via moldar figurinhas de cera não muito mal engendradas que já tinham sido causa, aliás, de umas chibatadas que me dera. Também a mim me não desagradava a hipótese, pois a escultura parecia mais divertimento honesto do que profissão e não deixaria de trazer-me glória, entre os meus camaradas, sempre que lhes oferecesse uma qualquer imagem de deuses, ou coisa do gênero. Foi resolvido que seria esta o meu destino e eu teria nele todas as esperanças de sucesso. Quando apareci na casa do meu tio, ele pôs-me na mão um cinzel.

"Traça ao de leve nesta pedra uma figura, para ver como te sais.

 

"Porque, lá diz o poeta, bom começo é trabalho meio feito. Mas como a pedra era delicada e a minha força muita, quebrei-a e encolerizei-o de tal forma que não resistiu a dar-me umas boas chicotadas. Comecei em lágrimas a minha aprendizagem. Voltei para casa a chorar e a gritar que o meu tio me batera por inveja, receoso de que em pouco tempo eu pudesse ultrapassá-lo. Ainda mais chocada do que eu, a minha mãe não lhe poupou injúrias. Fui deitar-me inquieto e não preguei olho, virando-me constantemente no leito".

 

Luciano regressou, porém, aos estudos. Sabemo-lo de fonte segura pelo curso de retórica que concluiu na lónia. (transformando-se neste grego dissertador e curto), da profissão de advogado que aos 25 anos exerceu em Antimoquia. Mas a tendência mais forte da sua vida iria ser a agressão vagabunda que os acasos da fantasia comandaram. Aos nossos dias chegaram ecos de brilhantes sessões oratórias nas suas andanças pelos caminhos da Ásia Menor, Grécia, Macedônia, Itália, Gálio... No início do reinado de Marco Aurélio está na Ásia Menor, no ano 163 deixa prova da sua presença em Antioquia, por ocasião da Guerra dos Partos. Mais tarde, cansado de uma vida agitada que às alegrias somava um bom número de durezas, fixa-se em Atenas 20 anos, alheio ao que ele chama "mentiras da retórica e de advocacia"2, A sua atividade literária mais intensa é desta época em que voluntariamente se marginalizou e de quase tudo troçou, congregando à sua roda os espíritos livres da cidade.

 

Já velho, Luciano sentiu novo apelo de viagens. Há indícios de que se arrastou entre cidades, vivendo à custa da leitura pública dos seus escritos e de quem comprava o brilhantismo do seu convívio (o Parasita, incluído neste livro, lança luz sobre esta forma de vida e o que constitui, numa moral "às avessas", a sua defesa). Nos últimos anos, a perda do vigor físico necessário à vida errante forçou-o (admite-se) a uma situação estável que o governador romano no Egipto lhe ofereceu como seu assistente. Sem grandes provas se diz que nesse cargo esteve até à morte, em 192.

 

Da obra literária de Luciano ficou-nos uma coleção de 86 textos breves, a maior parte de evidente carácter coisa ressalte, a partir da disparidade que (entre eles a qualidade do seu (humor) ― que permite esta edição; tão "respeitável" que alimenta com os seus Diálogo dos Mortos, a "seriedade" bisonha das Faculdades de Letras), é por certo a "irreverência" que o autor pretende motivada no "ódio à basófia, ao charlatanismo, à mentira, ao orgulho e a toda a raça de homens que tais vícios têm". Quem melhor soma as fealdades do retrato (para ele, em guerra com os valores aceitos na sociedade do seu tempo) são os filósofos, historiadores, médicos, supersticiosos, ricos, que leva à praça das letras e a todo o instante aperta no seu crivo. Às mãos de Luciano ferem-se de morte: pelo riso, a mais terrível, das armas assassinas.

 

Luciano consumava os seus morticínios lendo o que escrevia, rapando do papel depois da cela e divertindo a assistência com os seus ((panfletos)). A mesa trucidou o mundo, assassinou-o numa farsa portentosa. A muitos surpreende que evitasse, a reflexão exemplar, travasse o discurso aquém das evidências moralizadoras, numa zona de vazio disponível que lhe confere os traços de um "panfletário em falso", arreliadoramente inadaptável às regras do género e decepção de quantos teorizam "ortodoxamente" à literatura:

 

"Inventor gratuito" chama-lhe a Histoire Générale das Littératures dirigida por Pierre, Gioan (dedicando-lho, ainda assim, maior espaço do que a algumas grandes glórias das letras gregas do seu tempo);

 

"Autor incapaz de chegar ao fundo do seu pensamento", "que não faz o esforço de ser convincente), diz a seu respeito Maurice Croisset no Essai sur la Vie et les Oeuvres de Lucien;.

 

"Que prefere ficar pelo riso e nada provar, pela decisão de nada dizer", admite Clément Rosset em Philosophes à Vendre;.

 

Por este múltiplo mas coincidente juízo Luciano é investido de uma doença literária que não leva em conta as singularidades da que foi sua clientela, convivas eruditos capazes de construir ― dizemos nós ― as reticências do seu discurso. A esta luz pode a (superficialidade) do autor ficar-se por um desejo de contenção, cortesia pela inteligência alheia, já que também desajustada ela seria à excepcional cultura e à argúcia que todos reconhecem neste dissertados grego, mesmo os seus persistentes detratores.

 

O que ninguém nega é a sua constante "irreverência", divirjam embora as interpretações do profundo significado que nos propõe. Esta infeliz palavra, cuja razão de existência depende de um cerco de tabus e de intocáveis valores, em Luciano pouco mais tem feito que apoiar o cepticismo do seu rótulo. Todavia, uma descomprometida leitura deste autor não deixará de evidenciar como esta imagem enfraquece as incomodidades do seu discurso. Em Luciano, como noutros, a chamada "irreverência" (protetora máscara contra a dureza dos homens) não raro oculta e desfigura todas as nobrezas de um idealismo, essas que sonham as mais belas formas da sociedade. Por isso alguns há que em nome do realismo descem o rosto e lançam um olhar ao rés do mundo, apontando daí o sentido político da vida, e outros se expõem num voo planado e provocador cuja eficácia repousa na sua máscara transfiguradora, muita vez um riso que não reflecte menos indignação a não exige linhas menos rigorosas ao comportamento humano. Com os primeiros está a militância, com os segundos ― que talvez se não levem tanto a sério ― uma afirmação poderosa como aquela mas coexistente com os seus próprios sonhos.

 

Esta edição de Luciano, a mais vasta entra as que existem em português (qualidade pouco ambiciosa, na verdade, se raras e pequenas têm sido, e cautelosas perante a ex-censura3), ainda assim fica limitada pela dimensão que é sensato impor-lhe.

 

Os textos que integra procuram atingir o mínimo essencial da certo Luciano fortemente imaginativo e sarcástico que nos importa destacar da obra diversificada que escreveu. História Verdadeira e Lúkios ou O Burro, exemplos que abrem a colecção, são tudo o que aos nossos dias chegou deste autor sob a forma de ficção romanceada; a eles seguem o Elogio da Mosca, dissertação de quase non-sense, e O Parasita ou O Papa-jantares, o mais feliz exemplo da sátira à (Swift-antes-de-Swift).

 

Uma edição de maior fôlego não deixaria de incluir diálogos muito hábeis na construção como Os Dípsades e O Julgamento das Vogais (este com problemas quase insuperáveis de tradução), Os Amores (onde se arbitram vantagens e desvantagens das práticas hétero e homossexuais), os Diálogos das Cortesãs, O Banquete, as Cartas Croniais, ou ainda a biografia (?) O Falso Profeta onda Luciano conta, com muito espírito, a vida desse Alexandre de Abonotica a quem teve o gosto de morder a mão no instante em que ela se lhe estendeu para a homenagem de um beijo. O que aqui fica já constitui, porém, uma imagem bastante precisa da faceta que pretendemos destacar neste autor. Vejamos como:

 

A)

 

História Verdadeira é o mais célebre (fora do contexto universitário) e extravagante texto de Luciano, não raro escolhido como genuíno antepassado da ficção científica. "Crepitante e sofisticado ― diz a seu respeito Kingsley Amis em New Maps of Hell4 ― escarnece já de toda a ficção científica escrita entre 1910 e 1940". Outros o reconhecem como a primeira space opera da literatura, por exemplo Pierre Versins na sua Encyclopedie de l'Utopie des Voyages Extraordinaires et de ia Science Fiction5: "A expressão [space opera] foi inventada a partir de soap opera com sentido pejorativo e não constitui um tema, em si, tal como a Antecipação. Trata-se, antes, de uma classe de romances de ficção científica cuja maior força está na vastidão do cenário, o espaço, que vai crescendo à medida que é explorado. O primeiro dos seus exemplos será indubitavelmente História Verdadeira de Luciano de Samósata com a sua batalha entre a Lua e o Sol (cerca do ano 180); depois dele teremos de esperar por 1854 para o espaço reaparecer não como vazio entre mundos mas lugar de ação: refiro-me a Star ou Psi da Cassiopeia de Charles Defontenay”.

 

A mesma enciclopédia estabelece noutra rubrica uma tábua cronológica das obras de fundo conjectural, aí reservando o 13.° lugar à História Verdadeira, assim:

 

(?) 2000 A.C. - Mesopotâmia – Anónimo / A Epopeia de Gilgamesh

(?) 2000 - Egipto – Anónimo / O Conto Profético

1580 - // - Anónimo / O Nascimento da IV Dinastia

(?) 850 - Grécia – Homero / A Odisseia

Séc. VI - // - Aristeias de Proconeso / As Arismaspeias

412 - // - Aristófanes / Lisístrata

393 - // - Aristófanes / Assembleia de Mulheres

370 - // - Xenofonte / A Ciropédia

(?) 360 - // - Platão / Crítias , Timeu

(?) 135 - // - Iâmbulo / A Ilha Afortunada

40/41 - Roma – Virgílio / IV Bucólica

(?) D.C. - Grécia – Pseudo – Calistenes / O Romance de Alexandre

(180) - // - Luciano / História Verdadeira

 

Relativamente ao conjunto de obras que na época de Luciano constituíam o espólio literário universal (e salvo o desconhecimento de alguma que se tenha perdido, e apesar dos exemplos mais próximos de algum teatro de Aristófanes) a originalidade da História Verdadeira é absoluta. De facto, ninguém antes dela construíra um "espetáculo" literário tão surreal e livremente fantasista, tão "profético" que o diremos pré-filiado em correntes estéticas que teriam de aguardar muitos séculos para surgir conscientemente assumidas na literatura. A poderosa singularidade da História Verdadeira - lançou ― como era inevitável que o fizesse ― tentáculos a um grande número de escritores medievais e modernos. Não será muito nem descabido lembrar aqui as sombras que deixou na Utopia de Thomas Morus (1516), no IV Livro de Rabelais (1548), nas obras mais célebres de Cyrano de Bergerac (1657-1662),nas Viagens de Gulliver (1726)6, no Micrómegas de Voltaire, (1752), e a escandalosa pilhagem de que foi vítima quando Gottfried Burger publicou em 1786 a "sua" versão das Aventuras do Barão de Munchhausen.

 

História Verdadeira é uma viagem fantástica que realiza, na "prática", a solução de continuidade que as concepções científicas da época estabelecem entre a Terra prolongada no oceano fundido, ele próprio, no espaço além horizonte. O leitor de hoje, desviado culturalmente das referências sucessivas do texto, ainda assim pressente ― a transfiguração irônica de antiquíssimos relatos de viagens (muitos deles perdidos) que a literatura propôs como verdadeiros. Luciano distancia-se dos leitores não consentindo que o tomem a sério, afirmando que mente, conferindo desde a primeira página um sabor de antifrase ao título da obra. Na História Verdadeira encontraremos, porém, um mais belo desígnio: o fazer-se requisitório das superstições da sua época e, com uma gargalhada ruidosa, despedir-se do paganismo já moribundo nos seus fantasmas, nos seus deuses.

 

B)

 

Concebido num estilo de fábula oriental, o segundo romance de Luciano não revela imaginação de qualidade comparável à que o autor nos habitua na História Verdadeira. Por aqui se mantém o fantástico de acordo com tradições já sabidas na literatura da época (e depois dela insistentemente exploradas), ainda que aliado a uma violência erótica muito menos vulgar.

 

Que a sua anedota é sedutora, prova-nos o facto de Apuleio, tê-la reproduzido anos mais tarde no seu romance Asinus Aureus (O Burro de Ouro que o erudito Francisco António de Campos traduziu para português em 18477). Esta dualidade do Burro grego e latino põe o dilema (que não vai preocupar-nos) de ter Apuleio usado e ampliado o texto de Luciano, ou terem ambos bebido na mesma fonte, hoje desconhecida. Certo é que ao texto de Luciano se não encontra antecedente.

 

Na última edição portuguesa do Asinus Aureus de Apaleio, o prefaciador professor Eudoro de Sousa aborda o problema da sua gênese literária e em certo passo afirma: "Sob o título de Lúcio, Metamorfoses ou O Burro de Ouro legaram-nos as letras latinas um romance notabilíssimo, da autoria de Apuleio, cujo atrativo principal reside, ao que parece, na sua composição. A parte mais extensa (8 livros) coincide, na matéria, com outro romance, atribuído a Luciano, escrito em língua grega, e também intitulado de Lúcio. ( ...) A opinião da critica, tanto desfavorece o escritor latino, censurando-o de haver desfigurado a fábula com impertinente misticismo, quanto louva o escritor grego porque a soube converter em deliciosa sátira dos costumes da sociedade. Antiga". Ganhando Luciano neste ponto, em nome da Crítica abstrata, pende mais adiante quando o professor afirma: "Luciano, ou outro que seja o autor do Lúcio grego, explorou somente o lado ridículo de um sortilégio malogrado e das subsequentes aventuras de um mago-aprendiz.

 

Mas o autor do Lúcio latino quis trazer à superfície do acontecer um dos abismais enigmas do sem. Uma vez - mais, portanto, a tradicional (frivolidade) de Luciano, o seu gosto em ficar-se por uma sátira de superfície :e achados de bem-humorado espírito...

 

Lúkios ou O Burro preenche, de facto, o esquema geral da fábula do aprendiz de feiticeiro, que muitos ignoram encontrar-se, também ela, num diálogo de Luciano que Goethe poematizou e divulgou no Ocidente com a posterior e preciosa ajuda musical de scherzo de Paul Dukas: O Amigo da Mentira, história do aprendiz de Eucrates e da desastrosa transformação de uma vassoura em carregador de água). Um conhecimento mais vasto da obra literária de Luciano, e do significado que nela assumem outras metamorfoses, conduzem-nos, porém, a melhores conclusões.

 

Sobe este aspecto, importante será o diálogo O Sonho ou O Galo, aonde um galo que foi Pitágoras se transforma sucessivamente em peixe, cavalo, rã e até esponja para concluir que o homem não só desmerece o título de mais perfeito dos animais como é o único a teimar na inconcebível tentativa de transgredir os limites que a natureza lhe fixa. Vítima desta mesma teimosia, Lúkios faz-se burro e é castigado pelos homens. Tal condição, porém, que o humilha no seu interior de homem, oferece-lhe oportunidade rara de avaliar o mundo sob uma perspectiva privilegiada que é simultaneamente humana (pala razão) e animal (pelo suporte orgânico), conhecimento contraditório mas completo que o arrasta aos limites da descrença. Elucidado sobre os homens, Lúkios volta-se para os deuses e dá-lhes graças no final da narrativa. Mas acontece que sobre deuses também ele cabe bastante, ao correr das suas andanças de asno...

 

Chamando Lúkios à personagem do seu romance, terá Luciano pretendido sugerir-se, ele próprio, nesse impasse de cepticismo e descrédito? Segundo Pierre Grimal8, Lucianos deriva de Lucius, nome romano, A equivalência Lúkios/Lucianos bem pode, assim, admitir-se como indício de O Burro conter uma transfigurada verdade autobiográfica.

 

C)

 

Numa carta-dedicatória a Thomas Morus, Erasmo de Roterdão explicava em 1508 por que se entretivera num elogio à loucura: Muitos "pretenderão que estas bagatelas são indignas de um teólogo ou ofensivas para a modéstia cristã; ou proclamarão que pretendo ressuscitar a comédia antiga e o estilo de Luciano, para assim morder em toda a gente. E na verdade, os que se ofendem com a leveza e a jocosidade de argumento, deveriam cogitar em que o invento não é meu, antes provém de grandes autores, Há muitos séculos já que Homero se divertiu com o combate dos ratos com as rãs na Batracomiomaquia; Virgílio com o mosquito e o queijo; Ovídio com a nogueira; Polícrates; elogiou Busiris que lsócrates castigou; Sinésius a calvície; Luciano, a mosca e o parasita. Sêneca escreveu a apoteose de Cláudio; Plutarco, o diálogo de Ulisses com Grilo transformado em parco. Luciano e Apuleio divertiram-se cada qual com o seu asno; e não sei quem redigiu o testamento de um leitão denominado Grúlio Corocrata, a que São Jerónimo alude. Perante tais exemplos, podem os detratores figurar-me a matar o tempo com o jogo dos dados ou a cavalgar, infantilmente, um cabo de vassoura)). E acrescenta : "Cada qual pode distrair-se livremente dos trabalhos da sua vida; injusto seria recusar esse direito aos estudiosos, mais ainda quando as discussões conduzem a coisas sérias, e sobretudo quando o leitor pode assim obter maior proveito do que com as dissertações frias e solenes. Se há quem componha um elogio da retórica ou da filosofia, outro chega a cerzir o panegírico de um príncipe ou uma exortação à guerra contra os Turcos, há também quem prognostique o futuro e quem faça questão do pêlo da cabra. Nada mais tolo do que tratar a sério das frioleiras; nada mais espirituoso do que pôr a frivolidade ao serviço do que é sério9".

 

Depois de Erasmo outros nos surpreenderam com esta via de inesperados elogios, bastando lembrar aqui Lautréamont que faz o do piolho, Maeterlinck o do murro, Swift o da vassoura; Quevedo excedendo-se num elogio rasgado ao ojo del culo, De Quincey enobrecendo o assassinato, Rabelais a braguilha, Dali os excrementos, o oitocentista Conde de la Trompette a arte, entre todas difícil, de péter... Não surge desacompanhado, portanto, o Elogio da Mosca que este volume inclui10.

 

Voltando a Erasmo, porém, e ao parecer que emite sobre a qualidade destas dissertações, bem alto cotaríamos o seu Elogio pois "nada mais espirituoso" do que "a frivolidade ao serviço do que é sério" ― no caso a loucura; e a Luciano situaríamos no campo oposto porque "nada mais tolo do que tratar a sério de frioleiras" ― que frioleira é a mosca descontado o papel que lhe cabe, como a quase tudo, no equilíbrio ecológico deste mundo. Verdade é que Erasmo não alinha frivolidades no seu Elogio da Loucura (aliás loucura-estultícia, loucura golpe-de-asa que é germe e gênio de tanta poesia, nunca a loucura que um "mau comportamento" literário saberia interessar no seu humor) e as palavras dirigidas a Thomas Morus não passam desse requebro de falsa modéstia que foi tão vulgar nos tempos em que a obra literária se envergonhava de não aparecer extensa e aduladoramente dedicada.

 

Das intenções de Luciano podemos pensar, com razão, cobras diferentes. É que utilizar a estrutura dos (nobres) elogios literários e, com êxito, aplicá-la à mosca, prova com incomodidade que a tudo ela pode adaptar-se e a eficácia que exibe deixa de ser sintoma de (nobreza) do objeto visado. Nesta operação Luciano subverte a segurança dos valores-feitos. E comete, talvez, o primeiro (golpe de estado) da literatura.

 

D)

 

A leitura de O Parasita leva-nos irresistivelmente à tentação de o considerarmos ponto de partida para um certo humor (futuro) que encontrou expressão alta em Swift e, de forma especial, na sua Proposta Modesta para evitar que os filhos dos pobres da Irlanda sejam um fardo para os pais, ou para o país, tornando-se úteis à comunidade11. Em ambos os casos (Luciano e Swift) se trata de uma ruptura radical com os processos tradicionais de humor; em ambos, também, um estilo de argumentação facilmente associável a outros campos onde não é admitido o mais pequeno desvio humorístico (em Swift uma exposição de economia política; em Luciano filosófica à maneira de Platão). A partir destas aparências, como chegar ao grande espetáculo de "humor ao contrário" ou, no dizer de Baudelaire, de um "farsante a frio)"?

 

N'O Parasita (único caso que aqui interessa), Luciano consegue integrar na realidade um paradoxo e reduzi-lo ao absurdo através de um comportamento dedutivo da maior lógica. Só é possível o riso se nos convencermos de que não fala a sério. O interlocutor direto no diálogo adota, pelo contrário, uma aposição de credulidade que permite ao autor eleger-nos seus cúmplices contra ele ― o convencido de que, entre todas, mais nobre é a profissão de parasita.

 

Esta mortífera "seriedade que o não é" acrescenta-se ao sopro exterminador dos textos anteriores para com eles fluir no sentido único e permanentemente reconhecível do que consideramos mais importante faceta da obra de Luciano: o insofismável signo de um humor, vontade irreprimível de massacrar os valores-feitos cristalizados em redor do Homem e abrir-lhe, na hecatombe, o favorável espaço ao voo nobilíssimo da libertação:

 

Luciano, ou a literatura executada como um assassinato.

 

Em 1732, no convento de Belém, dois frades da Congregação de S. Jeânimo terçaram rivalidades e méritos à volta de um texto de Luciano. Não será excessivo imaginá-los nessas brigas de quem volteja no claustro e à hora do recreio apanha o sal que há-de temperar a pasmaceira do estudo e das devoções. Frei Jacinto de S. Miguel e Frei Manuel de Santo António (jovens, ainda, perturbados com as limitações da Ordem?; homens entrados e já serenos por horas e horas de breviário?) davam-se "às coisas do grego" e resolveram medir-se vertendo ambos em português Como deve escrever-se a História, escrito irônico aonde Luciano desdenha de todo o saber (histórico) já escrito.

 

Acabado o trabalho, nasceram duas versões bem diferentes do mesmo original. E Frei Jacinto declarava melhor o seu texto; e Frei Manuel dizia-se mais competente a exprimir Luciano em português. Na briga entrou a separá-los o Padre José Henriques de Figueiredo que achou por bem solicitar como árbitro o erudito Conde da Ericeia. O resultado desta polêmica, que se empolava no corredor das celas, foi uma edição da Oficina de Música, datada de 1733, na qual correm a par as duas traduções e se expõem ao confronto de quem as quiser ler.

 

Na época já não era novo o problema do que pode considerar-se a "melhor" fidelidade de uma tradução. Já se encontrava impresso o desabafo do Padre António Vieira a propósito de um desaire que lhe dizia respeito: "Estes dous sermoens se traduzirão em Castella, e Portugal de verbo ad verbum, isto he, mal, e como naõ deveraõ, pela dissonancia das duas línguas12". Frei Jacinto de S. Miguel escreveu então a D. Francisco Xavier de Meneses, Conde da Ericieira do Conselho de Sua Majestade, Deputado da Junta dos três Estados: "Meu Senhor. A Arte Histórica de Luciano, que a Vossa Excellencia remetto, traduzida em Portuguez por mim, e pelo Padre Fr. Manoel de Santo Antonio, Monge da minha Congregaçaõ, e meu sócio nesta curiosidade da língua Grega", necessita de recurso "a hu arbitro ( ... ) inteiro, e ( ... ) erudito". ( ... ) "O referido Padre verteu do Original a sentença, sem atar-se às palavras, procurando com todas as suas forças manifestar o pensamento do Author com as proprias frazes da lingua Portugueza, que mais se assemelhassem às expressoens da lingua Grega. Eu de maneira me sugeitey, e me quiz atar às palavras, e às frazes Gregas, que até os casos dos nomes, os tempos, os modos, e as vozes dos verbos trabalhey por exprimir, quanto,pude, na lingua Portugueza. Esta vem ipois a ser a cantroversia : qual das duas versoens pôde Ler-se sem deslustre do traductor?" E mais adiante: "Vossa Excellencia como Arbitro nesta literaria contenda, como Padroeiro, e Mecenas das letras, pondo de parte aquella benevolencia summa, com que costuma honrar a pobreza do meu engenho, queira decidimos, qual das duas versoens pôde correr rem desdouro do interprete, e do interpretado".

 

Contemporizador, e não muito interessado em ficar de um só lado numa briga de frades, veio responder o Conde da Ericeira: "Nesta traducção [a de Fr. Jacinto] se faz Luciano mais discreto, na outra mais entendido: na primeira fica amavel, na segunda fica util; quem pelo costume não quer ouvir senaõ a harmonia da eloquencia, álea a segunda traducção; quem applicandose ao stolido, não achar dissonante a estranheza da fraze, lea a primeira 13".

 

Ora a verdade pode qualquer leitor descobri-Ia com uma vista de olhos pela edição de 1733: A tradução "fiel" de Frei Jacinto é insuportavelmente bárbara por um apago excessivo à estrutura do idioma grego cada vez menos adaptável à fluência própria das línguas modernas; a tradução "livre" de Frei Manuel é sonora e de uma elegância por certo mais fiel aos dotes do prosador Luciano. Este caso exemplar adverte sobre os perigos de traduzir com preocupação de exacta correspondência os meandros da frase grega. Por isto e porque nem todos pensam de igual forma encontramos graus vários de beleza formal nas três versões das obras completas de Luciano que nos foi dado consultar em francês; por isto, também, as edições portuguesas correntes de uma Odisseia aceitável 14 e de uma ilíada detestável; e o brilhante português 15 da Anábase de Xenofonte, à qual Aquilino Ribeiro chamou Retirada dos Dez Mil.

 

A consciência deste problema fez-nos tomar alguns cuidados com o texto português fixado nesta edição, aproximando-o quanto possível de uma resultante ponderada entre várias versões francesas das obras de Luciano, às quais tivemos acesso durante o trabalho de tradução. Para a História Verdadeira foram usadas as versões de N. Perros d'Ablancourt de 1664 e a de Piarre Grimal de 1958; para Lúkios ou O Burro o mesmo Perros d'AhIancourt: e a versão de lâmile Chambry, sem data; os restantes textos foram traduzidos como recurso a d'Ablancourt e à versão de Eugène Talbot de 1874.

 

Fonte: O parasita, Luciano, & etc, Lisboa, 1981, prefácio e tradução de Aníbal Fernandes.

 

1Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo, em português na Livraria Lello & Irmão Editores, Porto s/d (capítulo Celso e Luciano).

2 No diálogo O Pescador ou Os ressuscitados.

3 ― Foram publicadas em Portugal as seguintes edições de Luciano:

1733 ― ARTE HISTÓRICA DE LUCIANO DE SAMOSSATENO, traduzida em duas versões portuguesas pelos Rev. Padres Fr. Jacinto de S. Miguel, Cronista da Congregação de S. Jerónimo e Fr. Manuel de Santo António, monge da mesma congregação em Portugal, dadas à luz pelo Padre José Henrlques de Figueiredo, presbítero do Hábito de S. Pedro e Capelão da Rainha Nossa Senhora ― Lisboa Ocidental na Oficina de Música.

1771 ― SOBRE O MODO DE ESCREVER HISTORIA, tradução de Custódio José de Oliveira ― Régia Oficina Tipográfica, Lisboa.

1939 ― A DEUSA SIRIA, O LUTO, tradução de Lobo Vilela ― Editorial Inquérito, Lta., Lisboa.

1965 ― ELOGIO DA MOSCA (em apêndice a -Diário de um Gênio - de Salvador Dali), tradução de José Luís Lume ― Editora Ulissela, Lta,, Lisboa.

1981 ― Este edição.

4 - Texto francês na Petite Bibliothèque Payot, Paris 1962.

5 ― Édifions l'Age d'Homme, Lausana 1972.

6 ― A Influência de Luciano em Gulliver assume aspectos mais – carregados - do que nas outras obras citadas antes dele. A partir da certeza de que Jonathan Swift comprou as obras de Luciano em francês (conforme escreve no Diário para Stella), não será possível tomar como alheia à sua influência a ilha voadora de Laputa, por exemplo, ou os yahoos que muitos devem, estes, aos bucéfalos e as onosquélias da História Verdadeira.

7 ― E a Editorial Estampa retomou em 1970, numa versão quase integral.

8 ― Notice a •Histoire Véritable• em Romans Grecs et Latins, Bibliothèque de la Pléiade Gallimard, Paris 1958.

9 ― No Elogio da Loucura segundo a tradução de Álvaro Ribeiro, Guimarães & Cia., Editores, Lisboa 1951.

10 ― Curioso é notar que, sobre a mosca, existem páginas com um sabor -inverso. do texto de Luciano ― censuras da mosca, portanto. Referimos aqui a dissertação sobre as moscas de Pompeia, que Wilhelm Jensen inclui na sua novela Gradiva, (essa que foi tão forte caso entre os primeiros surrealistas e Freud) e a de Camilo Castelo Branco (que nunca leu Luciano, diz ele) no Cavar em Ruínas.

11 ― Já publicado nas edições & etc (Colecção Contramargem n.° 6).

12 ― Padre António Vieira na lista dos Sermões.

13 ― Arte Histórica de Luciano de Samossateno, Lisboa Ocidental na Oficina de Música, 1733.

14 ― Referimo-nos à edição Sã da Costa, a única que corria, em português, quando foi escrita esta apresentação.

15 ― Da Beira -, acrescenta um amigo nosso.

 

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