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CONDENAÇÃO EM REINCIDÊNCIA SEM REINCIDÊNCIA E TRÂNSITO EM JULGADO - como resolver.

BRASO

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
CONSELHO PENITENCIÁRIO DO ESTADO DO AMAZONAS

 

Processo nº 014/92/VEC

Interessado: JOSÉ FERREIRA RODRIGUES

PARECER

 

 

Se ages contra a justiça, e eu te deixo agir, a injustiça é minha”

(Gandhi)

 

 

 

 

Senhor Presidente,

Senhores Conselheiros,

 

Vieram os presentes autos a este egrégio Conselho mediante iniciativa própria, uma vez que está ele a merecer uma ampla reflexão por parte do colegiado, ensejadora de um posicionamento frente à ilegalidade cometida quando da prolação da sentença de primeiro grau - irrecorrida - que impôs condenação a JOSÉ FERREIRA RODRIGUES, mantendo-o no cárcere em que já se encontrava, e que abaixo demonstrar-se-á.

 

DOS FATOS

 

1 - Em 06.02.91, policiais da Delegacia Especializada de Prevenção e Repressão de Entorpecentes - DEPRE, fizeram uma busca na residência do apenado, logrando apreender 100 (cem) gramas de cocaína.

 

Para este fato, foi instaurado o devido inquérito policial por intermédio de PORTARIA, uma vez que o, à época, indiciado, não estava no local, não sendo possível, desse modo a lavratura do auto de prisão em flagrante.

 

2 - No dia 10.02.91, policiais da mesma delegacia lograram prender em FLAGRANTE delito o apenado, dessa feita portando 100 (cem) “trouxinhas” de pasta de cocaína.

Por este fato foi denunciado em 07.03.91 nas penas do art. 12 da Lei nº 6.368/76, perante a 1ª Vara Criminal da Capital.

 

3 - Nova denúncia contra o ora apenado foi ajuizada em 03.05.91, esta referente ao delito praticado em 06.02.91 (item 1 acima), também pela prática do crime tipificado no art. 12 da Lei nº 6.368/76, ou seja, pela prática daquele crime onde não ocorrera a prisão em flagrante.

 

4 - As duas condutas criminosas do apenado estão separadas por um intervalo de apenas 4 (quatro) dias (06.02.91 a 10.02.91), se tanto.

 

5 - Em 19.08.91 veio o apenado ser condenado à pena de 6 (seis) anos de reclusão pela prática da infração cometida em 10.02.91, ou seja, julgou-se primeiro o processo decorrente da prisão em flagrante.

 

Lembre-se, por importante, que a prisão em flagrante é posterior à instauração do IP por PORTARIA.

 

6 - No dia 30.12.92 foi o apenado julgado pelo primeiro crime que cometera, qual seja, aquele decorrente da apreensão de 100 (cem) gramas de cocaína em sua casa, ocorrida em 06.02.91, sendo condenado à pena de 4 (quatro) anos de reclusão.

 

Recapitulando: o apenado foi denunciado e condenado primeiro pelo segundo crime que cometera, só, posteriormente, sendo julgado pela prática da primeira infração penal de sua autoria.

 

A inversão da ordem que, a princípio, seria a natural, julgamento das infrações de acordo com a cronologia de suas práticas é plenamente aceitável, compreensível e justificável, uma vez que quando da prática da segunda infração ocorrera a prisão em flagrante, o que impulsiona e dá maior celeridade ao IP e à ação penal.

 

DO DIREITO

 

7 - O absurdo começa a surgir a partir dessa segunda condenação (olvide-se a dosimetria da apenação no primeiro julgamento, pois dele não houve recurso e é possível a imposição de pena acima do mínimo legal para réus primários e de bons antecedentes, desde que seja a decisão devidamente fundamentada. A inexistência de fundamentação se afigura como erro crasso).

 

No segundo julgamento, referente ao primeiro delito, separado do segundo delito por apenas 4 (quatro) dias, foi imposta a pena de 4 (quatro) anos de reclusão, bem como reconhecida a AGRAVANTE prevista no art. 61, inciso I, do Código Penal.

 

O que diz a norma penal citada?

 

Art. 61. São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

I - a reincidência;”

 

Conheçamos o conceito legal de reincidência:

 

Art. 63. Verifica-se a reincidência quando o agente comete o novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”

 

Ora, como poderia o apenado ter sido considerado reincidente por esta segunda sentença que lhe infligiu à pena de quatro anos?

 

Somente a encarnação de um espírito do além e do aquém a donde ‘véve’ os mortos poderia explicar.

 

Já que legalmente não existe uma explicação lógico-jurídica para a malsinada sentença, que, infelizmente, cometeu o erro judiciário crasso contra um pobre diabo sem qualquer defesa quanto a esse ponto, resta-nos valermo-nos de princípios maiores que se anteponham à coisa julgada, uma vez que, neste caso está ela funcionando ao inverso, ao invés de promover a segurança jurídica por todos desejada, está sendo elemento fomentador de insegurança jurídica e de profunda injustiça.

 

A segunda sentença proferida não poderia, juridicamente, ter reconhecido o apenado como reincidente, pois não era e não é.

 

Ora, se reincidente é aquele que comete o novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que o tenha condenado por crime anterior, não era o caso do apenado quando de seu julgamento.

 

Na segunda sentença - onde reconhecida a reincidência - o crime não era novo, uma vez que anterior àquele julgado em primeiro lugar, era, portanto, crime “velho”.

 

Neste diapasão, não havia sentença com trânsito em julgado quando o réu cometeu o novo crime, isto porque aquele que poderia ser tido como novo crime ocorreu quatro dias após o crime anterior (quando a Justiça conseguir instruir e julgar uma causa em quatro dias, no Brasil ou mundo, na terra estará Deus fazendo valer seus mandamentos), a tudo acrescentando-se que o segundo crime foi julgado antes daquele praticado em primeiro lugar.

 

Portanto, sem maiores incursões, é de claridade solar que o apenado não era reincidente, e assim sendo, não poderia ser tido como tal, sob pena de violar-se-lhe direitos fundamentais.

 

8 - Mas, o que fazer em situações como a presente, onde temos de um lado uma sentença com trânsito em julgado e de outro, um ser humano sofrendo as consequências por atos que não cometeu e que o Estado reputa ilegais?

 

Somente são legais os atos estatais praticados em conformidade com as normas que o próprio Estado expediu.

 

O condenado foi apenado mediante provimento jurisdicional plenamente ilegal, uma vez que não respaldado na lei.

 

Pode a vontade de um agente estatal valer mais que a vontade do próprio Estado veiculada na lei?

 

A resposta negativa se impõe, pois o limite da vontade, prerrogativas, direitos e atividades do Estado estão balizadas na lei expedida pelo próprio Estado e que demarca o limite de sua atuação, tudo como garantia da cidadania, do ser humano, conquistada ao longo dos séculos não sem a supressão de muitas vidas que se opuseram ao arbítrio absolutista.

 

Mesmo a coisa julgada encontra limites, e o limite lógico e jurídico dela ocorre quando há um desvirtuamento de sua finalidade, que é de garantir a liberdade e os bens das pessoas, não para impor-lhes penas inexistentes no ordenamento jurídico a que serve. Este pois o seu primeiro limite, já que na sociedade moderna inexistem direitos absolutos, sendo o maior de todos eles, a vida, passível de supressão nos casos previstos em lei.

 

Do até agora exposto, a LEI tem sido o ponto de partida bem como o de chegada mediante os quais os direitos devem ser restringidos ou preservados, mas, sempre dentro da moldura legal, uma vez que qualquer ação estatal que fuja do roteiro anteriormente traçado pelo legislador é írrito, não pode prevalecer contra o ordenamento no qual se apoia.

 

O princípio da legalidade não vige apenas para o Poder Executivo e Legislativo, vige também, e principalmente para o Poder Judiciário, guardião maior e último dessa conquista social.

 

A sentença que reconheceu o apenado reincidente extrapolou os limites dentro dos quais estão balizados seus movimentos, é portanto ILEGAL.

 

DAS RAZÕES PARA A AFASTABILIDADE DA COISA JULGADA.

 

9 - A primeira questão a ser posta no deslinde deste caso se refere à barreira anteposta pela coisa julgada, uma vez que a sentença em que foi dado o apenado como reincidente não é mais passível de recurso, tendo sobre ela deitado o manto da imutabilidade.

 

Tal perspectiva seria suficiente ao encerramento do debate e do estudo se partíssemos da visão de um Estado ditatorial, onde a vontade da autoridade está acima da lei e não admite contestação. Felizmente estamos num Estado Democrático de Direito, em decorrência do qual todo e qualquer estudo e aplicação das normas vigentes devem ser procedidos de forma integrada, para a preservação do conjunto e para que se evitem as contradições indesejadas.

 

Está previsto no art. 5º, inciso XXXVI, da CF, a garantia da imutabilidade da coisa julgada, a qual, como se disse, poderia encerrar qualquer discussão sobre a situação ora ventilada. No entanto, assim não pode e não deve ser, pois razões históricas, lógicas e jurídicas apontam em direção oposta.

 

Historicamente devemos reconhecer que a garantia da coisa julgada está voltada para a defesa de direitos fundamentais do cidadão, o qual não poderia ter sua situação jurídica já definida por um provimento jurisdicional definitivo sendo revista a todo momento, pois tal importaria em total insegurança jurídica, norte maior de todo ordenamento moderno.

 

Não é de ser esquecido ainda, que a Constituição, base sólida da qual se ergue toda a estrutura legal vigente, nada mais faz do que limitar o poder estatal e preservar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.

 

No caso que ora se discute, está presente a garantia da coisa julgada, que no momento não está voltada para a proteção do indivíduo, mas para a proteção da “sociedade”.

 

Da sociedade em termos, pois a lei - ela sim, protetora da sociedade - foi violentada quando de sua aplicação, o que fez gerar um gravame contra um ser humano seu integrante, a qual se torna vilipendiada com a injustiça cometida a um dos seus, consequentemente, contra si própria, o que torna a sentença, além da falta de nenhum amparo jurídico, sem nenhum suporte social.

 

A desaprovação do provimento jurisdicional pela falta de lógica, decorre, além do exposto nos dois parágrafos antecedentes, pois o sistema jurídico não pode proteger e violar ao mesmo tempo. No caso do apenado, a coisa julgada, que deve ser uma proteção do cidadão, está funcionando para violar um dos seus direitos mais caros, a liberdade, para muitos superior à própria vida, uma vez que com o término dessa leva consigo todo sofrimento.

 

Não é demais salientar que a ninguém é vedado negar-se ao cumprimento de ordem manifestamente ilegal, e a coisa julgada não tem o condão de sanar ilegalidade patente, mesmo que inscrita em sentença trânsita em julgado.

 

Ademais, no Direito Processual Penal, ao contrário do que ocorre com o Direito Processual Civil, prepondera o princípio da verdade material sobre o princípio da Segurança Jurídica, o que implica que a qualquer tempo pode haver revisão pró réu, desde que haja motivos justificadores, o que aparenta ser o caso.

 

Parece-nos de extrema injustiça submeter o réu aos efeitos de uma sentença eivada de nulidade no que tange à admissão da reincidência, fazendo-o aguardar o resultado de uma Revisão Criminal ao cabo da qual o réu seguramente já terá cumprido in integrum o excedente ilegal da pena.

 

10 - Poderia o Juiz da Execução rever o comando da sentença condenatória ?

 

A possibilidade é reconhecida amplamente pela doutrina e jurisprudência, desde que seja procedida em benefício do apenado, sobre o tema manifestou-se o E. Supremo Tribunal Federal, in verbis, a contrario sensu:

 

Habeas Corpus nº 73.211-9 - Rel. Min. Octávio Galloti - EMENTA - Inadmissível correção, pelo Juiz, em detrimento do réu, de suposto erro de fato, que efetivamente configura erro de direito” (Informativo STF nº 57), (grafamos).

 

Como visto, somente é vedada a correção in pejus, sendo a correção para beneficiar o réu medida da mais absoluta justiça, posto que respaldada em norma Constitucional de Princípios Fundamentais (dignidade da pessoa humana).

 

Pode-se afirmar, portanto, que a sentença transitada em julgado não é imutável!

 

11 - A questão ora apresentada se nos afigura como tendo fundo constitucional, razão pela qual deve ser analisada de acordo com os princípios retores estabelecidos na Carta Política de 1988. Sendo que nela encontramos, a amparar o pleito de liberdade do réu os seguintes dispositivos:

 

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

............................................................................................

III - a dignidade da pessoa humana”.

 

Comentando o referido dispositivo, doutrina Alexandre de Moraes:

a dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidade humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual”(‘Direito Constitucional’, 1997, Atlas, pág. 41).

 

Se o princípio dá unidade aos direitos e garantias fundamentais, qualquer violação de uns pelos outros não pode ser aceita, mas ambos devem ser compatibilizados.

 

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, por sua vez, esclarecem o sentido da disposição constitucional ao enfatizarem:

 

Portanto, o que ele está a indicar é que é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas.

É de lembrar-se, contudo, que a dignidade humana pode ser ofendida de muitas maneiras. Tanto a qualidade de vida desumana quanto a prática de medidas como a tortura, sob todas as suas modalidades, podem impedir que o ser humano cumpra na terra a sua missão, conferindo-lhe um sentido” (‘Comentários à Constituição do Brasil - promulgada em 5 de outubro de 1988’, 1º Volume, 1988, Saraiva, pág. 425).

 

Que condições estão sendo prestadas ao apenado, neste momento, para que ele possa demonstrar sua dignidade, uma vez que está preso além do que determina a lei? Nenhuma.

 

Tal restrição ilegal da liberdade não é uma das maneiras de ofender a dignidade humana? Sim, é evidente que sim.

 

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”.

 

Onde está a justiça de uma sociedade que alija de sua convivência normal um dos seus integrantes em desacordo com a lei que ela própria estabeleceu? Está essa sociedade cumprindo com seu pacto fundamental, para o qual todos concorreram?

 

Por nunca ser demais valermo-nos de quem sabe, recorramos, mais uma vez ao magistério de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, sobre a disposição constitucional acima:

 

A Justiça é um dos valores fundamentais, transcendendo o próprio direito. Tem ela na verdade razões ético-religiosas. O homem revolta-se contra a injustiça. O dar a cada um o que lhe pertence parece constituir-se princípio mínimo para a convivência humana.

............................................................................................

Daí ter o Estado um papel importante na restauração destes desequilíbrios e destas desigualdades. Mas o que o Texto Constitucional impõe não é aquela igualdade acenada pelos países autoritários, mas sim a igualdade compatibilizada com a liberdade.” (Idem, pág. 444).

 

Ao apenado foi ofertada a Justiça merecida, cometeu as infrações e foi apenado, cumpriu a pena. Tudo, no entanto, que for além daquela é injustiça, sendo que injusto é impor, criar situações novas não previstas na lei. Logo, para com esse preso o Estado não está fazendo Justiça, uma vez que a privação de sua liberdade não está compatibilizada com a igualdade democrática, sendo ele, depois que cumpriu a pena legalmente estabelecida, vítima do mais absurdo e inaceitável autoritarismo.

 

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”

 

A liberdade assegurada por este dispositivo é ampla, abrangendo todos os aspectos relacionados com as necessidades humanas onde ela se fizer exigível.

 

No caso do apenado, podemos restringir a liberdade concedida pela Magna Carta a uma de suas facetas, a liberdade de locomoção que é a que neste momento visualizamos como aquela que está sendo violada.

 

José Afonso da Silva, em seu catecismo obrigatório para o estudante do direito constitucional, leciona:

 

10. Liberdade de locomoção

Esta constitui o cerne da liberdade da pessoa física no sistema jurídico, abolida que foi a escravidão...

............................................................................................

(...)liberdade de locomoção: poder que todos têm de coordenar e ‘dirigir suas atividades e de dispor de seu tempo, como bem lhes parecer, em princípio, cumprindo-lhes, entretanto, respeitar as medidas impostas pela lei, no interesse comum, e abster-se de atos lesivos dos direitos de outrem’”, (‘Curso de Direito Constitucional Positivo’, 10ª Edição, RT, pág. 231).

 

O apenado, no momento, está respeitando medidas não impostas pela lei, mas, erroneamente, pelo magistrado, o que o torna livre para, se puder, exercer o direito natural de resistência, valendo-se da desobediência civil, em todos os seus desdobramentos.

 

Art. 5º - ‘omissis’

............................................................................................

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei.”

 

Interpretando o dispositivo supra dizem Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins:

 

O princípio de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei surge como uma das vigas mestras do nosso ordenamento jurídico.

...A obediência suprema dos particulares, pois, é para com o legislativo. Os outros, o Executivo e o Judiciário, só compelem na medida em que atuam a vontade da lei. Não podem, contudo, impor ao indivíduo deveres ou obrigações ex novo, é dizer, calcados na sua exclusiva autoridade”, (Idem, ibdem, pág. 23).

 

De igual pensar é José Afonso da Silva:

 

...de sorte que a idéia matriz está em que só o Poder legislativo pode criar regras que contenham, originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-formal, o que faz coincidir a competência da fonte legislativa com o conteúdo inovativo de suas estatuições, com a consequência de distingui-la da competência regulamentar” (Idem, 400/401).

 

No caso do preso interessado, a magistrada sentenciante criou uma segunda forma de reincidência, como acima se expôs, com o que violou, flagrantemente, a presente disposição da Lei Maior, o que impõe a sua não obediência, sob pena de incorrer-se no vício maior, a inconstitucionalidade, uma vez que somente a lei pode impor obrigação, como é a de suportar a prisão.

 

Art. 5º - ‘omissis’

............................................................................................

LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.”

 

Esta norma, dirigida a autoridade judiciária para correção de abusos da autoridade policial - no pressuposto errôneo de que aquela não comete erro e abusos (demonstração maior ocorre no caso vertente) - pode perfeitamente ser aplicada pelo MM. Juiz da Vara de Execuções Criminais para corrigir o erro crasso, fundamentado no art. 5º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, que faculta ao juiz a possibilidade de na aplicação da lei, atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

 

Hoje o apenamento do preso não atende mais aos fins sociais, uma vez que excedente do tempo previsto na norma de regência, além de o bem comum, externado pela disposição legal, que não impõe reincidência naquela situação, está sendo ignorado.

 

Art. 5º - ‘omissis’

............................................................................................

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.

 

O tempo a ser fixado na sentença é aquele decorrente da Lei, pois somente esta, como visto acima, pode impor condutas, logo, a sentença que estiver em desacordo com a lei a que deva obediência é ilegal, não tem força para obrigar, pois não está amparada na base que lhe dá sustentação.

 

Por ser assim, o Estado passa a indenizar, também, aquele que ficar preso por tempo superior ao fixado na sentença ilegal, injusta, cujo exemplo está sob nossas vistas.

 

Sentença injusta, ilegal, é sentença inexistente nesta parte, razão pela qual deve ser corrigida por todo aquele que disponha de meios para tal, uma vez que acima do princípio da coisa julgada está a dignidade da pessoa humana e os valores dela decorrente, dentre eles a liberdade.

 

Art. 5º - ‘omissis’

............................................................................................

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

 

José Ferreira Rodrigues está cumprindo pena sem prévia cominação legal, uma vez que a Lei (fonte de toda obrigação) não previu reincidência para a conduta que praticou, como sobressai cristalina da leitura mais elementar do art. 63 do Código Penal, sendo, neste aspecto, também ilegal sua atual situação prisional, ou melhor, inconstitucional sua prisão.

 

A magistrada criou uma pena sem prévia cominação legal, já que impôs reincidência onde ela não existe, escrevendo, absurdamente, o seguinte tipo:

 

Será reincidente aquele que for condenado em primeiro lugar pelo segundo crime que houver cometido.”

 

Seria um arremate da prepotência, ignorância e desumanidade não corrigir-se tal ignominioso erro.

 

Por fim, face ao disposto no inciso LXXV, do art. 5º, da CF, está dirigida a todos nós Conselheiros e a todos aqueles que tomarem conhecimento do caso presente e se omitirem, a seguinte disposição constitucional:

 

Art. 37. ‘omissis’

§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

 

De minha parte, Senhores, não vejo o caso sendo daqueles de difícil deslinde, o vejo apenas como algo novo, e como todo novo cheio de incertezas e do temor natural trazido pelo desconhecido, mas que deve ser encarado e dentro do ordenamento jurídico buscado a solução que harmonize o sistema.

 

Com sua experiência de Juiz Federal aposentado e religioso, João Baptista Herkenhoff traz-nos a lição abaixo, perfeitamente aplicável a esta tormentosa - por ser desumana - questão:

 

Contudo o sistema legal vigente pode ser menos desumano, menos distante do povo, através da arte e da consciência do juiz.

Ou se terá um direito mais justo pelo atuação do juiz ou não se terá nada. Em outras palavras: se o juiz falhar na sua missão de humanizar a lei de estabelecer o ajustamento entre os valores da lei e os valores do povo -, muito pouco ou nada restará de útil, socialmente útil na lei”, (“Como aplicar o direito”, 4ª Edição, Forense).

 

12 - Mas qual a solução a ser dada ao aparente conflito de normas constitucionais, uma vez que estão em confronto a coisa julgada e todos aqueles outros direitos e garantias acima apontados e voltados para a proteção do apenado?

 

Não traremos aqui toda a doutrina exposta por Otto Bachoff em sua pioneira obra ‘Normas Constitucionais Inconstitucionais?’, por encontrarmos em doutrinador luso uma síntese perfeita do pensamento do professor alemão.

 

Leciona Jorge Miranda ao tratar da interpretação das normas constitucionais:

 

a contradição dos princípios deve ser superada, ou por meio da redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios”

Deve ser fixada a premissa de que todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamento, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade”, (‘Manual de Direito Constitucional’, 1990, Coimbra Editora, tomo 1, pág. 199).

 

Não menos claro em sua exposição é o constitucionalista pátrio Raul Machado Horta ao asseverar:

 

é evidente que essa colocação não envolve o estabelecimento de hierarquia entre as normas constitucionais, de modo a classificá-las em normas superiores e normas secundárias. Todas são normas fundamentais. A precedência serve à interpretação da Constituição, para extrair dessa nova disposição formal a impregnação valorativa dos Princípios Fundamentais, sempre que eles forem confrontados com atos do legislador, do administrador e do julgador”, (‘Estudos de direito constitucional’, 1995, Editora Del Rey, pág. 239/240)”.

 

Como sobredito, a finalidade do princípio constitucional da coisa julgada é a proteção do cidadão contra a ondulação permanente no apreciar e julgar suas condutas, devendo a segurança decorrente daquela servir-lhe de escudo contra injunções futuras, levadas a efeito por capricho, arrogância, prepotência e abuso de direito ou de poder.

 

Não pode tal proteção fundamental voltar-se contra aquele a quem cabe proteger - o ser humano - pois não existe neste caso quem esteja reclamando tal proteção, nem mesmo o Estado, titular do jus puniendi, reclama tal proteção, uma vez que sua vontade, quando da aplicação da pena foi desvirtuada, já que aplicou-se pena maior que a prevista em lei, uma vez que a conduta não se coadunava e se coaduna com o princípio da legalidade penal, que requer o estabelecimento da pena previamente.

 

Entendemos até que no presente caso não existe confronto de normas onde seja necessário valorar um princípio em detrimento de outro, dar preferência ou prioridade a um deles em prejuízo de outro.

 

Pode-se, no caso vertente, analogamente, fazer valer a seguinte lição de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira:

 

Não há conflito entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome em caso de difamação, dado que não está coberto pelo âmbito normativo-constitucional da liberdade de expressão o direito à difamação, calúnia ou injúria”, (‘Fundamentos da Constituição, 1991, Editora Coimbra, pág. 136).

 

Trazendo o exemplo para o caso que ora se aprecia podemos, convictamente, afirmar: não está coberto pelo manto da coisa julgada o erro judiciário cometido em detrimento daquela pessoa a quem a proteção se dirige, o ser humano.

 

13 - Não é demais, por fim, relembrar que o disposto no art. 185 da Lei nº 7.210/84 estabelece que:

 

Art. 185. Haverá excesso ou desvio na execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”, (0s grifos não são do original).

 

Como é curial, qualquer sentença deve amparar-se na mais legítima aplicação das normas legais, e tendo a sentença de mérito avançado sobre o campo da ilegalidade, seria o Juízo da Execução, caso aplicasse tal sentença, quem estaria cometendo o excesso previsto no citado art. 185, razão porque se impõe que o Juízo da Execução atue de acordo com a Lei, mesmo que isso signifique contrariar o título da execução, preservando a Lei em detrimento de sentença que, a pretexto de aplicá-la violentou-a.

 

Senhores, estando o apenado preso desde 10.02.91, tendo sido condenado em 19.08.91 à pena de 6 anos de reclusão, advindo outra condenação em 30.12.92, impondo-se-lhe mais 4 anos de reclusão, penas que, unificadas, totalizam 10 anos de reclusão, cumpriu 7 anos, 2 meses e 27 dias de sua pena.

 

Do total da pena - 10 anos -, 2/3 corresponde a 6 anos e 8 meses. Portanto, o apenado já cumpriu pena superior a este lapso temporal necessário à concessão do benefício ora proposto.

 

Ante ao exposto, por não ser o apenado reincidente específico, com fundamento no art. 83, inciso V, do Código Penal, voto no sentido de que o Conselho Penitenciário do Estado do Amazonas emita parecer opinando pela concessão do livramento condicional em favor de José Ferreira Rodrigues.

 

Invocando, caso não seja este o entendimento do Douto Juízo da Execução, alternativamente, o poder geral de cautela do Magistrado para que o pedido seja atendido como provimento cautelar até que seja apreciada o Habeas Corpus já ajuizado em favor do preso.

 

 

 

OSÓRIO BARBOSA

Conselheiro

 

 

 

 

 

 

PROMOÇÃO

 

 

 

 

 

 

 

Conselho Penitenciário do Estado do Amazonas aprova, _________________________, o voto emitido pelo Conselheiro Osório Barbosa, PROPONDO a concessão de livramento condicional em favor do apenado JOSÉ FERREIRA RODRIGUES.

 

Sala das sessões em Manaus-Am, 08 de maio de 1998.

 

Conselheiro Presidente:

 

Conselheiro Relator:

 

Conselheiro:

 

Conselheiro:

 

Conselheiro:

 

Conselheiro:

 

Conselheiro:

 

 

Obs.: Creio que quando fiz o voto acima, ainda não tinha lido a decisão abaixo (as datas, da manifestação e do Acórdão, são muito próximas), ou, se o tinha feito, a tinha esquecido no momento:

 

RE N. 215.756-SP

RELATOR : MIN. MOREIRA ALVES

EMENTA: Recurso extraordinário. 13º salário calculado com base no salário de novembro de 1988 e não no de dezembro do mesmo ano.

- Fundamento suficiente para a sustentação do acórdão recorrido é o de que, no caso, a lei estadual determinou expressamente que a nova sistemática de cálculo de 13º salário teria aplicação retroativa, a contar da promulgação da Constituição da República em 1988.

Ora, se a Lei estadual determinou sua aplicação a servidores públicos desde momento anterior ao de sua entrada em vigor, não pode a Administração Pública pretender não aplicá-la sob a alegação de ofensa a direito adquirido seu (art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal), porquanto, integrando ela o Estado, não tem ela direito a uma garantia fundamental que é oponível ao Estado e não - como ocorre, em geral, com as garantias dessa natureza, a ponto de, em face do direito alemão, SCHLAICH (“Das Bundesverfassungsgericht”, p. 102, Verlag C.H. Benk, München, 1985) dizer que as pessoas jurídicas de direito público não são capazes de ter direitos fundamentais - a ele outorgada.

Portanto, correta a aplicação da lei estadual pelo acórdão recorrido.

Recurso extraordinário não conhecido.

 

(Informativo STF nº 101, de 2 a 6 de março de 1998).

 

 

Obs. 2: O voto foi acatado por unanimidade. O juiz da Vara de Execuções Criminais, na época, usou um formulário padrão para dizer que acatava a decisão do Conselho Penitenciário.

 

Numa determinada sessão, que cheguei com um pouco de atraso, estava presente o jovem juiz substituto da Vara de Execução, Luís Carlos Valois, que tecia alguns comentários, elogiosos, ao voto que eu tinha elaborado e que o juiz titular não dera, aparentemente, a mínima atenção.

 

Por que estou lhes narrando isso?

 

A juíza que tinha condenado o réu como reincidente, é a atual desembargadora Encarnação Salgado (era tida como muito rigorosa para com os réus, aplicava penas elevadas), atualmente afastada das funções pelo STJ, pois se lhe imputa a “venda de alvarás de soltura de traficantes”.

 

Esta a razão de eu, no voto, ter me lembrado do personagem “Bento Carneiro” do Chico Anysio!

 

Já o juiz Luís Carlos Valois – filho de um dos melhores advogados criminalistas e professor do Amazonas, Félix Valois – também está sendo acusado de possíveis irregularidades na mesma Vara de Execuções Penais! (http://acritica.uol.com.br/noticias/Associacao-Magistrados-Amazonas-Carlos-Valois_0_1473452657.html).

 

As voltas que a vida dá costuma nos dar muitas voltas, e lhes trago tudo isso apenas para relembrar a mim mesmo fatos que vivi e dividir com os senhores acontecimentos que podem ajudar, especialmente os que trabalham com Direito, futuramente.

 

 

Até mais,

 

 

 

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