Duplos Discursos Identificação

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Duplos discursos ou Dissoi logoi.

                                                                        Duplos discursos ou Dissoi logoi.

Os Duplos Discursos (Dissoi Logoi) integram um texto anônimo, encontrado entre os manuscritos de Sexto Empírico. O título corresponde às palavras iniciais do primeiro capítulo, sendo a obra também conhecida por Discussões (Dialexeis). Escrita por volta de 400 a. C., em dialeto dórico com elementos jônicos, contém materiais heterogêneos, veiculando um conjunto de concepções muito propagadas na época e conotadas com pontos de vista sofísticos. A datação baseia-se na alusão feita na referida obra à vitória recente dos Espartanos sobre os Atenienses e seus aliados na Guerra do Peloponeso (l, 8), mas o valor deste testemunho suscitou algumas dúvidas (confira G. B. Kerferd, The Sophistic Movement, cit., p. 54, já existe tradução para o português). Embora as posições atribuídas ao autor do pequeno tratado sejam sobretudo associadas a Protágoras, essa interpretação não é consensual, pois há quem destaque como determinantes dos conteúdos expressos as influências de Hípias, de Górgias e outras oriundas dos círculos socráticos. Todos reconhecem a composição eclética da obra cujo teor reflete uma série de lugares-comuns, correntes no meio “dos que filosofam” (cf. 1.1), na acepção ampla daqueles que se interessam pelas questões do saber e buscam a paideia. A estrutura do tratado carece de uniformidade, possuindo os quatro primeiros capítulos um esquema assente em antilogias (Do Bem e do Mal, Do Decente e do Vergonhoso, Do Justo e do Injusto, Da Verdade e da Falsidade), embora o mesmo não suceda com os restantes capítulos que se diferenciam pelo estilo de argumentação e pelos temas debatidos, sem, no entanto, perder concatenação e unidade global. Mantém-se a apresentação dos discursos opostos, mesmo que a estrutura antilógica fique implícita ou desapareça. Os assuntos expostos reportam-se, como dissemos, a problemáticas de discussão habitual na época. O quinto capítulo foca o tema genérico da coincidência dos opostos, o sexto aborda a controversa possibilidade do ensino da arete, o sétimo critica a escolha por sorteio para os cargos públicos, o oitavo descreve os traços mais marcantes dos modelos de político e de orador, preconizando o conhecimento de todas as coisas como condição de acesso aos diversos saberes e artes, enquanto o nono elogia a técnica da memória entre outras afins.

O intento de estabelecer elos de identificação entre as ideias veiculadas no texto e as opiniões dos principais sofistas (com particular destaque para os já mencionados Protágoras, Górgias e Hípias) ou de outros autores absorveu, durante muitas décadas, a atenção dos especialistas, sem se ultrapassarem conclusivamente as divergências. Com efeito, são insuficientes os meios de que dispomos para apurar as posições do hipotético autor, nos meandros dos juízos enunciados em termos de “tese” e de “antítese”. De um modo geral, os referidos “duplos discursos” ou os denominados argumentos “antitéticos” não se enquadram na categoria lógica da contradição em sentido próprio, mas numa forma alargada de relativismo, resultante de modos de ver contrários, de acordo com os complexos e múltiplos fatores que determinam as opiniões de cada indivíduo.

Não se reduzem estes procedimentos ao modelo de argumentação erística que é objeto de crítica no Eutidemo platônico. Nesta obra, os sofistas mostravam a mestria na arte de interrogar e, no contexto do diálogo baseado em intervenções breves, com perguntas e respostas, o inquirido era intimado a optar por um dos termos da alternativa formulada de forma dilemática. A asserção assumida implicava a aceitação das respectivas consequências, o que levava a reconhecer a manifesta contradição entre estas e as afirmações anteriormente enunciadas ou a admitir a impossibilidade de sustentar em simultâneo, sobre o mesmo assunto, discursos radicalmente antagônicos e exclusivos entre si. A contraposição antilógica remetia para a refutação que constituía a arma por excelência de qualquer discussão, visando “vencer” o eventual adversário.

A modalidade de argumentação prosseguida nos Dissoi Logoi não coincide com a antilogia em sentido restrito, inerente ao confronto erístico de razões opostas. Situa-se, antes, na linha da arte antilógica atribuída a Protágoras e da qual as respectivas Antilogias (que não chegaram até nós) talvez nos dessem exemplos esclarecedores. L. Versényi (Socratic Humanism, cit., pp. 20-21) aponta a íntima dependência entre os argumentos contrários e o relativismo que decorre quer do carácter polissemântico dos termos, susceptíveis de terem significados distintos conforme os contextos em que são usados, quer da complexidade das várias situações particulares. O estudioso acentua, por conseguinte, a distância que separa este tipo de oposição da contradição propriamente dita: “O esquema antilógico dominante nos Dissoi Logoi, 1-4, é simples: bom e mau (decente e vergonhoso, justo e injusto, verdadeiro e falso) são o mesmo e não são o mesmo. O mesmo porque a mesma coisa pode ser boa e má (justa e injusta, etc.) para diferentes indivíduos, em diferentes situações e perspectivas, em diferentes tempos; não são o mesmo, porque a mesma coisa não pode ser boa e má para o mesmo homem, nas mesmas situação e perspectiva, ao mesmo tempo. Os enunciados opostos (o mesmo e o não mesmo) são igualmente verdadeiros, sendo apenas aparentemente contraditórios. O seu caráter paradoxal surge do uso das mesmas palavras (bom e mau, etc.) em diferentes contextos; o paradoxo é resolvido quando ficamos conscientes da diferença que dá à mesma palavra um significado diferente, mas não contraditório” (ibidem, cit., pp. 20-21). Em moldes análogos, se desenrolam os duplos discursos utilizados no contexto da atividade dos médicos hipocráticos, que defenderam juízos contrários perante uma mesma situação ou, inversamente, o mesmo juízo perante situações contrárias, dada a pluralidade dos fatores presentes nos casos particulares. O uso deste gênero de argumentos é ricamente ilustrado nas obras de historiadores, como Heródoto e Tucídides, na comédia por Aristófanes (Nuvens), na tragédia, por Eurípides, entre outros. Insere-se no campo da arte de desenvolver raciocínios “a favor” e “contra” um determinado ponto de vista, de que nos fala Sêneca (Ep., 88.43; cf. DK 80 A 20), no sentido de mostrar os dois lados de cada argumento, mais numa perspectiva retórica do que em moldes estritamente lógicos ou filosóficos.

A unidade de conjunto de que se reveste o tratado foi defendida por T. M. Robinson (Contrasting Arguments, An Edition of the Dissoi Logoi, Salem, New Hampshire, 1979). Este sublinha a conexão dos conceitos relativos à sabedoria (sophia) e à ignorância (amathia) com os relativos à excelência (arete). Assim, regista-se uma sequência natural de assuntos: primeiro, a discussão em esquema antilógico dos conceitos morais e filosóficos, realizada nos primeiros parágrafos (caps. 1-4); depois, o interesse pelas questões respeitantes ao significado dos opostos (sophia/amathia) (cap. 5) e à viabilidade da aprendizagem da arete (cap. 6); por fim, a abordagem de questões aparentemente díspares, tais como a distribuição dos cargos públicos por sorteio (cap. 7), a descrição do paradigma do político/orador (cap. 8) e o papel do exercício da memória, no plano da sabedoria e da vida prática (cap. 9). O esteio que proporciona a harmonia das diversas partes baseia-se na articulação existente entre o interesse especulativo e o empenho no controle das artes indispensáveis à intervenção prática nas atividades da polis.

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