HÍPIAS FRAGMENTOS

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Hípias de Élis.

 

Hípias, filho de Diopites, nasceu em Élis, na zona ocidental do Peloponeso, e era um sofista famoso à data do processo de Sócrates (399 a. C.), discípulo de Hegesidamo.

 

O traço mais marcante da sua personalidade é o enciclopedismo (polymathia), que decorre de interesses polifacetados e polivalentes, que abrangiam, além das temáticas antropológicas, de cariz ético-político, as ciências da natureza e as matemáticas. Hípias reivindicava o domínio de técnicas variadas; assim, aliava o “saber fazer” relativo às artes artesanais, de que se vangloria no diálogo platônico homônimo (Hípias Menor, 368 b-DK A 12), como, por exemplo, o fabrico do vestuário, do calçado ou dos adornos, a competências, de índole muito diversificada, como a gramática, a música, a métrica, a composição de todo o tipo de discurso, a pintura, a escultura, as ciências que eram objeto de estudo por parte dos sábios do seu tempo (a astronomia, a geometria, a aritmética). Deste modo, Hípias é um exemplo muito significativo para se compreender que a formação dos sofistas estava longe de se limitar aos aspectos formais das palavras.

 

Fez Hípias uma história das genealogias e dos eventos respeitantes aos heróis e aos homens ilustres, assim como o levantamento dos nomes dos vencedores nos Jogos Olímpicos, o que teria especial sucesso entre os Espartanos, mas revela, ao mesmo tempo, uma incipiente sensibilidade à arqueologia das tradições e a uma forma de consciência coletiva em relação ao passado. Nesta ordem, os dados inventariados, as listas de nomes, as informações sobre as histórias dos deuses e dos cultos e sobre a evolução das matemáticas proporcionaram elementos relevantes para estabelecer as bases cronológicas da história grega em geral e da história religiosa e da história das ciências matemáticas em particular. Também se reporta à reputação deste sofista uma memória invulgar, fortalecida pelo exercício de técnicas específicas adequadas à memorização eficaz (arte mnemônica, mnemotecnia) que constituíam também matéria de ensino. O objetivo principal de uma formação tão exaustiva, no plano especulativo e no plano prático, visava o ideal de auto-suficiência ou autarcia (autarcheia), em que não estaria em jogo diretamente a indiferença ao que não depende de nós e a concomitante defesa em relação às eventuais agressões de fatores extrínsecos, mas a autonomia de se bastar a si mesmo, acautelando as soluções para as carências do dia-a-dia, no âmbito quer da subsistência individual quer das necessidades da vida social.

 

Hípias viajou muito e desempenhou frequentemente funções de embaixador, sendo o representante das diligências diplomáticas da sua cidade natal junto dos governos de outros estados, como Atenas, Esparta ou Sicília.

 

Este pensador, pelas preocupações que manifestou no campo filosófico, é habitualmente inserido numa corrente “naturalística” da Sofística, dada a importância atribuída à reflexão sobre a natureza, sendo de salientar, por um lado, a continuidade estabelecida com a tradição especulativa, nomeadamente Tales e Empédocles, e, por outro lado, o caráter progressista e inovador das opiniões acerca da igualdade e da afinidade de todos os homens entre si, a partir da natureza que lhes é comum. Nessa linha, posiciona-se na controvérsia sobre a oposição entre nomos e physis, sustentando a superioridade das “leis não escritas”, baseadas na natureza universal e consonantes com a vontade dos deuses, sobre o direito positivo, assente nas particularidades das normas impostas pela polis.

 

Hípias escreveu muitas obras que não chegaram até nós, além daquelas cujos títulos nos são indicados e das quais temos fragmentos. São elas:

 

Diálogo Troiano,

 

Nomenclatura de Povos,

 

Lista dos Vencedores dos Jogos Olímpicos,

 

Coleção ou Recolha,

 

Elegias.

 

Não dispomos de fontes que confirmem a hipótese de Hegesidamo ter sido mestre do sofista. Quanto ao tipo de autarcia cultivado por Hípias, esta não consiste na ausência de necessidades, mas na independência do indivíduo em relação à comunidade. Acentua-se a auto-suficiência alcançada pelo domínio das artes ligadas à satisfação dos problemas da vida quotidiana. E é de assinalar, numa época em que os ofícios manuais eram objeto de menosprezo, a valorização das atividades artesanais referidas nos diálogos platônicos, levadas a cabo juntamente com a investigação de teor mais especulativo.

 

Platão, na sua obra Hípias Menor (368 b), faz seu personagem Sócrates dizer: “Tu és, sem dúvida, o mais sábio de todos os homens no maior número de artes, como eu uma vez te ouvi vangloriar, enquanto exibias o teu grande e invejável saber na praça pública, junto às bancas do mercado. Disseste, ao chegar um dia a Olímpia, que tudo o que levavas sobre o teu corpo era obra tua: primeiro era o anel que tinhas no dedo, porque sabias cinzelar anéis; obra tua, também, o sinete de outro anel, tal como a raspadeira [A raspadeira é uma escova] e o lécito [o lécito uma pequena ânfora, que servia para transportar o óleo com que os atletas se massajavam, depois da exibição física] que tu próprio fizeste. Depois, as sandálias que usavas tu dizias tê-las moldado na forma do sapateiro, e também teceras o manto e a túnica. E o que pareceu a todos mais extraordinário e prova de maior saber foi quando disseste que a faixa que levavas a prender a túnica (uma dessas faixas à moda persa) tinha sido confeccionada também por ti. Além disso, trazias contigo poemas — epopeias, tragédias, ditirambos — e muitos discursos em prosa sobre os mais variados assuntos. E apresentaste-te como um perito sem igual não só nas artes que acabei de referir como nos ritmos, harmonias e propriedades das palavras e em muitíssimas outras matérias para além destas, tanto quanto julgo lembrar-me. A propósito, já me ia esquecendo dessa tua arte — a da mnemônica — em que parece que pensas ser o mais brilhante”.

 

Sócrates, em conversa com Hípias, refere a dificuldade em encontrar um bom mestre, capaz de explicar o que é a justiça e de a ensinar. A complexidade do tema justifica, no entanto, que haja múltiplas maneiras de perspectivar o assunto e que, inclusive, o mesmo indivíduo não diga sempre as mesmas coisas acerca da questão. Nas várias etapas que conduzem ao saber, existe uma gradação, pela qual os nomes e os números são anteriores aos conceitos e seus instrumentos da aprendizagem. Para compreender a justiça, importa conhecer não só as leis vigentes, impostas no âmbito do direito positivo das diversas cidades, como também as leis não escritas, decorrentes da natureza humana e dotadas da universalidade do que é semelhante e comum a todos.

 

B. FRAGMENTOS

 

Conta Estobeu, em Florilégio (3, 38, 32). A partir de Plutarco, na obra Da Calúnia: “Hípias diz que existem duas espécie de inveja: uma, justa, quando se invejam os maus pelas honras que recebem; outra injusta, quando se invejam os bons. Os invejosos angustiam-se duas vezes mais do que os outros, pois sofrem não só com os seus próprios males como aqueles, mas também com o bem-estar alheio”.

 

Escritos duvidosos

 

Estobeu, no seus Florilégio (3, 42, 10), diz que “a partir da obra de Plutarco, Da Calúnia: “Hípias diz que a calúnia é uma coisa terrível; considera-a assim porque as leis não estipulam nenhum castigo para os caluniadores, como fazem para os ladrões. Todavia os caluniadores roubam o melhor bem do homem, a amizade; a violência, apesar de ser malfazeja, é mais justa do que a calúnia, por não estar escondida.”

 

O fato de as leis positivas não preverem a punição da calúnia, mais prejudicial do que a violência por ser dissimulada, atesta a imperfeição das normas vigentes em relação à justiça ideal. Com efeito, a condenação da dita calúnia como falta grave e de efeitos destrutivos é aceite por todos no plano do que é justo por natureza, o que torna desejável que sejam colmatadas tais lacunas a fim de haver coincidência entre o legal (to nominon) e o justo (to dikaion).

 

Aristóteles, na sua Poética, (25, 1461 a 21), afirma que “tem de se resolver a dificuldade prestando atenção à acentuação, como fez Hípias de Taso: “concedemos-lhe” e “o que não apodrece à chuva”. Idem, na obra Refutações Sofísticas (4, 166 b 1). Em debates orais não é fácil basear um argumento na acentuação, é mais fácil nos textos escritos e na poesia. Por exemplo, alguns reabilitam Homero da crítica segundo a qual é uma expressão insólita “o que não apodrece à chuva”; resolvem a dificuldade pronunciando ou com mais intensidade. E explicam o episódio do sonho de Agamémnon defendendo que o próprio Zeus disse: “concedemos-lhe que alcance a glória”, mas encarregou o sonho de o conceder.

 

A mínima mudança a nível gráfico ou sonoro transforma os nomes noutros nomes, como sucede com as diferenças de acentuação e com o uso de vogais longas e breves; algo de semelhante se dá para os números. Platão apresenta Hípias como um especialista dos “ritmos”, das “harmonias” e da “correção das letras”: confira em Hípias Menor (368 d, e Hípias Maior, 285 c-d). Os termos com uma origem musical seriam aplicados no plano da gramática e da linguística.

 

Imitações

 

Platão, na sua obra Protágoras (337 c). No Discurso de Sócrates, diz: Depois de Pródico, falou o sábio Hípias: “Homens aqui presentes, creio que todos vós sois parentes, familiares e concidadãos por natureza, e não por convenção. Por natureza o semelhante é parente do seu semelhante, enquanto a convenção, tirana dos homens, constrange-os de muitas maneiras contra a natureza. Para vós que conheceis a natureza das coisas, que sois os mais sábios dos Gregos e que, por isso mesmo, aqui vos reunistes no próprio Pritaneu da sabedoria da Hélade, na casa mais conceituada e mais rica desta cidade, é vergonhoso que vos comporteis de forma desapropriada a esta reputação, e que, pelo contrário, entreis em divergências uns com os outros, como os homens mais medíocres. Eu peço-vos e aconselho-vos, Protágoras e Sócrates, a chegardes a um acordo ditado por nós, como mediadores e árbitros. Tu, Sócrates, não deves procurar um tipo de discurso preciso que realça pela excessiva brevidade, se isso não agrada a Protágoras, mas larga e afrouxa as rédeas do teu discurso, para que vos pareça mais magnificente e harmonioso. Tu, Protágoras, dando pano a todas as velas, deixando-te ir ao sabor do vento, não fujas para o pélago das palavras, perdendo de vista a terra: sulcai ambos um caminho intermédio. Fazei assim e segui o meu conselho de escolher um juiz, um diretor, um presidente, que vigie a justa medida dos discursos de cada um de vós.” 64

 

A oposição entre o que existe por natureza e o que resulta de convenção era uma constante na época e muitos problemas particulares foram abordados na perspectiva ampla da controvérsia nomos/physis. Hípias argumenta que todos os homens têm entre si a semelhança que lhes advém da natureza comum e apela para que vivam em harmonia e em concórdia, no respeito pela lei, que radica na própria realidade das coisas. Contrapõe o caráter benéfico das leis não escritas, emanadas dessa ordem universal, às arbitrariedades e à violência das normas que constrangem a natureza das coisas. Assim, a lei positiva deverá alcançar valor efetivo, na medida em que se subordinar ao princípio da simpatia dos semelhantes, o qual comanda a correlação dos elementos opostos no seio da totalidade. O “naturalismo” de Hípias assume um carácter muito distinto do de Cálicles (confira isso em Platão, no seu Górgias, 481 b-492 c), pois, na perspectiva de Hípias, a natureza surge como “normativa”, e a justiça da ordem natural deve regular a vida humana em geral, pelo que o indivíduo precisa de procurar o conhecimento da natureza para orientar a sua vida e para resolver os conflitos que possa enfrentar. O naturalismo tem, assim, uma dimensão metafísica e religiosa e envolve um elevado nível de exigência ética. Por outro lado, as noções de igualdade e de semelhança entre todos os seres humanos, referidas primeiramente no âmbito do pan-helenismo, não deixam de ser alargadas ao plano universal do cosmopolitismo, e contêm as sementes de desenvolvimentos futuros, particularmente fecundos na reflexão antropológica.

 

Fonte: todas as informações acima sobre Hípias foram retiradas de: SOFISTAS – testemunhos e fragmentos, tradução e notas: Ana Alexandre Alves de Sousa e Maria José Vaz Pinto, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2005, a qual, portanto, deve ser consultada.

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