ANTIFONTE FRAGMENTOS

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Antifonte.

 

Antifonte, ateniense, adivinho, poeta épico, intérprete de sonhos e sofista; era chamado “o cozinheiro de discursos”.

 

Antifonte de Atenas não despertou grande interesse como pensador antes da descoberta dos papiros de Oxyrinchus (em 1915 e em 1922), contendo importantes fragmentos do tratado intitulado Da Verdade, que trouxeram elementos decisivos para a apreciação das suas posições ético-políticas, além dos relativos às obras Da Concórdia e Político. Posteriormente, em 1984, mais um fragmento dos referidos papiros veio enriquecer o espólio do sofista. Também lhe foi tradicionalmente atribuída a autoria de outros escritos sobre a interpretação dos sonhos (Peri Kryseos Oneiron) (Da Interpretação dos Sonhos) e sobre a arte de combater o sofrimento (Techne Alupias).

 

Havia muito que se gerara polêmica acerca da identidade de Antifonte, discutindo-se se Antifonte sofista era o mesmo que Antifonte de Ramnunte, o orador. Sobre este último, a partir das narrativas de Tucídides (História da Guerra do Peloponeso), dispomos de um conjunto apreciável de informações: sabe-se que, tendo feito parte da oligarquia dos “Quatrocentos”, exerceu o poder em Atenas durante um curto período de tempo (cerca de quatro meses) e, na sequência da queda desse governo, foi acusado de traição por conluio com Esparta e condenado à morte (411 a. C.). Como orador, alcançou notoriedade enquanto autor das Tetralogias, tendo também composto outros discursos judiciais avulsos, dos quais três chegaram até nós.

 

Ressalta na obra de Antifonte o primado do político. O facto de podermos aceder diretamente às suas opiniões nesse domínio, sem a mediação de doxografias eventualmente deformadoras, assume indiscutível relevância no âmbito do que sabemos acerca da Sofística. Com efeito, as fontes remanescentes atestam interesses amplos e polifacetados por parte de Antifonte, abrangendo matérias muito variadas, que vão desde a preocupação com a linguagem, na linha da problemática da correção dos nomes, às investigações no domínio das ciências matemáticas e da física. O empenho manifestado na procura dos vocábulos mais ajustados para exprimir as experiências mostra o estreito elo que liga a reflexão linguística à investigação com vista ao verdadeiro conhecimento das coisas. Importa acentuar o impacto do contexto ético-político no pensamento de Antifonte, e é nessa perspectiva que ganha sentido a definição de justiça (dikaiosyne) e do justo (to dikaion), como o não transgredir as leis que a cidade reconhece e impõe. O indivíduo, na qualidade de membro da comunidade política, situa-se no plano da polis e do exercício da cidadania, comprometendo- se, sem condições, a respeitar as leis, enquanto tais. Mas o regime da utilização que o homem deve fazer das leis vigentes muda substancialmente, consoante este se encontra numa situação pública (com a presença de testemunhas) ou numa situação privada (na ausência de terceiros e sem a possível interferência destes). Avulta, aí, a oposição entre as prescrições impostas pela legalidade e as que advêm da necessidade da natureza, e a utilidade de que umas e outras se revestem para aqueles que delas fazem uso e a elas se subordinam. De forma inequívoca, Antifonte pronuncia-se a favor da superioridade das prescrições da natureza em relação às prescrições legais, pois as primeiras são as que estão na linha do interesse próprio do sujeito. Divergem, além disso, de maneira determinante, nas sanções susceptíveis de atingir aqueles que as desrespeitam: no caso das normas legais, impostas pela cidade, a sanção depende de o ato praticado ter sido presenciado por outrem; no caso das normas da natureza, a infração ao prescrito envolve a correspondente sanção, haja ou não testemunhas. Não se trata, contudo, de uma modalidade de “direito natural” ou de valorização implícita das normas “não escritas”, em detrimento das disposições expressamente reconhecidas no direito positivo vigente, mas de um naturalismo que apela para a universalidade associada à condição do indivíduo humano, na sua especificidade de sujeito criador de cultura. É nessa qualidade que o povo grego se assume a si mesmo na consciência daquilo que o distingue dos demais povos, e não nas características que relevam de uma natureza biológica comum. Numa mesma ordem de ideias, a superioridade dos Gregos radica na respectiva paideia, cuja condição sine qua non é o princípio de que os cidadãos se comprometem a obedecer às leis. Assim se compreende que o exercício correto da cidadania seja considerado indispensável à concórdia, esteio fundamental da política, à margem do qual não são possíveis a paz e a felicidade que devem reger a convivência social.

 

A crítica de Antifonte aos nomoi não se baseia em opor a concepção de “justo por natureza” à de “justo por convenção”, mas de referir as aporias latentes na doutrina tradicional do nomoi dikaion. O critério de destrinça é o da utilidade (to synpheron) ou o caráter benéfico das disposições legais em apreço, o que era aceite de forma consensual, correspondendo a um princípio muito difundido nas obras de medicina racional. Assim, tendo de optar por uma medida padrão, a ordem da natureza impunha-se como o modelo de normatividade mais compatível com o que era ajustado ao interesse próprio individual e ao da comunidade política.

 

Nas críticas dirigidas por Antifonte a Sócrates, realça-se o contraste dos gêneros de vida do filósofo e do sofista, um tema muito em voga na época. Sócrates apresenta-se, na óptica de Antifonte, como mestre de “infelicidade”, pela pobreza em que vivia e pela manifesta falta de sucesso político, mas responde às críticas deste com uma contra-argumentação consequente, em que se destaca a divergência de fundo sobre o que se entende por “felicidade”. O filósofo valoriza a sua independência e a liberdade de falar com quem lhe aprouver, bem como a auto-suficiência, que lhe advém da frugalidade das suas necessidades. Destaca-se, ainda, como ponto de controvérsia, o montante dos honorários auferidos pelos ensinamentos facultados. Ironicamente, Antifonte insinua que a ausência de pagamento seria a contrapartida correta para o efetivo valor do ensino ministrado por Sócrates. A defesa deste último é elucidativa para quem queira compreender os motivos que tornavam criticáveis, aos olhos dos contemporâneos dos sofistas, a remuneração da docência, reputada como uma atividade mercenária, análoga à prostituição. Com efeito, defende-se que a prática pedagógica em benefício dos demais devia ser realizada num contexto de gratuitidade e de amizade. Delineia-se, assim, o perfil do homem “belo e bom” (kalos kagathos), o homem sábio, que exerce, na plenitude a cidadania correspondente à excelência (arete) própria do ser humano enquanto tal. É particularmente significativa a resposta de Sócrates a respeito da sua participação na vida política. Considera ele que a leva a cabo, de forma indireta, com uma incansável atividade em prol da educação dos seus concidadãos. Confira em Platão, Apologia de Sócrates, 31 a-e.

 

As atividades de Antifonte adivinho, acerca das quais não dispomos de informações pormenorizadas, estavam ligadas à prática de interpretação dos sonhos. Untersteiner (I Sofisti, II, cit., pp. 322-325. Já tem tradução para o português) salienta o cunho racionalista dessa adivinhação (divinatio artificiosa), contraposta a uma outra de cunho religioso (divinatio divina), que, na linha da praticada por Demócrito, permitia explicar de maneira favorável um sonho funesto e vice-versa. Enquanto os defensores da concepção naturalista, segundo a qual uma ordem inexorável regia todas as coisas, acreditavam numa espécie de providência divina que governava tudo, os apologistas da adivinhação assente na arte, com um sentido mais aberto da variação das normas e dos costumes, admitiam que o conteúdo dos sonhos pudesse ser objeto de interpretações de sentido diferente. A teoria da interpretação dos sonhos está, por conseguinte, em consonância com as concepções filosóficas de Antifonte, assim como a mântica reconduz, na sua perspectiva, a uma modalidade de exercício racional como “conjectura do homem sábio” (confira A 9).

 

Informa Plutarco, na sua obra Vida dos Dez Oradores (l, p. 832 c-833 d) que: “Diz-se que Antifonte de Ramnunte tinha composto tragédias individualmente e em colaboração com o tirano Dionísio. Enquanto se dedicava ainda à poesia, compôs uma Arte de Não Sofrer 15, que consiste numa terapêutica como a que os médicos ministram aos doentes. Em Corinto, arranjou um quarto junto da praça; afixou um aviso de que, por meio da palavra, podia curar os que se afligiam e, procurando saber as causas, consolava os doentes. Considerando, no entanto, que esta arte era indigna de si, dedicou-se à retórica. Alguns atribuem a Antifonte o livro de Glauco de Regilo, Dos Poetas. Já Filóstrato, na sua obra Vidas dos Sofistas (1, 15, 2) dia que: “Antifonte era muito persuasivo e foi cognominado Nestor por persuadir a respeito de tudo o que dissesse; anunciava “lições que dissipam a dor”, sustentando que nenhuma dor havia tão terrível que não conseguisse arrancá-la da consciência.

 

A Arte de Não Sofrer (Tecnh Alupiaz) consiste numa técnica de defesa contra a dor em geral; é uma espécie de terapêutica, semelhante à praticada pelos médicos com os seus pacientes. Envolvia uma aprendizagem que tinha algo de comum com a psychagogia gorgiana, na medida em que implicava a crença na íntima relação entre fatores físicos e psíquicos. Não se reduzia, contudo, a meros procedimentos catárticos, pois baseava-se na arte psicológica, mediante a qual se anulavam ou superavam os conflitos, restabelecendo a unidade íntima. Consistia, por conseguinte, numa aplicação da doutrina da harmonia universal, na qual desempenha um papel fulcral o conceito de concórdia ou de homonoia (óhóvgux). A alupia é alcançada por meio de palavras ou de argumentos, (dia logon, dia logwn), o que remete para a subordinação dos aspectos afetivos e volitivos ao poder dos discursos, enquanto mediadores, no plano cognitivo, da representação das coisas. Visa-se, pois, a mudança de sentimentos do indivíduo por meio de raciocínios adequados. A alusão ao abandono da prática desta arte em benefício da retórica é provavelmente uma informação irrelevante, derivada do intento de justificar, diacronicamente, as atividades díspares de Antifonte.

 

B. FRAGMENTOS

 

Antifonte. Da Verdade, livros 1 e 225

 

Antifonte e Critolau: o tempo é pensamento e medida, não substância.

 

Critolau, filósofo peripatético, viveu no século II a.C. A captação da physis processa-se numa sequência temporal que torna possível um juízo de existência. O tempo é a medida da ordem das experiências, físicas ou intelectuais, implícitas nas representações correspondentes às technai. A realidade substantiva das coisas está fora do tempo, o que justifica a afirmação por parte do sofista de que o tempo é pensamento e medida e não substância. Antifonte mostra-se muito inclinado às considerações morais associadas à fugacidade e ao carácter irreversível do tempo: confira M. Untersteiner, I Sofisti, II, cit., pp. 290-292. (esta obra já está traduzida para o português).

 

II Física, antropologia, ética

 

Harpocrácion, “por meio do vórtice” (dinwi), em vez de “por meio de um torvelinho” (w dinhsei), Antifonte, rio segundo livro Da Verdade.

 

Para Antifonte, a Lua brilha com a sua luz própria, mas, estando na natureza de um fogo mais forte obscurecer o mais fraco, a luz da Lua é ocultada e obscurecida pela projeção do Sol sobre ela, o que acontece também com os outros astros.

 

Fragmento A

 

... Justiça consiste em não transgredir as normas da cidade, onde se vive como cidadão. Assim, um indivíduo usará melhor a justiça no seu interesse próprio se, na presença de testemunhas, considerar as leis como importantes e, estando sem testemunhas, se respeitar as leis da natureza. Com efeito, as exigências das leis são adventícias e as da natureza são necessárias. E as exigências das leis são o resultado de um acordo e não de uma disposição natural, enquanto as da natureza são o resultado de uma disposição da natureza e não de um acordo. Assim, se um indivíduo, ao transgredir as normas, passar despercebido aos que estabeleceram as leis, escapará à desonra e ao castigo, mas, se não passar despercebido, não escapará. Se, pelo contrário, alguém excede o possível e violenta alguma das exigências inerentes à natureza, se passar despercebido a todos os homens não é menor o mal; bem como, se todos assistirem, não é maior o mal. Sofre dano não na aparência mas na verdade. Este é essencialmente o objeto desta investigação: mostrar que muitas das disposições justas segundo a lei estão em conflito com a natureza 79. As leis estipulam o que os olhos devem e não devem ver, o que os ouvidos devem e não devem ouvir, o que a língua deve e não deve dizer, o que as mãos devem e não devem fazer, e até onde os pés devem e não devem ir, e o que o espírito deve e não deve desejar. Nada está mais próximo nem é mais afim da natureza sejam as coisas de que as leis afastam os homens sejam as coisas para as quais os encaminham. Tanto o viver como o morrer são próprios da natureza; a vida é uma das vantagens que os homens têm, a morte é uma das desvantagens 81.

 

[A justiça consiste em respeitar as normas da polis em que se exerce a cidadania, sendo o impacto “político” assinalado desde o começo do texto. O ser humano, enquanto membro de uma comunidade política, é caracterizado pelo seu estatuto de cidadão e pelo modo como atua, dadas as imposições quer da natureza quer da cidade a que pertence. Ora, na maioria das vezes, há antagonismo entre aquilo que umas e outras estabelecem. Uma vez que o critério dominante é o interesse próprio, a situação difere significativamente, consoante o homem age na presença de testemunhas ou na ausência destas. No primeiro caso, o indivíduo tem de obedecer ao prescrito pelas normas legais, para evitar incorrer nas penas estipuladas; no segundo caso, importa seguir as leis naturais, pois a sua inobservância implica sanções ou castigos inexoráveis que advêm da ordem necessária das coisas. Não se trata, porventura, da exposição da doutrina de Antifonte acerca da justiça, mas são enfatizadas as aporias inerentes à defesa rígida dos nomoi e os inconvenientes da subordinação acrílica dos indivíduos às normas convencionais. Prevalece como princípio norteador da vida humana a utilidade, a qual deve ser estabelecida em função das imposições da natureza e não em função de acordos derivados de opiniões oscilantes e mutáveis. Destaca-se o imperativo de investigar a natureza das realidades, objeto da experiência, sendo vincada a aproximação implícita entre “natureza” e “verdade” (entenda-se “conhecimento racional daquilo que as coisas realmente são”)].

 

[Antifonte, no âmbito da polêmica centrada na oposição entre nomos e physis, defende claramente as vantagens resultantes da obediência às prescrições da natureza, em detrimento da submissão às imposições artificiais das leis e aos acordos instituídos na polis. O sofista faz-se porta-voz das críticas de muitos dos seus coetâneos contra a excessiva intromissão do “público” no “privado”, denunciando a multiplicidade de leis que pretendem regulamentar a vida dos indivíduos (com um pormenor abusivo, desde o que devem ver e ouvir, fazer ou não fazer até aos passos que têm de dar e ao que dizem).]

 

[Com efeito, o critério regulador da ação é o da utilidade, que se coaduna com o que é prescrito pela natureza. No entanto, se bem que o nascer e o morrer sejam próprios da natureza, a morte constitui uma exceção a essa coincidência do natural com o vantajoso.]

 

As vantagens estabelecidas pelas leis são cadeias impostas à natureza, enquanto as estabelecidas pela natureza são livres. Por isso, de modo nenhum as coisas que provocam dor beneficiam com justa razão a natureza humana mais do que as que deleitam. Nem mesmo as coisas que provocam tristeza são mais vantajosas do que as que alegram. De fato, as coisas verdadeiramente vantajosas não devem prejudicar, mas ajudar. Assim, as coisas que são vantajosas por natureza... são... do que estas. E todos aqueles que, ofendidos, se defendem não tomando eles próprios a iniciativa da ação e todos os que procedem bem para com os pais, mesmo que estes sejam maus para eles, e todos os que aceitam testemunhar sob juramento, não testemunhando eles próprios sob juramento, muitos destes que se referiram estão, como se descobrirá, em conflito com a natureza. De fato, é-lhes inerente um maior sofrimento, sendo possível um menor, um menor deleite, sendo possível um maior, e sofrer dano, sendo possível não sofrer. Ora, se existir alguma proteção nas leis para quem aceita tais exigências e um castigo para quem não as aceita, mas as refuta, a obediência às leis não será inútil. Mas é evidente para quem aceita tais exigências que a justiça segundo a lei não basta para proteger, já que, em primeiro lugar, permite que o ofendido sofra o dano e o ofensor ofenda; e não impede o ofendido de sofrer o dano e o ofensor de ofender. Quanto à punição, não está mais do lado do ofendido do que do ofensor. De fato, tem de persuadir os que lhe vão fazer justiça de que sofreu um dano e tem de reclamar poder obter um veredicto justo. Cabe igualmente ao ofensor refutar isto...

 

[Como foi dito, o princípio, formulado em termos genéricos, é o de que se deve buscar sempre o verdadeiro interesse de cada um, coincidente com o que é mais vantajoso e benéfico para si próprio. Ora, frequentemente, a obediência às leis não assegura aos que agem em conformidade com elas a desejada proteção, tornando-se patente o conflito entre as vantagens acauteladas pelas disposições legais e o que, de fato, é benéfico por natureza. Pela nossa condição de cidadãos estamos inseridos na ordem legal e daí advêm inevitáveis conflitos que resultam de imposições formuladas em termos negativos: não transgredir as normas; não ser injustamente injusto; não tomar parte, ativa ou passiva, na injustiça. Contudo, só ao abrigo destas prescrições se pode salvaguardar o exercício positivo do justo por natureza, emergente do que é importante para nós. Confira B. Cassin, L’Effet Sophistique, cit, pp. 168-170. (esta obra já está traduzida para o português)]

 

Fragmento B

 

Os que descendem de pais ilustres nós respeitamos e veneramos, mas os que não descendem de casa ilustre nem respeitamos nem veneramos. Nisto, comportamo-nos uns em relação aos outros como bárbaros, já que, por natureza, todos, quer bárbaros quer Gregos, temos uma natureza semelhante em tudo. Basta examinar as coisas que são necessárias por natureza a todos os homens. Elas estão ao alcance de todos da mesma maneira e em todas não há distinção entre um bárbaro e um grego; todos respiramos o ar pela boca e pelo nariz e todos comemos com as mãos...

 

[O estado fragmentário do texto dificulta a sua leitura, sobretudo porque não é claro qual o complemento direto do predicado “nós respeitamos e veneramos”. A versão do fragmento apresentada por Diels-Kranz constituiu o suporte para a interpretação tradicional, segundo a qual Antifonte critica a discriminação no tratamento dos indivíduos com base na sua condição social, privilegiando os que tenham ascendência ilustre. A descoberta de um novo fragmento (fr. 3647), que veio completar o anterior (fr. 1364), permitiu introduzir emendas no corpo do texto, susceptíveis de alterar a sua leitura. A reconstituição proposta é a seguinte: “nós conhecemo-las e veneramo-las. Mas nós não conhecemos nem veneramos [as leis?] daqueles que moram longe. Nisso, de fato, comportamo-nos como bárbaros uns em relação aos outros, enquanto, por natureza, em tudo, da mesma maneira, nos encontramos aptos a ser Gregos tal como a ser bárbaros.” Com efeito, a primeira versão veiculava uma concepção igualitária dos homens, em sintonia com as opiniões democráticas e progressistas atribuídas ao sofista, mas não se ajustava às posições aristocráticas e conservadoras associadas ao orador. A hermenêutica assente no texto corrigido modifica muito o sentido do fragmento. Está em discussão o posicionamento em relação às leis (ta nomima, ta nomima), numa acepção alargada que abrange os usos e os costumes e as opiniões. Estas constituem um patrimônio comum e mantém-se em relação a elas a “veneração”, associada ao termo grego sebein, que envolve algo da religiosidade inerente ao culto do sagrado. Enquanto os bárbaros valorizam as leis segundo os respectivos conteúdos, de acordo com as variações de maior ou menor proximidade e outros fatores arbitrários, os Gregos definem-se pela universalidade do respeito formal pela lei. De fato, o que distingue os homens entre si não é o ponto de partida biológico, pois nessa ordem são todos iguais, mas os diferentes modos de se comportar em relação à lei.]

 

Se a justiça é reputada como conveniente, testemunhar a verdade uns em relação aos outros é considerado justo e não menos útil ao modo de vida dos homens. Certamente o que faz isto não será justo, se é justo não causar dano a ninguém que não nos tenha feito mal. É pois necessário que aquele que testemunha, mesmo que testemunhe a verdade, cause dano de alguma maneira a outrem e, ao mesmo tempo, venha a sofrer mais tarde ele próprio dano por causa do que disse, na medida em que, devido ao seu testemunho, o visado por aquele testemunho é condenado ou perde as riquezas ou a própria vida por causa daquele a quem não causou nenhum dano. Portanto, nisso causa dano àquele contra quem testemunha, porque causa dano a quem não lhe causa dano; e ele sofre dano por parte do que foi visado pelo seu testemunho, porque é odiado por ele, ao ter testemunhado a verdade. E não só é prejudicado devido ao ódio, mas também porque tem de se proteger continuamente daquele contra quem testemunhou. Assim, este torna-se para si um inimigo tal que lhe faz mal, sempre que puder, quer em palavras quer em atos. E tanto os males que sofre como os que provoca não parecem ser pequena injustiça. Não é possível que o testemunhar contra outrem seja justo, bem como o não causar dano e o não sofrer dano(?); mas é necessário que uma destas atitudes seja justa ou que sejam ambas injustas. É claro que proferir sentenças, julgar e ser árbitro com vista a uma decisão final não são coisas justas, pois beneficia uns e prejudica outros e, neste caso, se os beneficiados não sofrem qualquer dano, sofrem os prejudicados.

 

[Sublinha-se o conflito latente entre a obrigação de prestar testemunho em abono da verdade, imprescindível para o bom funcionamento das instituições na polis, e o princípio equitativo de não causar dano a quem nos não causou dano a nós. Um comportamento desse tipo desencadeia forçosamente uma dinâmica de ressentimento e de vingança, com efeitos negativos de gravidade imprevisível.]

 

[Antifonte salienta as aporias inerentes ao exercício das funções judiciais, na estrutura regulada pelas normas da justiça convencional, destacando as debilidades e os paradoxos das disposições vigentes, à luz do que é justo por natureza, segundo o critério da utilidade e do genuíno interesse do indivíduo.]

 

Da Concórdia

 

(...)

 

Jâmblico, epístola Da Concórdia. A concórdia, como a própria palavra indica, compreende em si mesma reunião, partilha e unidade de formas semelhantes de pensar. Partindo deste significado, estende-se às cidades e às casas e a todos os centros públicos e privados e a todos os organismos naturais e parentelas públicas e privadas. Para lá disso, compreende também o acordo que cada um tem consigo mesmo: na verdade, quem é governado por um só pensamento e por uma só disposição está em concórdia consigo mesmo, mas quem está em discórdia consigo mesmo e tem ideias divergentes fica dividido. Assim, aquele que mantém sempre o mesmo pensamento está repleto de harmonia, enquanto o que é instável nas suas ideias, levando por ora por uma opinião ora por outra, é versátil e inimigo de si mesmo.

 

Estobeu (4, 22) sobre Antífonte, diz: “Pois bem, que a sua vida progrida e deseje casamento e mulher. Esse dia e noite dão início a uma nova vida e a um novo destino, o casamento é uma grande prova para o homem. Se, de fato, acontecer que a mulher não seja adequada, como lidar com a desgraça? O repúdio é difícil: tornar os amigos inimigos, pessoas com mesmas ideias e os mesmos sentimentos, depois de os considerar dignos de si e de ter sido considerado digno por eles. Mas é difícil também manter tal aquisição, passar por sofrimentos, quando se julgava obter alegrias. Ora bem, não falemos dos aspectos conflituosos, fale-se antes dos aspectos mais vantajosos de entre todos. Que maior prazer pode o homem ter do que uma mulher que corresponda aos seus desejos? O que há de mais doce sobretudo para um jovem? Mas próximo do prazer está também o sofrimento. Os prazeres não surgem or si próprios, acompanham-nos as dores e as fadigas.

 

Assim, também, as vitórias olímpicas, as vitórias píticas e outras competições desse gênero, os saberes e todos os prazeres exigem ser conquistados com grandes cuidados. As honras, os prêmios, os engodos que o deus oferece aos homens conduzem à necessidade de grandes fadigas e suores. Se eu tivesse outro corpo como este [de que fosse responsável], tal como sou responsável por mim mesmo, não conseguiria viver, tendo em conta as muitas preocupações que tenho com a saúde do meu corpo, com o sustento do dia-a-dia, com a honra e o saber, com o bom nome e com a reputação. O que seria se eu tivesse outro corpo como este de que fosse responsável, tal como sou responsável por mim mesmo? Não é pois evidente que a mulher, mesmo que corresponda aos seus desejos, não causa ao homem menos prazeres e menos aflições do que ele causa a si mesmo? É que o homem passa a ter de cuidar da saúde, do sustento da vida, do saber e do bom nome de duas pessoas! Suponhamos que lhes nascem filhos. Então a vida fica cheia de preocupações, e o espírito perde o impulso da juventude e [a] expressão do semblante deixa de ser a mesma.”

 

É ainda Estobeu quem diz que: “De Antifonte: “O viver assemelha-se a uma vigília efêmera, e a duração da vida é, por assim dizer, um só dia, em que, mal levantamos os olhos para a luz, damos lugar aos outros que vêm depois.” E prossegue: “De Antifonte: “Toda a vida é surpreendentemente fácil de acusar, meu caro; não tem nada de notável, nem de grande nem de solene, mas tudo é pequeno, fraco, efêmero e com grandes sofrimentos à mistura.” E mais: “De Àntifonte: “Há alguns que trabalham, economizam, sofrem privações e acumulam patrimônio, experimentando assim tanto prazer quanto se pode imaginar que experimentem. Mas, quando se separam do dinheiro e o utilizam, sofrem como se se separassem da própria carne”.

 

De Antifonte: “Conta uma história um homem, vendo que outro tinha acumulado muito dinheiro, pediu que lho emprestasse a juros. Mas ele não quis; tinha tendência para desconfiar e para não ajudar ninguém. Levou o dinheiro e depositou-o algures. E um homem, ao saber o que ele fizera, robou-o. Passado algum tempo, o depositante veio e não encontrou a riqueza. Sofreu então muito por causa da sua desventura, sobretudo por não ter emprestado o dinheiro a quem lho tinha pedido, pois nesse caso teria sido conservado por ele e teria rendido mais. Ao encontrar-se com o homem que um dia lhe pedira o empréstimo, lamentou o seu infortúnio, dizendo que tinha errado e se arrependia de não lhe ter concedido o favor e de, pelo contrário, ter sido desagradável para com ele, já que o dinheiro estava completamente perdido. O outro exortou-o a não se preocupar, mas a considerar que possuía o dinheiro e que não o tinha perdido, pondo uma pedia no mesmo lugar. 'Quando o possuías, não o usaste; por isso, agora não penses que estás privado dele. Efetivamente, guando uma pessoa não se serve nem se servirá de alguma crasa, quer ela exista quer não exista, não é nem mais nem menos prejudicado. Quando a divindade quer conceder ao homem bens mas não de forma demasiado generosa, proporciona-lhe muito dinheiro [e] torna-o pobre em bom senso; ao retirar-lhe um destes bens, deixa-o privado de ambos.”

 

De Antifonte: “Quem não desejou nem experimentou o que é torpe ou mau não é prudente. Na verdade, não tem nada que dominar de forma a ficar em harmonia consigo próprio.”

 

“Nada é pior para os homens que a falta de disciplina”.

 

[O tom conservador do elogio da disciplina pareceu, numa primeira abordagem, inadequado às ideias progressistas tradicionalmente atribuídas ao sofista, mas coaduna-se, no âmbito da hermenêutica mais recente sobre Antifonte, com o reconhecimento da importância atribuída por este ao respeito pelas leis, enquanto expressão do justo por natureza, fundamento necessário da vida colectiva.]

 

É inevitável que [a criança] se torne semelhante em caráter àquele com quem convive a maior parte do dia.

 

Como diz Antifonte, “gastar e desbaratar com os prazeres, a riqueza mais preciosa – o tempo”.

 

Fragmentos incertos entre o orador e o sofista

 

“Sensível” (dusanioz), Antifonte: um homem que se aflige com tudo, mesmo que seja coisa pequena e insignificante.

 

Fonte: todas as informações acima sobre Antifonte foram retiradas de: SOFISTAS – testemunhos e fragmentos, tradução e notas: Ana Alexandre Alves de Sousa e Maria José Vaz Pinto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005, a qual, portanto, deve ser consultada.

 

 
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