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Introdução (Sofística - a biografia do conhecimento).

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

"Deve-se falar como o vulgo e pensar como os sábios”, Francis Bacon.

 

"Não se preocupe com a verdade, você jamais vai encontrá-la”, Osório Barbosa, eu, parafraseando Salvador Dalí (“Não se preocupe com a perfeição, você nunca irá consegui-la”).

 

 

Introdução:

 

Tudo indica que a vontade de saber, de conhecer, de aprender é inata ao ser humano, e tanto isso é mais afirmado quando se presta atenção nos “porquês” das crianças. Elas sempre estão perguntando, exatamente por estarem começando a conhecer o mundo, embora ainda não saibam, e poucos adultos também sabem, que este conhecimento não tem fim. Assim é que, após esgotarem o conhecimento dos seus pais com seus “porquês”, estes acabam dizendo que “não têm mais tempo”, que “é hora de dormir”, ou aquilo que a criança quer saber é “feio”! E, com uma mentira, os pais, põem fim à busca da “verdade” pelo infante! O que é paradoxal. (Ou ainda pode ocorrer algo pior: responderem os genitores com o tradicional e castrante “por que sim”!)

Mata-se a curiosidade infantil com os argumentos mais “fajutos”, inconsistentes possíveis, prejudicando, assim, o pleno desenvolvimento das crianças, que começarão a se retrair em suas perguntas, justamente por medo de serem castigados ou serem tidos por impertinentes. É muito lamentável!

E se a curiosidade infantil esbarrar em deus, o mundo desaba sobre as cabeças das crianças e estas acabam sendo rotuladas de “endiabradas”, “possuídas pelo demônio”! O abuso, portanto, só aumenta.

Se deus existe, onde ele está?”, esta é uma pergunta infantil que porá fim a qualquer carreira de um jovem investigador, de um amante do saber!

A historinha a seguir ilustra a pergunta que lhe dá título:

 

"Onde nos perdemos nos caminhos da linguagem?”.

 

Juarez passava o dia ansioso esperando o retorno do pai para casa, pois na noite anterior tinham combinado o seguinte:

Pai, o senhor compra um carrinho novo para mim?

Sim, fora a resposta paterna.

Quando o pai chegou, ele correu ao seu encontro para o abraço costumeiro, mas, já na corrida, foi se desapontando, pois não vira o embrulho de um presente nas mãos do pai.

O pai o abraçou e ele ao pai, logo disparando:

Pai, e o meu carrinho?

Acabei de lhe entregar.

Como assim?!

Não lhe dei o carinho?

Eles sorriram.

Pai, é carrinho e não carinho!

Você não gosta dos meus carinhos?!

Claro que gosto, mas você tinha me prometido um carrinho.

Sim, prometi, mas não disse para quando.

A face de Juarez, da irradiação da alegria, transformou-se em máscara de tristeza.

É que como o senhor não disse, pensei que fosse ser hoje.

Falamos. Não esclarecemos. Pensamos. Não nos entendemos!

Como assim?

Veja: você sabe que o pai somente recebe salário no dia 25 de cada mês...

Sim. Sei. “Só pode comprar depois do dia 25”!

Isso mesmo. E hoje é que dia?

Dia 14.

Pois é. Faltam poucos dias para o dia 25.

É que o senhor...

Sim, prometi, mas pensei que você lembrasse da nossa regra: somente dia 25.

Tinha esquecido.

Pois é! Para falarmos temos que nos lembrar de algo que ocorreu no passado. Sejam das regras, como a nossa, sejam das próprias palavras. Você já pensou como seria uma conversa se não nos lembrássemos das palavras ou dos significados que lhes atribuímos?

Nem imagino.

Pois é. Não teríamos conversa na realidade, uma vez que não saberíamos que palavras usar. Portanto, a memória, onde guardamos as palavras, é muito importante. Caso não fosse, terias que a cada conversa inventar um novo vocabulário com seus novos significados.

Vou fica contando os dias até o dia 25!

E como você saberá que é o dia 25?

Basta eu olhar no calendário!

E em qual dos muitos calendários?

Não sabia que tinham “muitos calendários”!

Mas têm. Os chineses usam um, os judeus outro, os cristãos outro. Só aí temos três, mas existem outros. Os próprios cristãos já tiveram mais de um calendário. O “gregoriano” e o “juliano”, que é o atual, por exemplo.

Por que eles têm esses nomes?

Eles receberam esses nomes a partir do nome dos papas que os criaram.

Então eu posso criar um calendário “juareziano”?

Sim, quando você for papa.

Riram.

Quer dizer, pai, que eu posso dar nome às coisas?

Sim, claro. Todas as coisas receberam os nomes que têm porque foram “batizadas”, receberam nomes dados pelos homens.

Eu poderia, ao invés de lhe chamar “papai”, chamar-lhe de “mamãe”, e a “mamãe” chamar de “papai”?

Sim. Não haveria problema se todos aceitassem sua proposta. Isso seria uma convenção do grupo de pessoas ao qual você pertence e ao qual fez a proposta.

Mas o que é uma “convenção”?

Convenção é um acordo que duas ou mais pessoas estabelecem e aceitam e passam a obedecê-la de modo que ela vai ser regra nas vidas das pessoas. Regras são imposições a serem obedecidas e essa obediência pode ser voluntária (quando a pessoa a cumpre normalmente) ou imposta pela força (quando, então, a pessoa, por ser mais fraca, é obrigada a cumprir).

Como quando o senhor manda eu dormir?

Isso mesmo! Se você vai quando eu mando, você cumpre a regra (crianças tem horário para dormir) voluntariamente, mas se eu tenho que lhe tomar pelo braço e levá-lo quando você resiste à ordem, à determinação para ir dormir, o cumprimento é imposto pela minha força, que é superior, maior que a sua.

Entendi!

Então é ora de ir para cama rapaizinho, pois amanhã tens escola pela manhã.

Beijaram-se e Juarez retirou-se da sala para o quarto, onde após escovar os dentes foi para cama.

 

Muitas palavras da língua portuguesa têm origem ou são derivadas de outras línguas (como o grego, o latim, o árabe, o tupi-guarani e outras).

Você já ouviu a palavra ontologia|?

Ela é de origem grega e significa: ontos = ser + logos = ciência, assim, ciência do ser, que é a parte da filosofia que estuda o ser enquanto ser, ou estuda os seres em si mesmos, a existência em geral. Estuda as coisas que existem no mundo.

 

Aldo Dinucci nos diz:

 

A origem da ontologia é a confusão no uso da linguagem. É provável que o tipo de confusão que gerou a ontologia talvez tenha aumentado muito depois de Parmênides. Até filosofias altamente avessas à mentalidade ontológica, como a de Demócrito, podem trazer traços de sua influência. Tendo como princípios o pleno e o vazio, ou seja, os átomos em movimento no vácuo, Demócrito se viu na circunstância de asserir que o ser [Osório diz: ser é a coisa] existe tanto quanto o não-ser, porque identificou o vazio com o não-ser. Esse simples embaraço linguístico (ter que decidir se o não-ser é ou não é), que não passa de um pseudoproblema, serviu depois para argumentar contra a existência do vácuo, com o raciocínio de que se houvesse vácuo um não-ser seria ser, o que é contraditório, logo, o vácuo não existiria. Felizmente nem todos desistiram de experimentar ou raciocinar com mais atenção e interesse para decidir sobre o caso. Pode-se continuar discutindo a existência do vácuo, mas, se for com base em mentes confusas emaranhadas na linguagem, a logomaquia [s.f. Disputa por meio de palavras: as discussões escolásticas constituíam muitas vezes mera logomaquia.] se torna instrumento de investigação física. Na verdade, Demócrito não precisava ter identificado o vácuo com o nada ou o não-ser, pois espaço vazio não é o mesmo que nada. Um espaço vazio pode ser medido, o nada não.

Não sabemos se a expressão confusa, obscura e, na verdade, grotesca, como o “o ser é” apareceu primeiro na comunicação cotidiana que, como se sabe fartamente, sujeita frequentemente uma língua à brutalidade e converte as deformações em costume, ou se apareceu primeiro na elaboração terminológica filosófica que, como é também sabido, forja frequentemente expressões ilusivas [adj. Falso, enganoso, aparente.] capazes de substituir o contentamento da aquisição de conhecimento pelo contentamento em inventar e fazer combinações atraentes, mas vazias, de palavras”. (Fonte: p. ?.)

 

Charles Baudelaire, poeticamente, já nos disse:

 

"O  mundo funciona somente graças ao mal-entendido. É mediante o mal-entendido universal que todos concordam. Pois, se, por falta de sorte, as pessoas se compreendessem umas às outras, jamais concordariam”. (Revista Língua Portuguesa, Ano 9, nº 96. Outubro de 2013, Editora Segmento, p. 5).

 

Trinta anos de estudo de Filosofia, não poderia ser, pensava o estudante Osório, jogados fora!

 

Há cerca de trinta anos Osório iniciava a estudar Filosofia pura, especialmente a Filosofia grega, aliás, há quem diga que é até bom que não se saia dela, pois, nos últimos vinte e cinco (25) séculos nada se produziu de novo. Nada se disse que lá já não se tenha dito. Costuma Osório dizer que os gregos inventaram a fotografia, os que vieram depois apenas coloriram-na.

Osório vivia preso nesse sistema até que, sem querer, descobriu os Sofistas, os quais as Histórias da Filosofia e das Religiões, vêm, faz cerca de dois milênios e meio, tentando matá-los retirando-os do mundo do conhecimento, embora, contraditoriamente, sejam elas que os conservaram. Mal sabiam que...

O movimento sofístico abriu-lhe os olhos para algo muito simples, mas que o pensamento filosófico-religioso ou religioso-filosófico nos impede de ver: que existem pessoas que pensam diversamente das outras! E essas pessoas nem sempre estão erradas em seu pensar, ou mesmo que esse pensar não seja correto, não significa que não seja verdadeiro, pois pode servir de base, de fundamento, para outro pensar, exatamente por este passar a ter existência por ter tido um ponto de partida, uma base, justamente no pensamento que iniciou combatendo. Na eletricidade, a luz não existe se não houver combinação de positivo e negativo.

Assim é que, na história da filosofia, enquanto centenas de páginas dos livros são dedicadas a um determinado movimento filosófico, apenas duas ou três delas são “dedicadas” ao movimento sofístico. Nisso, até os fiéis e fanáticos seguidores de Platão, por exemplo, não conseguem seguir o exemplo de seu mestre, já que este dedicou inúmeros de seus diálogos, justamente, ao combate ao referido movimento, tanto assim que os intitulou com o nome de sofistas insignes também: O sofista, Protágoras, Górgias, Hípas etc.

Platão, exatamente na sua tentativa de extirpar o movimento sofista acabou sendo o seu principal preservador, já que o pensamento dos retores constam apenas de fragmentos, tendo quase todas suas obras sido destruídas ao longo dos séculos, exatamente na tentativa de que, ao sumir com essas obras se sumisse também com os pensamentos que elas continham. Felizmente os diálogos foram um ledo engano, e hoje Platão é a maior fonte a subsidiar o movimento de restabelecimento do pensamento sofístico ao seu devido lugar: o movimento que produziu a virada filosófica que até hoje está se desenvolvendo.

Assim, é preciso revisionar todo o pensamento da Filosofia dita Ocidental.

É o que tenta expor para pedir, e pede, as observações de Osório.

Sempre, como se diz, quem lê Filosofia come pela mão de Platão e Aristóteles, não se tendo sido capaz de fugir do labirinto montado por estes dois mestres gregos.

Assim vivia Osório, impressionado pela existência (ou não!) do ser, da verdade, da metafísica.

Essas correntes o prendiam ao que determinavam seus algozes.

Platão propôs para resolver o insolúvel um tal de mundo das formas (mundo das ideias) pelo qual explica tudo e não explica nada! Valeu-se, também dos números, sem observar algo muito simples, e daí sua contradição profunda, os números que ele tinha como perfeitos, são uma construção humana!

E por que Platão propôs a sua Teoria das Formas? Veremos isso mais adiante.

Kant irá retomar Platão e propor o mundo da moral, também, principalmente, metafísico. Também se valerá dos números em suas fundamentações.

Tudo isso irá ruir quando não mais nos conformamos com o mundo prometido para o amanhã, até por que não se pode afirmar que o mundo de amanhã existirá. Tem-se, assim, que construir o mundo do hoje, e este mundo não se harmoniza com as propostas platônicas-kantianas.

Foi, justamente, por essa promessa de um mundo invisível-inverídico, não constatável, não provável (impossível de passar pelo exame das provas), porém muito bom para determinados fins, que as religiões abraçaram de corpo e alma as filosofias dos gregos (Platão e Aristóteles) e do alemão (Kant), tentando jogar para debaixo do tapete, aqueles de quem a trinca citada discorda.

Com a Filosofia e as Religiões reunidas e combatendo do mesmo lado, ficou quase que fácil impor o pensamento (as ideias) que fosse mais conveniente aos seus propósitos. Foi o que aconteceu e acontece.

Todos que iniciam ou tentam iniciar seus estudos filosóficos caem nas mãos dos filósofos “aceitos” pelas religiões, até porque foram elas que preservaram os antigos pensadores, e se os preservaram, preservaram apenas aqueles que, inicialmente, lhes eram interessantes. Tanto é assim que os filósofos ditos pagãos, quando de interesse do cristianismo, são tidos como cristãos, por exemplo, invertendo até um fato, uma vez que Cristo irá nascer bem depois, mas, dizem os religiosos, os pagãos teriam sido cristãos se Cristo tivesse existido antes deles. Eles anteciparam muitas coisas que cristianismo apoderou-se, costuma-se dizer. É o que Freud disse de Édipo: “o complexo de Édipo é anterior ao próprio Édipo”! Os “aprovados” pelas religiões seriam “cristãos por antecipação”!

 

Eugênio Bucci disse algo preciso: “o passado pode aprisionar a nossa imaginação. O passado nos pode raptar.” (O passado como cárcere, O Estado de S. Paulo, 22.04.2010.).

 

Osório foi educado (ou deseducado!) nesse sistema filosófico-religioso cristão!

Estava preso a este passado, que havia raptado sua alma.

Trinta anos de estudos: uma vida quase perdida, poderia ele dizer hoje.

Eis que, desinteressadamente, começou a ler os Sofistas, e seu mundo foi mudando. As bases sólidas foram ruindo, seus castelos de pedras, tanto como os de outros materiais, haviam sido construídos sobre a móvel areia.

Filosofar é desconfiar, afirmam alguns falsamente, “da boca para fora”, esperando que você, realmente, de nada duvide, especialmente do que os que dizem isso ensinam.

Duvide, menos do que eu digo”!, é o lema.

Quem pensa em um Deus que sabe e pode tudo, não pode filosofar, pois a primeira questão a ser posta em dúvidas é, exatamente, a existência desse Deus! E como duvidar da existência de Deus?!

A onda definitiva, que pôs abaixo os castelos de Osório, foi Nietszche, soprado por Jean Granier. Um livrinho minúsculo foi capaz de proporcionar a mesma vontade que acometeu vários poderosos, especialmente aqueles que queimaram milhares de livros: queimar tudo que ele já tinha lido sobre Filosofia nos últimos trinta anos, com a exceção do revisionismo que se está fazendo do pensamento sofístico.

Aliás, várias das teorias apontadas como “último modelo”, não passam de paráfrases de teses sustentadas pelos Sofistas, especialmente no mundo da linguagem e no mundo do conhecimento (se é que é possível conhecer sem linguagem, diria alguém).

 

Anthony Gottlieb, ao falar sobre a linguagem, nos alerta:

 

Não dispomos de registros (escrita, fotos, filmes etc.) de quando e onde os homens começaram a fazer convenções entre si a respeito da linguagem, que é a forma mais primitiva (antiga) de transmissão do conhecimento, e pela qual as pessoas buscam entender umas as outras.”. (Fonte: xxxxxxxxxxxx)

 

A linguagem como algo material (Anthony Gottlieb, ao falar sobre Parmênides).

 

Kant afirma que “só compreendemos o que construímos”, como tudo que o homem constrói, é produto de acordo entre eles, como veremos mais adiante, a frase é perfeita.

Tendo como norte a lição kantiana acima, procuramos demonstrar neste estudo como se deu a evolução da Teoria do Conhecimento, a fim de que possamos vir a compreendê-la, uma vez que os inúmeros escritores que se ocuparam do tema têm partido do pressuposto, acertado, de que seus leitores já possuem conhecimentos prévios capazes de suportar a entrada direta no tema que abordam, pois este sempre é apresentado, nos cursos, depois de o aluno ter cursado várias matérias que funcionam como pré-requisitos ao novo conhecimento. Assim, por pressuporem particularidades que já creem sabidas, deixam de mencionar inúmeras outras que lhes são necessárias e imprescindíveis antecedentes. Essa pressuposição professoral, na maioria das vezes, é falsa, pois, mesmo que tenham ocorrido as apresentações que são os alicerces ao novo conhecimento que se expõe, não raras vezes, ou quase sempre, o foram de forma fragmentária e em períodos longínquos, o que requer do estudante capacidade para reunir, relembrar e concatenar todo o conhecimento anterior com o qual um dia manteve contato e, assim, pô-los a serviço da teoria que ora estudamos.

Muitas ocorrências, ou muitos casos, são apresentados como o início de tudo, como se seus autores fossem capazes de criar, a partir do nada, “ab-ovo”, aquilo que apresentam e é aceito como o caso primeiro de determinado instituto, teoria ou fundamento. Esquecem que o conhecimento humano tem sido marcado por um evoluir, onde cada etapa vai se concatenando com a anterior e tirando dela o aprendizado capaz de servir-lhe de premissa e sustentáculo para os novos voos e alicerce para novas construções.

O que são os modernos aviões que não o desenvolvimento da ideia pioneira de Dédalo, pai de Ícaro, o ser mitológico que foi capaz de voar com asas feitas de pena e coladas com cera em seus braços? Hoje temos as asas das aeronaves feitas de alumínio ou fibra de carbono e coladas com pinos de aço, ambos capazes de resistir a altas temperaturas e não derreter, como aconteceu com a cera do herói.

Aqui procuraremos, justamente, reunir de forma linear o desenvolvimento de todos as práticas e estudos que levaram ao que hoje se denomina Teoria do Conhecimento.

Esse evolver progressivo passa pelo surgimento do próprio homem na face da terra; pelo homem e sua prole e a natureza que os une; pelos homens se comunicando, a fim de se fazerem entender; pela reunião de homens formando povoados e cidades; pelos homens organizando o modo de conviver entre si socialmente.

Essa a nossa aventura, as vezes tratando de assuntos que, aparentemente, nada têm a ver com o estudo a que nos propusemos, bem como que não atendem aos interesses imediatistas daqueles que se veem premidos pela urgência de e em saber, e que, portanto, se contentam tão somente em saber que dois mais dois são quatro, e não se preocupam sequer em saber que a matemática é uma invenção humana, e não uma linguagem divina, como querem alguns, é destinada a formar no espírito e nas mentes, um conhecimento esclarecedor e sólido, e que permita pensar e fundamentar o pensamento e não apenas repetir o que disse fulano ou beltrano sem saber porque o disseram.

É dada a Aristóteles a primazia de ter dito que “o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade”.

Aristóteles escreveu esta frase no seu livro A Política. O autor nasceu na cidade greco-macedônica de Estagira, na Calcídia, em 384 antes da era atual (a.e.a) e morreu em 322 a.e.a. Portanto, sua vida pode ser fixada no Século IV a.e.a. Este autor será um dos nossos guias nessa exposição.

Do mesmo modo a contagem do tempo foi dividida pelo cristianismo em antes e depois de Cristo (embora sequer se saiba, ao certo, em que ano isso se deu), a história da Filosofia é dividida em duas partes, antes e depois de Sócrates. Assim, todos os filósofos que o antecederam, são conhecidos como pré-socráticos, embora esse marco divisor tenha pouco interesse para o nosso tema, uma vez que Sócrates é quase indiferente ao ponto fulcral ao qual pretendemos chegar, uma vez que ele não o abordou, ao que se sabe.

Antes de Aristóteles viveu um outro grego, o pré-socrático Anaximandro (acredita-se que tenha vivido entre 610 e 547 a.e.a). Foi ele o primeiro que deixou consignada a seguinte observação:

 

O aleitamento humano da infância, as necessidades biológicas de substância, a incapacidade na natureza individual humana de auto-preservação da espécie, levaram-no a admitir uma inevitável evolução da espécie: 1ª) “dado o fato de que os outros animais se nutrem desde cedo sozinhos, enquanto que o homem é o único a precisar de um aleitamento prolongado”...; 2ª ) dado que, “no começo, o homem não poderia ter subsistido se a sua natureza fosse tal qual é agora”...; dado esses fatores, foi levado a firmar que, “no começo, o homem foi gerado a partir de animais de espécies diferentes”. Ou seja, o homem, pela sua natureza, carece de extraordinários cuidados para a sua sobrevivência na infância, e por isso não poderia, no começo, ter subsistido sozinho com uma constituição assim tão frágil. Segue-se, portanto, que a sua sobrevivência, na gênese de sua origem, só poderia ter dado certo, prosperado, no interior de uma espécie diferente.

 

Ou seja, um século e meio depois do pioneirismo de Anaximandro, Aristóteles sintetizou sua lição, sem, contudo, dar as razões pelas quais o homem é um ser gregário, como o fez seu antecessor.

Antes de ambos os citados, por volta do Século VIII a.e.a., teria vivido, ainda, outro grego, o poeta Homero, que “escreveu”, ou “compilou”, duas obras, dois poemas, que são referências até hoje, a Ilíada e a Odisséia (Essas obras só foram transcritas para um suporte material [pergaminho, talvez] no século VI a.e.a, a mando do tirano de Atenas de nome Pisístrato).

Dos três gregos citados, apenas de Aristóteles se pode afirmar a existência concreta. Do dois outros, tudo que sabemos é por indicação de terceiros que a eles se referem. Duvida-se até da existência do próprio Homero, embora não se duvide da sua obra. Duvida-se de quem seja o autor, mas não se duvide das obras, justamente por elas terem sido preservadas por escrito.

Seriam, assim, pela ordem Homero, Anaximandro e Aristóteles os primeiros humanos a fazerem as constatações que eles fizeram? Dificilmente saberemos, pois o mundo já era mundo, e velho, antes das passagens desses homens pela vida dele. O que podemos afirmar, contudo, é que eles foram os primeiros a deixar gravados à posteridade suas observações, com o que acabaram de ficar com a glória do pioneirismo.

Homero narra em suas epopeias [narração de assuntos grandiosos], lendas seculares, que apreendeu por “ouvir dizer”, por narrativas orais que passavam de geração para geração. Mas, como era a vida em Tróia antes da famosa guerra que lá ocorreu e que é narrada na Ilíada? Como sobreviviam, como eram dirigidos, como trabalhavam seus habitantes?

Jamais teremos respostas para essas e inúmeras outras perguntas que poderiam ser formuladas em relação aos gregos e aos outros povos que lhes são mais antigos, como os sumérios e egípcios, por exemplo, embora haja um esforço constante por parte dos arqueólogos em busca de tais repostas, os quais, mesmo que obtenham sucesso, esse será apenas relativo, uma vez que a própria precariedade dos meios de que dispunham os antigos para fixar suas informações, jamais nos permitirá conhecer o passado de nossos ancestrais. Deles, tudo que sabemos é por conjectura, suposição mais ou menos fundamentada, e a partir de uma visão bem recente, historicamente falando, e por intermédio de técnicas mais novas ainda, e sobre as quais ainda pairam sérias dúvidas quanto à sua fidedignidade.

Toda essa precariedade, não nos impede de olharmos o nosso passado e dele tirarmos conclusões que são plenamente sustentáveis a partir de um desenvolvimento racional de que só o homem é capaz.

As informações que se seguem são as que fundamentam a exposição sobre o evoluir do pensamento humano, embora algumas vezes duvidemos das próprias afirmações que utilizamos, em especial em momentos difíceis, como são aqueles vividos durantes as guerras, quando, segundo Espinosa, “ninguém presta atenção nos malfeitos uns dos outros, tudo sendo visto como normal, ou, pelo menos, como necessário diante das condições”, uma vez que se é levado a isso pela barbárie praticada, levando-se a acreditar até em uma involução da humanidade. Mas, nos momentos de calma e sóbria reflexão, não podemos deixar de reconhecer que a humanidade evolui sim, e que a saudade daquele passado distante, sempre sonhado por todos aqueles escritores que deixaram algo consignado, não passa de uma saudade apenas do que foi bom, o qual obviamente deve ser preservado, mas pode-se perceber que esse bom vem sendo cada vez maior e melhor, bastando citar a quase eliminação das pestes que atingiam a humanidade. Assim, se o escritor grego Hesíodo, que teria vivido no século VIII a.e.a, falava de um passado remoto já na sua época de sua Grécia como o de uma idade de ouro, certamente hoje se encantaria com as cirurgias e vacinas que curam inúmeros males que afligiram a si e a seus contemporâneos.

Portanto, que apredamos com o passado as únicas duas lições que ele pode nos dar: preservar o que nele aconteceu de bom e não repetirmos os erros que nele foram cometidos. Embora essa última lição seja um desafio que nós, aparentemente, insistimos em não aprender.

O homem traz consigo duas características congênitas [que possuiu antes até do nascimento], o desejo de saber o futuro que o espera e a vontade de que alguém que com ele não conviveu, conheça o seu passado, sua existência, especialmente os detalhes de que somente ele tem conhecimento. É fundamentado nessas qualidades humanas que os astrólogos, adivinhos e futurólogos de todos os gêneros mantêm sua imorredoura atividade. A simples permanência dessas atividades é a demonstração de que muitos nelas acreditam. Entretanto, acreditando ou não, elas nos trazem lições bem concretas. Assim é que acreditamos poder descobrir o passado da humanidade, embora aqui, concretamente, contemos com alguns dados concretos, como a produção de cerâmica, por exemplo, onde há resquícios de registros do passado. Acreditamos, também, na possibilidade, embora hoje ainda mera ficção, da construção de máquinas do tempo com as quais poderíamos viajar pelo e no tempo, visitando o futuro e o passado.

Hoje, contudo, já dispomos de filmes e fotografias gerados a partir do fim do Século XIX e início de Século XX, bem como dispomos de gravações de áudio. Com esses retratos do passado, somo capazes de ver e ouvir pessoas e fatos que já desapareceram da face da terra há algum tempo. Com eles, portanto, somos capazes de “saber” sobre o passado de seus personagens. São espécies de máquinas do tempo que nos transmitem informações visuais e auditivas.

Mas tudo isso são invenções muito recente, infelizmente! Mostram, contudo, uma evolução na técnica de guardar informações e dados, consequentemente, uma evolução do pensamento humano, especialmente se compararmos os meios atuais em que arquivamos informações para transmiti-las a outrem com os meios de que dispunham as primeiras civilizações de que temos conhecimento. Progredimos da argila (barro, argila), como se verá mais adiante, para o disco rígido do computador!

A despeito de todo esse potencial, contudo, tem um outro fator inibidor de aproveitamento de sua plena potencialidade. Refiro-me ao mau uso dos equipamentos, mau no sentido de ser ainda muito pouco usado, explorado. Vejam, por exemplo, que Martin Heidegger, tido como um dos maiores filósofos do século XX, que morreu em 1976, quando todos esse manancial tecnológico já estava à disposição, deixou muito pouco de seu ensinamento fixado nesses meios audiovisuais.

Nessa busca incessante para conhecer o seu passado, o homem tem obtido alguns avanços significativos, decifrando enigmas que pareciam fadados a devorá-lo. Assim é que, dentre esses avanços consta a possibilidade de datar alguns achados arqueológicos muito antigos. É o que acontece fazendo-se uso do carbono 14, com o qual, ou por intermédio do qual, o homem, com razoável aproximação, fixa o período em que viveu determinada civilização, chegando a isso, especialmente, pelo estudo dos “rastros” por ela deixados. Um osso, uma fogueira, um tecido, resto de comida, um caco de cerâmica, uma pedra etc., tudo pode ser submetido a testes que darão, se não uma visão completa, uma aproximação alentadora capaz de subsidiar racionalmente teorias plenamente viáveis, a despeito da incerteza que trazem em si.

O uso do carbono 14 para datação de objetos arqueológicos é bastante controvertida, como, aliás, são todas as criações humanas.

Ele é usado para datar artefatos de origem biológica (que tiveram vida, daí o bio, que é vida, em grego).

Portanto, já é essa uma limitação no seu uso.

Todos os artefatos biológicos têm em si a presença de carbono, cuja quantidade vai se esvaindo ao longo do tempo, sendo que, após 50 mil anos, nenhum deles possui mais em si a substância carbonífera.

Esta uma segunda limitação no uso do carbono, que somente data objetos como ossos, madeiras, plantas, tecidos etc. até 50 mil anos passados. Mas é o que temos, até o momento.

Hipóteses, hipóteses e conjecturas e conjecturas!

Aceitando-se, por tudo isso, as informações dos cientistas que se debruçaram sobre os temas que ora nos interessam, temos o seguinte:

- A própria origem dos homens ainda é envolta em um grande mistério, tanto assim, que estão relacionados com os grandes símios, chipanzés e gorilas, pois possuem a mesma estrutura anatômica básica e constituição genética similar. Acredita-se que ambos são descendentes de um ancestral comum, que viveu acerca de dez milhões de anos. Essa idade é calculada com base em provas, fosseis e pesquisa molecular. As duas espécies passaram a trilhar caminhos diversos há acerca de entre cinco e oito milhões de anos.

Veja-se que, aqui, já trabalhamos com a noção de milhões de anos!

Os estudos demonstram que o homem adaptou-se ao andar ereto (bipedalismo) acerca de quatro milhões de anos. A prova mais segura do bipedalismo foi a localização de um esqueleto que ficou conhecido como sendo de Lucy, um ser do gênero feminino que viveu na Etiópia, África, há acerca de 3,4 milhões de anos. Pertencia Lucy à classe dos Australopitecíneos, que combinavam características dos símios com traços humanos.

O Homo habilis, ou homem habilidoso, aquele que fabricava seus próprios utensílios apareceu por volta de 1,7 milhões de anos e 200 mil anos a.e.a.

Depois do Homo habilis vem o Homo erectus, hominídeo que viveu entre 1,7 milhões e 200 mil anos a.e.a., e pode ser considerado a forma primitiva do Homo sapiens (ou homem racional) de cuja linhagem originaram-se os seres humanos modernos.

Por volta de 250 mil a.e.a. tem-se o Homo sapiens neanderthalensis (ou homem de Neandertal), povoando a Europa e a Ásia Ocidental. São considerados uma forma primitiva do Homo sapiens.

Com as características do homem moderno os fosseis mais antigos, até hoje conhecidos, datam de 90 mil e 110 mil a.e.a.

Embora ainda haja muito a se descobrir sobre a origem do homem, se é que isso um dia será possível, pode-se afirmar que o homem moderno, por volta de 30 mil a.e.a., já estava instalado na maior parte do mundo habitável.

Sabe-se hoje que esses nossos ancestrais eram nômades, que viviam da caça e da coleta, uma vez que a agricultura surgiu por volta de 10 mil anos a.e.a.

É o aparecimento da agricultura que irá transformar os homens de nômades em sedentários (fixar-se-ão em casas, vilas e “cidades”), fato que trará consigo reflexos importantíssimos para o nosso estudo, de que é exemplo o aglomeramento populacional e o aparecimento da escrita, de que já falamos anteriormente, mas vale a pena voltar ao tema.

A invenção ou desenvolvimento da escrita, ou seu ápice, ou primeiras manifestações de que temos notícias ocorreram por volta de 3.300 a.e.a., na região da Mesopotâmia [Mesopotâmia vem do grego e é formada por meso = a meio e potamia = a rio, justamente por fica situada entre os rios Tigre e Eufrates. Fica onde atualmente situa-se o Iraque], com as características que lhe foram dadas na Suméria. Tratava-se de uma escrita pictográfica ou, mais exatamente ideográfica, com sinais para palavras individuais ou conceitos. Isso, contudo, era incômodo, sendo que, em seguida símbolos foram utilizados para ações ao invés de ideias. As imagens adquiriram formas e significados arbitrários. Na própria Mesopotâmia tem-se um sistema bem-sucedido, onde o estilo terminado em forma retangular foi utilizado para escrever impressões em forma de cunha em placas de barro, daí a denominação de escrita como cuneiforme. Essa escrita era ideográfica [ ou seja, eram símbolos gráficos usados para representarem palavras ou conceitos abstratos] e não fonética [fonemas – que são unidades sonoras de uma língua –, não são letras, letra é grafema, a representação do fonema], como a japonesa na atualidade, por exemplo.

Se no início a escrita se baseava em pictogramas que representavam objetos ou conceitos, à medida que as culturas foram tornando-se mais complexas, ela evoluiu para registrar pensamentos mais abstratos e ações, para isso recorrendo a símbolos versáteis, ou caracteres, que podiam ser combinados para expressar os mais diversos significados. Na língua suméria, por exemplo, a junção dos símbolos “boca” e “tigela de comida” significava “comer”. (Atlas da História do Mundo, National Geographic. Editora Abril. São Paulo: 2004, p. 18.).

Com o tempo, os signos passaram a representar os sons das palavras. O sinal referente a “casa”, por exemplo, podia designar tanto uma casa como o mesmo som em outra palavra de sentido diverso, como “casamento. Esse processo pelo qual um signo passou a ter finalidades diferentes permitiu aos escribas reproduzir o que faltava por meio de um conjunto finito de caracteres, que variavam de várias centenas (no Egito) até os milhares (na China). O domínio de todos os caracteres e suas combinações exigia um longo aprendizado. Mas aos poucos a tarefa se simplificou, à medida que os caracteres gravados em pedra, argila ou papiro ficaram menos pictóricos, mais abstratos e mais fáceis de formar. (Atlas da História do Mundo, National Geographic. Editora Abril. São Paulo: 2004, p. 18.).

Cabe ressaltar que a criação do sistema alfabético, cujos caracteres representavam os sons da língua falada, data do segundo milênio a.e.a.

O que teria ocorrido entre o aparecimento do homem moderno, por volta de 110 mil a.e.a., apenas para ficarmos com a data mais recente, e o aparecimento da escrita, há cerca de 3.300 ou 5.000 anos a.e.a.?

Dificilmente saberemos, fato que não nos impede de conjecturarmos, de lançarmos hipóteses.

Quando falamos da escrita, falamos de sua forma embrionária, especialmente se consideramos o número de escribas existentes, os poucos e trabalhosos caracteres com que eles trabalhavam, o material sobre o qual eram apostas (a despeito de ter sido abundante, a argila, era de demorada transcrição e de difícil manuseio e conservação), o reduzido espaço geográfico que retratavam, tudo isso indica que pouca coisa, pouquíssima mesmo, ficou registrada.

Há quem afirme que 99% de nossa história desenvolveu-se antes da invenção da escrita! (Noberto Luiz Guarinello, Gilgamesh, rei de Uruk, prefácio, Ars Poetica, São Paulo: 1992, p. 15.).

Com o tempo apontado entre o aparecimento do homem na face da terra e a invenção da escrita, bem como as dificuldades apontadas para desenvolvê-la, é perfeitamente aceitável que o percentual de apenas 1% de nossa história tenha ocorrido depois da invenção da escrita.

Essa constatação se torna ainda mais palpável se considerarmos que, mesmo no mundo da informação que vive o Século XXI, ainda existem milhões de analfabetos no planeta, os quais não conseguem transmitir para a posteridade o seu cotidiano, criações, crenças, mitos, lendas, poesia, música etc.

Perguntar-nos-á o leitor que venceu este livro até aqui: o que tudo isso tem a ver com os Sofistas e a história do conhecimento?

Numa primeira aproximação de resposta, pode-se dizer o seguinte: é incompreensível o caminho pelo qual o pensamento humano chegou ao seu produto final – pelo menos enquanto não superado por outro produto melhor elaborado – sem essas informações que lhe dão sustentação, consistência e tentam explicá-lo.

Não se sabe quando o homem começou a pensar, pois disso não temos registros, tendo a escrita sido inventada muito tempo depois do homem estar sobre a terra, pois, como acontece ainda hoje, primeiro o homem nasce e cresce, só depois aprende a escrever, e foi a escrita que melhor conservou a história do pensamento, repita-se.

 

Resumindo, nos diz H. G. Wells o seguinte:

 

"A história do nosso mundo ainda é uma história que conhecemos de modo precário. Até algumas centenas de anos atrás, os homens dominavam pouco mais do que a história dos três mil anos precedentes. O que se passara antes desse período era um enigma e gerava lendas e especulações. Em grande parte do mundo civilizado, acreditava-se e ensinava-se que a Terra havia sido criada de súbito em 4004 a.C., embora algumas autoridades afirmassem que a criação ocorrera na primavera e outras garantissem que ocorrera no verão. Esse equívoco fantasticamente preciso se baseava numa interpretação literal da Bíblia hebraica e em suposições teológicas bastante arbitrárias, derivadas dessas leituras. Tais ideias foram abandonadas muito tempo atrás pelos pensadores religiosos, e hoje é plenamente aceito o fato de que o universo no qual vivemos tem, segundo todas as aparências, uma origem extraordinariamente remota, numa existência sem fim. As aparências podem ser ilusórias, é claro, como uma sala pode parecer interminável quando suas paredes são revestidas por espelhos. A ideia de que o universo no qual vivemos existe há apenas 6 ou 7 mil anos, porém, pode ser vista como algo totalmente desacreditado", (Uma breve história do mundo, L&PM, Porto Alegre, 2011, p. 13).

 

Do que se tem registrado, acredita-se (nada de certeza! Apenas suposição), que no início do pensar, Filosofia, Ciência e Religião se misturavam, sendo uma coisa só. Tendo quem afirme que: “Foi o mito, e não a filosofia, que abriu o caminho do conhecimento, quando intuir era superior a pensar e saber era uma aventura que se bastava na simplicidade de uma narrativa despretensiosamente simbólica” (Jaya Hari Das, A transvaloração da educação, em Coleção Guias de Filosofia, Editora Escala, São Paulo: sem data, p. 35).

No Ocidente, e desconheço como é no Oriente, apenas sei que há diferenças, ensina-se que teria sido nas colônias Gregas da Ásia Menor (onde hoje é a atual Turquia) que os primeiros questionamentos humanos registrados sobre o conhecimento apareceram. Aí despertou o saber! Embora seja fácil intuir que o homem já pensava antes disso, como admitem os próprios gregos aos se reportarem aos egípcios, babilônios e outros, embora nada nesse sentido tenhamos registrado que saibamos seja oriundo especificamente desses povos.

"Os gregos foram os primeiros a apresentar, descobrir ou inventar, [quase tudo]” (Stephen Batchelor, Os gregos Antigos para leigos, tradução de Iara Piffer, Alta Books, Rio de Janeiro, 2012: p. 311).

Embora Julio Medem, no seu romance “Aspasia – amante de Atenas”, nos diga que os eram ou foram muito mentirosos em seus registros, de uma coisa não podem ser acusado: de terem sido tão negligentes quanto aos demais, como os persas, por exemplo, em seus registros.

Então, só nos resta nos socorremos deles!

É na Grécia que vamos encontrar, de forma já melhor organizada, registros sobre a curiosidade do homem, sobre sua vontade e disposição para conhecer.

Repito: “os gregos inventaram a fotografia! Os que vieram depois apenas coloriram-na”!

 

"Eu penso muito no primeiro homem que comeu uma ostra. Não penso muito nele, aliás. Penso na fome que o devorava. Ele olhou para uma pedra e concluiu: 'tem comida aí. Quem sabe se eu quebrar essa pedra acho coisa aí dentro?' Então lutou contra a pedra laminada e achou a gosma a que chamamos ostra. Não foi suficiente para demovê-lo. 'Já que estamos aqui, vamos até o fim'. Comeu doze. E nascia aí a tradição grega (tudo o que é antigo é grego) de se pedir uma dúzia de ostras. Apesar de tudo, não existe um único obelisco em todo o planeta homenageando este indivíduo.”. Autor: André Laurentino. ( Jornal OESP, 19.10.12).

 

É essa curiosidade, impulsionada pela necessidade, que irá ser a força motriz, propulsionadora do conhecimento.

A escrita é uma criação do mundo da cultura, ou seja, é obra do homem, tendo por ele sido idealizada e executada como uma forma de se comunicar com os demais, mas, também, e especialmente, com a finalidade de perpetuar, pela preservação, seu pensamento. A escrita é uma forma de memória estendida do homem, a qual ele pode trazer à mente com mais facilidade e quando tiver necessidade, interesse.

A escrita teria nascido há cinco mil (5.000) anos no Oriente Médio, na Suméria, na Mesopotâmia.

Nessa época, a escrita começa a organizar-se de forma sistemática por exigência de uma sociedade que estava em crescimento e os dados a serem preservados eram superiores à capacidade humana de memorização.

No entanto, se entendermos como escrita a arte de deixar para a posteridade um vestígio permanente daquilo de que ocupa ou preocupa o homem, a escrita nasceu antes dos sumérios gravarem suas placas de barro, ou seja, há mais de trinta mil anos, quando nossos primitivos antepassados deixaram escritos nas rochas, em cores naturais e utilizando ferramentas como as suas próprias mãos ou simples objetos pontiagudos, desenhos que, simultaneamente, correspondiam a mensagens. Quando os homens que habitavam as cavernas de Altamira, na Espanha, por exemplo, pintavam um bisão ou um cavalo, essa representação não era puramente estética, mas possuía uma função informativa: aludia claramente ao perigo potencial que esses animais constituíam, ou ainda, as possibilidades de serem caçados.

Os primeiros caracteres escritos eram desenhos muito simplificados representando o objeto aludido. Assim, uma cabeça de boi representava o animal e a repetição dos desenhos de cabeças o número de reses. São os chamados pictogramas [desenhos ou pinturas da pré-história (antes da história)]. Todavia, logo se deu um passo para a abstração que a escrita exige, e um símbolo do sol, por exemplo, passou a representar não apenas o astro, mas também a ideia de dia; ou, se surgisse por detrás de uma montanha, a ideia de amanhecer.

Os ideogramas (que são sinais a exprimir ideias, e não som ou articulação) foram um passo importante na criação de um código escrito, especialmente quando passaram a ter um significado fonético.

A escrita dos sumérios era denominada cuneiforme, e já apresentava um certo nível de abstração. (A arte da escrita, nº 2 – Canetas de Colecionador, Editora Salvat, São Paulo-SP, 2003.).

Os gregos terão, também, importância fundamental na história da escrita, pois são eles que aperfeiçoarão o alfabeto fenício dando-lhe a forma que temos até hoje. É neste momento de “fixação do pensamento na forma escrita” que o homem irá criar, ou perceber, a existência de um problema insolúvel, até hoje, na relação pensamento-escrita, onde a pergunta fundamental é: “É possível escrever ou transcrever o pensamento?”.

Essa pergunta terá desdobramentos que fez o homem perder-se no universo paralelo que ele criou e que é, justamente, o universo das palavras.

 

Jaa Torrano nos diz:

 

"Homero já tinha falado sobre os deuses gregos, a Hesíodo ele abriu caminho para dizer mais em seu livro Teogonia - a origem dos deuses. Portanto, outros já tinham passado por este caminho: por isso a novidade de tudo o que eu digo de novo está na força da repetição. A força do sábio está em saber dizer o já dito com o mesmo vigor com que foi dito pela primeira vez.

Hesíodo tratou no seu trabalho sobre o numinoso, ou melhor, sobre o sagrado.

Sua poesia é arcaica, pois foi composta há muito tempo na Grécia.

Embora Platão, no livro Fedro, por seu personagem Sócrates, esboce quase que uma reprimenda para o uso do alfabeto e suas conseqüências, especialmente por seu caráter deletério para a memória, esses males estão ausentes e afastados da poesia teogônica.

Algumas informações, são necessárias para a compreensão da Teogonia. Na comunidade agrícola e pastoril, anterior à constituição da pólis e à adoção do alfabeto, o aedo, ou poeta-cantor representava o máximo poder da tecnologia de comunicação, como os jornais atuais, por exemplo. As palavras cantadas em grego, se diz musas. Daí, ainda hoje, andarem sempre juntos os poetas e suas musas. Basileus, eram os reis, nobres locais que detinham o poder de conservar e interpretar as fórmulas pré-jurídicas não-escritas e administrar a justiça entre as partes que que nela contendem e que encarnavam a autoridade mais alta entre os homens. Imenso era o poder que os povos ágrafos, ou que não tinham escrita, sentiam na força da palavra e que a adoção do alfabeto arruinou até quase destruir. É que a força da palavra instaura uma relação quase mágica entre o nome e a coisa por ele nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a prescrição da própria coisa. Quem pronuncia a palavra colher, já tem na própria mente, e na mente daquele que ouve, a imagem do objeto com que fazemos refeições. [Osório diz: certamente que esta é a visão de Parmênides que Górgias irá combater].

Só muito tempo depois da Teogonia surge, com Arquíloco de Paros, a poesia lírica. Por esse mesmo tempo, os logógrafos (autores de registros de fundações de cidades-colônias e de genealogias da nobreza) começam a elaboração da prosa; é, então, que a língua grega começa a adquirir palavras abstratas. Com os pensadores, a linguagem põe-se a caminho de tornar-se abstrata-conceitual, racional, hipotática (baseada em relação de subordinação) e desencarnada (na perfeição do processo, o nome se torna um signo convencionado para a coisa nomeada, como bem mostrará, depois, Platão na sua obra Crátilo)1. Com os poetas líricos, a linguagem investiga a realidade do indivíduo humano, examina seus sentimentos, valores e motivações, até começar a transmutá-los e transportá-los, de forças divinas e cósmicas que eram (v.g. Éros, Éris, Aidós, Apáte, Áte, Lyssa etc.) para sentimentos próprios do ser humano (amor, rivalidade, pudor, engano, loucura, furor etc.). O que era características dos deuses, passa a ser dos homens. O que estava no céu, desce para a terra, podemos dizer.

Poetas líricos e pensadores colaboram inicialmente na grande tarefa de elaborar uma linguagem formada por conceitos abstratos, aqueles que não se referem às coisas em concreto (como a beleza, por exemplo), tornando-a apta como instrumento de análise tanto do cosmo como da realidade humana. A tentativa globalizadora da narração breve dos mitos com a qual a Teogonia se esforça por organizá-los em torno da figura da soberania brilhante de Zeus é de fato o primeiro (ou um dos primeiros) trabalho da atividade unificante, totalizante e subordinante do pensamento racional. O canto de Hesíodo, assim, já é o primeiro impulso do pensamento racional.

Sendo a poesia arcaica, está ligada formalmente à épica homérica (hexâmetros ou versos, arte poética com estilo próprio à composição oral), ligada como antecipação e modelo das duas mais importantes correntes culturais que viriam depois dela (a dos pensadores e a da poesia lírica), expondo uma concepção de poesia caracteristicamente não escrita, mas somente falada e expondo-se rigorosamente segundo essa concepção.

A linguagem, que é concebida e experimentada por Hesíodo, como uma força múltipla e numinosa, ou sagrada, que ele designa com o nome de musas, é filha da memória, ou seja: deste divino poder de trazer à presença o não-presente, coisas passadas ou futuras. Ora, ser é estar presente, como aparição (alethéa), e a aparição se dá sobretudo por intermédio das musas, das palavras, estes poderes divinos provenientes da memória. Só quem se lembra tem memória, por falar sobre o passado, o presente e o futuro. O ser-aparição portanto, dá-se por via da linguagem e na linguagem. O ser-aparição, é o desempenho (ou, é a função) das musas, das palavras. E o desempenho das musas é ser-aparição. É na linguagem que se dá o ser-aparição e também o simulacro, as mentiras. É na linguagem que impera a aparição (alethéa) e também o esquecimento (lesmosyne). O ser se dá na linguagem porque a linguagem é a sagrada força-de-nomear. E a força-de-nomear repousa sempre no ser, isto é: tem sempre força de ser e de dar ser. Não se trata portanto de uma relação, mas de uma presença inseparável e recíproca: o ser está na linguagem porque a linguagem está no ser (e vice-versa). Na expressão de Hesíodo: as musas falam as aparições (e também os simulacros de aparições) porque (ou, em todas as vezes que) as musas se fazem presentes como força numinosa, ou sagrada, que são das palavras cantadas.

A linguagem é uma estrutura que encerra para o homem não só todos os eventos e todas as relações possíveis entre eles, mas ainda a própria consciência que o homem tem de si e do mundo. A consciência é o círculo absoluto que encerra todos os eventos e entes possíveis: o âmbito da consciência, na imediatez concreta do pensamento mítico, cinge o âmbito do mundo. A força de coerência da linguagem mantém em suas ligações relacionais a coerência do mundo; a força presentificante do nome (ou melhor: da nomeação) é que mantém a coisa nomeada no reino do ser, na luz da presença, o não-nomeado pertence ao reino do esquecimento e do não-ser.

O homem arcaico sente que a força da linguagem o subjuga e que sua consciência se firma sobre a linguagem e é por ela dirigida. No caso de um cantor, que diuturnamente trabalha sua consciência das palavras e das estruturas lingüísticas, esta percepção do poderio avassalador e governante da linguagem torna-se ainda mais intensa e mais nítida.

A palavra cantada era, é e continuará sendo uma força tão grande que conhece poucas iguais. Imaginem se estivessem reunidos, em vez de filósofos, cantores e bandas de rock. Imaginem se estivessem reunidos os Beatles, a imensidão de pessoas que os estaria cercando para ouvir o seu cantar.

Mas o que no caso de Hesíodo, é o mais real é especificamente as palavras. E as palavras falam do que é real e do que não é real, apresentando-os quando e como elas querem. As palavras falam tudo, elas apresentam o mundo. Sendo as palavras por excelência o mais real e consistindo seu poder especificamente num poder de tornar presente aquilo que não está presente, ou de presentificação, nas palavras é que reside o ser.

Se na Teogonia há uma inseparabilidade recíproca entre a linguagem e o ser, esta inseparabilidade se dá pela recíproca imanência entre linguagem e poder, o poder de configurar o mundo e de decidir quais possibilidades nele se oferecerão em cada caso ao homem.

Zeus é a expressão suprema do exercício de poder. Toda a cosmogonia, ou origem ou formação do mundo, do universo conhecido, na visão de Hesíodo, converge e centra-se quando Zeus assume a realeza universal. A Teogonia é, em verdade, um hino às façanhas e à excelência guerreiras de Zeus; nela, tudo se dispõe na convergência para este aperfeiçoamento que é a assunção deste último e definitivo soberano divino, (re-)distribuidor de todas as honrarias e encargos e que mantém a ordem e a justiça. Zeus é a própria expressão do poder, e toda realeza e exercício de poder têm sempre a sua fonte em Zeus.

Como já assinalou Clémence Ramnoux, com absoluta razão, “os gregos conheciam três maneiras de se impor: pela violência (bía), pela persuasão (peithó) e pela sedução”.

Logo, o poderoso Zeus, com suas armas (o trovão e o raio), chega à vitória sobre seus predecessores e conquista o poder, impondo a perfeita ordenação do mundo e a (re-)distribuição de honrarias que levou a cabo ao assumir a soberania. Esse o tema da Teogonia: o poder e a ordem de Zeus, e a luta feroz pela qual ele se impõem.

O bom êxito dos reis em sua função de julgar dependia sobremaneira de suas “palavras de mel”, do dom da sedução com que convenciam. Esta capacidade de “persuadir com brandas palavras”, tanto quanto a conveniência geral da sentença dada no julgamento, é que asseguravam aos reis o gozo da boa reputação e popularidade. Além disto, a administração da justiça não era de modo algum um ato meramente cívico, mas também de caráter religioso e até mágico na medida em que a ordem social não se distinguia ainda, para a mentalidade mítica e arcaica, da ordem natural e até da ordem temporal (isto é, cronológica). A injustiça social acarretaria distúrbios nas forças produtivas e na ordem da natureza: peste e esterilidade nos rebanhos, escassez nas colheitas e portanto penúria e fome, e ainda filhos que não se assemelhavam aos pais ou que já nascem com cabelos e barba brancos (como diz Hesíodo no seu livro Os trabalhos e os dias). A manutenção da boa ordem social pelos reis era solidária da ordem da natureza e dos acontecimentos, a sacralidade da justiça social transcendia o caráter civil das ações, ao envolver o próprio cosmo e suas forças fecundantes e produtivas. [Osório diz: Isso muda um pouco meu pensar!]

Encontrar a fórmula correta, pronunciá-la com autoridade e incutir sua aceitação no âmbito daqueles que disputavam é praticar a reta justiça, e assegurar a pacificação social e a ordem da natureza (pela reciprocidade desta com a justiça). E essa atividade se funda no uso eficiente das palavras, tanto quanto a do cantor. Por outro lado, este poder de pronunciar a fórmula justa e eficiente é um dom com que as musas, como fadas-madrinhas, dotam os reis a cujo nascimento elas assistem e aos quais elas honram, o que implica uma vocação que acompanha o indivíduo ao longo da vida e para a qual ele deve ter-se preparado desde idade precoce. [Osório diz: exposição totalmente sofística! Exceto no que tange ao rei, pois os sofistas eram democráticos].

A ordem social não é senão o aspecto que entre os homens assume a ordem da natureza: uma e única. Vige em ambas a harmonia invisível, mais forte e mais poderosa do que todas as suas manifestações. Na administração da justiça, baseada no uso correto e eficaz da palavra, os reis colaboram com a manutenção desta ordem cósmica com que asseguram à sua comunidade o equilíbrio, a opulência e o futuro próspero. Os reis são operadores e colaboradores dos acontecimentos que se dão no cosmos, porque são senhores da palavra. O poder que têm da palavra lhes dá o poder sobre acontecimentos sociais e cósmicos. Isso pode ser visto ainda hoje, quando milhões de pessoas param para ouvir o que vai dizer um presidente de uma República ou um primeiro-ministro: embora o seu discurso seja uma avalanche de bobagens, milhões o ouvem, enquanto um discurso sábio, infinitas vezes, talvez não é ouvido por ninguém, pois o seu autor não dispõe das palavras asseguradas pelo poder. [Osório diz: exposição totalmente sofística! Exceto no que tange ao rei, pois os sofistas eram democráticos].

 

Este privilegio incomparável, que irmana reis e cantores, é que Hesíodo deu a autoridade para repreender e atacar com violência os reis venais, cujas sentenças e justiça são subornáveis mediante presentes. Fez esse ataque no seu livro Os Trabalhos e os dias.

Vejam o modo como o pensamento arcaico procede: jamais aborda um objeto de uma única e definitiva vez [Osório diz: Isto é Marx!], descartando-se dele depois, mas sempre o retoma dentro de outras referências, estudando-o por meio de enfoques sucessivos e por vezes contrastantes, como em verdade se verifica por toda a Teogonia.

A terra, além da clareza do nome, tem uma frase, ou epíteto que lhe define o ser: “de todos sede permanente sempre”. É a segurança e firmeza inabaláveis, o fundamento firme de tudo (pánton hédos), nela e por ela têm a sua sede os deuses olímpicos. É esta atualidade numinosa ou sagrada (expressa nos deuses Olímpicos) que Hesíodo lembra ao nomear a terra como potência original, porque a aparição e presença da terra como sagrada origem de tudo implica já uma experiência atual que é a destes deuses habitantes do Monte Olimpo, os seus mais perfeitos e belos descendentes, estes “deuses doadores de bens”, como costumo designar.

O tártaro é nevoento (invisível) e fica no fundo da terra de largos caminhos. Num de seus versos Hesíodo, o situa “tão longe sob a terra quando é da terra o céu”. A simetria, ou correspondência, estabelecida por este verso é altamente significativa, já que o céu é uma espécie de duplo da terra. “Vasto abismo” (khásma mega) é o tártaro, “temível até para os deuses imortais”, é o lugar onde “se estabelece a casa temível da noite trevosa, aí oculta por escuras nuvens”.

Eros [Osório diz: Existem dois Eros! Este o aquele outro conhecido como “Cupido”] é a potência que preside a união amorosa: o seu domínio estende-se irresistível sobre os deuses e sobre os homens (“de todos os deuses e de todos os homens doma no peito o espírito e a prudente vontade”). Ele é um desejo de acasalamento avassalador para todos os seres, sem que se possa opor-lhe resistência: ele é solta-membros (lysimelés). O melhor comentário que conheço a este epíteto de Eros é uma ode de Safo [Osório diz: poeta grega da ilha de Lesbos] em que ela descreve seu estado de paixão amorosa que, num crescente, beira a lassidão, ou devassidão, abandono e palidez da morte, enquanto sua bem-amada entretém-se com um homem. Ouçam o que diz a poeta de Lesbos:

 

"Parece-me par dos deuses

ser o homem que ante a ti

senta-se e de perto te ouve a doce voz

o riso desejoso.

Sim, isso me atordoa o coração no peito:

tão logo te olho, nenhuma voz me vem

mas calada a língua se quebra,

leve sob a pele um fogo me corre,

com os olhos nada vejo, sobresumbem os ouvidos,

frio suor me envolve, tremo

toda tremor,

mais ver que relva estou,

pouco me parece faltar-me para a morte.

Mas tudo é ousável e sofrível...”

 

Eros é um dos quatro elementos que são a origem de tudo.

Tal como Eros (Éros) é a força que preside à união amorosa, Caos (Kháos) é a força que preside a separação, ao dividir-se em dois. A imagem que aparece quando falamos o nome Eros é a da união do par de elementos masculino e feminino e a resultante procriação da descendência deste par. A imagem evocada pelo nome Caos é a de um bico (de ave) que se abre, fendendo-se em dois o que era um só. Eros é a potência que preside a procriação por cissiparidade, ou, por separação.

Há na Teogonia duas formas de procriação: por união amorosa e por cissiparidade. Os primeiros seres nascem todos por cissiparidade: uma divindade originária biparte-se, permanecendo ela própria e ao mesmo tempo em que dela surge por separação, ou esquizogênese, uma outra divindade. Assim Érebo e Noite nasceram do Caos, por exemplo. Assim a Terra primeiro pariu igual a si mesma o Céu constelado, pariu as altas Montanhas e depois o Mar infértil.

Toda a descendência de Caos nasce por cissiparidade, exceto Éter e Dia, que constituem exceção também por serem dentro desta linguagem, os únicos positivos e luminosos. Tudo o que provém de Caos pertence à esfera do não-ser; todos os seus filhos, netos e bisnetos (exceto Éter e Dia) são potências tenebrosas, são forças de negação da vida e da ordem. Seus filhos são Érebo e Noite. Érebo é uma espécie de ante-câmara do Tártaro e do reino do que é morto. Noite, após parir Éter e Dia unida a Érebo em amor, procria por cissiparidade, ou separação, as forças da debilitação, da penúria, da dor, do esquecimento, do enfraquecimento, da aniquilação, da desordem, do tormento, do engano, da desaparição e da morte, em suma tudo o que tem a marca do Não-Ser, tema que será aprofundado por Parmênides. Estas potências negativas, toda a linhagem de Caos, são geradas por cissiparidade; Éter e Dia, potências positivas, são exceções desta linhagem e gerados por união amorosa.

Dia e Noite aqui são princípios ontológicos a exprimirem por imagem a esfera do Ser e a do Não-Ser. Dia e Noite, Ser e Não-Ser, guardam em si uma relação íntima e profunda entre si: o Ser vige e configura-se segundo uma estrutura configurada pelo Não-Ser, de tal forma que o pensamento que pensa o que é o Ser não pode pensar o Não-Ser. [Osório diz: é essa afirmativa que Górgias combaterá].

Falemos um pouco sobre a compreensão dos homens, já tentando separá-los dos deuses, pois sabemos que nas obras imortais de Homero, homens e deuses ainda caminhavam juntos sobre a terra, deuses participavam de guerras e de conchavos entre eles e homens.

No teatro grego, para encenação de suas tragédias, utilizavam-se os atores de máscaras, denominadas persona, por intermédio das quais eram expressas a vontade do personagem, afastando-se, com esse artifício, a vontade do ator, ou a autonomia do sujeito. Daí nasceu a instituição cultural denominada pessoa. Esta metáfora veio coroar o esforço dos dramaturgos atenienses e fez a palavra persona transpor o âmbito do teatro para com maior glória designar isto que hoje cada um de nós entende que somos, qual seja, pessoa.

A compreensão que o homem tem de sua própria essência e condição, de seu próprio corpo e das funções de seus órgãos corporais, não tem nada de inerente a uma natureza humana, mas é dada culturalmente, tal como a ideia que o homem possa fazer de seu(s) deus(es). O que na moderna perspectiva cristã se cinge exclusivamente ao Divino, os gregos arcaicos o compartilhavam em sã consciência com os seus deuses, já que estes estavam entre eles, pode-se dizer, em carne e osso. [Osório diz: nós, homens, somos nossos deuses].

O deus não é senão a sua superabundante presença e está todo ele presente em todas as suas manifestações, já que presença não é senão manifestações, negação do esquecimento, verdade (alétheia).

A presença de um deus coincide com o âmbito de seu domínio. O panteão (ou o conjunto das divindades de uma religião politeísta, de vários deuses) grego se configura nessa recíproca oposição de domínios, de âmbitos divinos, que não são senão presenças numinosas, divinas; é um jogo de forças que neste mútuo confronto se determinam a si mesmas, estruturam-se e encontram sua própria expressão atentamente vigiadas, estando cada deus zeloso (phthonerós) de conservar íntegro o seu âmbito (sua timé).

Neste contexto, não é difícil entendermos como Heráclito tenha encontrado no combate (pólemos) e na diferença (diapherómenom) a causa e o fundamento de todos os seres, e que tenha sentido como uma instância deontológica (deontologia é o estudo dos princípios, fundamentos e sistemas de moral), o “saber que combate é comum, a justiça é o conflito e todos os seres surgem através do conflito e da necessidade”.

O céu, ao cobrir a terra fecunda-a hierogamicamente (isto é, com ovos divinos) através da uma chuva-sêmen. [Osório diz: daí a importância das chuvas sobre a terra para o nascimento e permanências das coisas/seres que vivem].

Cronos, o pai de Zeus, tinha por hábito tocaiar e engolir seus filhos recém-nascidos, expediente com o qual ele toma o poder e procura preservá-lo. O seu modo de pensamento é dito curvo, tortuoso (ankylométes) porque ele só age obliquamente e sob ardil: e nisso está ao mesmo tempo a sua mais eficaz arma (o curvo pensar, a foice recurva, o ocultar-se e o engolir) e o seu irremediável limite (o ocultar-se e engolir não impõem sua presença real como uma soberania, nem atingem a matriz donde provêm a ameaça e a realeza).

Os inimigos de Zeus são vencidos, não extintos; não são mortos porque são divinos imortais tanto quanto o próprio Zeus e os deuses olímpicos. Eles apenas podem ser expulsos e terem o exercício de seus poderes restringido a esferas remotas, longínquas; e de lá poderiam regressar, se não os impedisse a irredutível vigilância do espírito de Zeus e suas armas fulminantes. O reinado de Zeus e a sublime vida dos olímpicos têm o seu fundamento na previdente e ininterrupta vigilância sobre as monstruosas forças que, para constituírem-se, esse reinado e essa vida olímpicos combateram, reclamaram e mantêm sob custódia. De Zeus é o grande espírito (mégas nóos), o que em grego significa, primeiramente, a grande percepção, o irrelaxável estado de alerta.

Zeus casa-se com Métis, a oceânida; com Têmis, a urânida; com Eurínome, a oceânida; com Deméter, a crônida sua irmã; com Memória, a urânida; com Leto, neta de Céu e Terra; e com outra irmã sua, Hera; e assim constitui o seu reino.

Para assegurar que seu poder não será superado e que o domínio que ele exerce sobre seu pai não será por sua vez superado, Zeus recorre a núpcias, que são alianças políticas. Zeus, ao iniciar seu reino, desposa uma divindade de natureza aquática, Métis, e uma de natureza terrestre, Têmis. Era, além de deus, um hábil político.

Com esses dois casamentos inaugurais, Zeus garante o seu controle sobre esses âmbitos donde provieram as potências sob as quais Cronos se viu dominado e superado: o aquático âmbito da manhosa previdente (Afrodite, Métis) e o terrestre âmbito da lei inabalável (Erínias, Têmis. As Erínias eram as guardiãs da Justiça).

São esses dois âmbitos, o Mar e a Terra, de onde pode surgir a ameaça ao poder e a retaliação à tomada mesmo do poder, que Zeus concilia e controla ao unir-se a Métis (Afrodite) e a Têmis (Erínia).

Filhas de Têmis, as Hôrai (“Estações”) são três: Eqüidade, Justiça e a viçosa Paz. Os nomes das três estações põem em evidência quanto o pensamento arcaico apreende como uma ordem única e unitária o que, posteriormente, veio a ser cindido em distinções como ordem político-social, ordem natural e ordem temporal. Uma das crenças profundas de Hesíodo era a de que as injustiças sociais acarretavam não só perturbações e danos às forças produtivas da natureza mas, também, subvertiam a própria ordem temporal.

Ao instaurar-se e manter-se, o reinado de Zeus não implica a destruição e aniquilação dos reinos de Cronos e do Céu, mas, ao contrário, delimita-os, define-lhes com maior precisão o âmbito, e, de um certo modo e até um certo ponto, engloba-os em si. Cada uma das três fases cósmicas delimita a precedente e engloba-se em parte.

Como sua filha primogênita Palas Atenas, Zeus se caracteriza pela vontade centrada no espírito (epí-phrona boulén); o que constitui a essência de suas ações é serem fundadas e centradas no espírito (epi-phrosyneisin); as forças que por Zeus são combativas se guiam por uma atenta percepção e pela vontade centrada no espírito (atenei te nóoi kaì epíphroni boulêi). Por ter recebido de Métis o saber, Zeus é também sapiência, que, semelhante ao rio Oceano, abraça a totalidade do que é, do que existe.

Ao casar-se com Mêtis, Zeus, o soberano do Olimpo, incorpora a si uma sapiência que lhe assegura o poder sobre o imprevisível, sobre todos os ardis que em todos os tempos e em todos os lugares se possam tramar, pois com Mêtis ele conhece o bem e o mal.

Zeus cercou-se de providências que garantissem o seu reinado, pois além do seu pai deposto por ele, não podia esquecer que a descendência é sempre uma explicação da natureza dos genitores. Portanto, seus filhos tinham, também, a sua natureza, eram, ou poderiam ser, iguais a ele.

Zeus tem poderes sobre a constituição (isto é, nascimento-natureza) dos deuses “anteriores” à constituição do próprio Zeus e de seus poderes.

Pelo fato de o tempo ser múltiplo e não único, adjetivo e não substantivo, a inter-relação dos deuses não é de ordem crono-lógica (ou não é uma ordem temporal lógica), mas crato-onto-lógica (do grego krátos = poder, força, solidez + ontos = ser + logía = ciência, assim, força da ciência do ser): os deuses se ligam, se organizam e se hierarquizam segundo a força de ser, não obedecendo uma ordem temporal, pois aquele que nasceu depois pode interferir sobre quem nasceu primeiro. (Por que eles são imortais).

Na Teogonia, portanto, o tempo e a temporalidade se subordinam ao exercício dos poderes divinos e à ação e presença das potências divinas. Para Hesíodo, o tempo não é de modo algum uma categoria absoluta e nem sequer uma categoria. Nem há, na sua língua, uma palavra que designe o tempo (como também não há uma que designe o espaço) de um modo abstrato. Nela, o tempo sempre se indica através de expressões adverbiais, adjetivas ou verbais; o tempo não é substantivo e deve sempre subordinar-se às exigências do ser. E o ser, na Teogonia, se revela como a força-de-ser, isto é, o poder de ele mesmo fazer-se presença, de se presentificar, de se apresentar. [Osório diz: o tempo, em Hesíodo, é muito interessante para a compreensão da Mitologia].

A fala gerada por Zeus é geratriz de Zeus e do Mundo.

A concretude das suas percepções e concepções fazem com que o mito do eterno retorno seja trabalho de um pensamento já bastante afeito à abstração; portanto, estranho, ao seu pensar.

Para concluir, pode-se dizer que o que Hesíodo fez foi cantar sob a proteção e o nome das nove musas (Glória, Alegria, Festa, Dançarina, Alegra-coro, Amorosa, Hinária, Celeste e Belavoz), a Origem dos deuses, os quais primordialmente, eram quatro: Caos (o que primeiro nasceu); depois nasceu Terra (de amplo seio e de todos sede insubstituível); em seguida nasceu o Tártaro (nevoento no fundo do chão de amplas vias); por fim, nasceu Eros (o mais belo entre desuses imortais, solta-membros).

Homero nos apresentou os deuses nas suas obras Ilíada e Odisséia, mas não nos disse de onde eles vieram, como nasceram, viveram e geraram outros deuses. Coube a Hesíodo essa gigantesca tarefa, a qual nos apresenta na sua obra tantas vezes citada, a Teogonia, para cuja leitura e/ou re-leitura todos ficam convidados”. (Teogonia – a origem dos deuses – tradução e estudo de Jaa Torrano. Massao Olmo – Roswitha Kemp / Editores, Sem local e data de publicação, p. 11 a 126.

 

Como se pode observar no pensamento mítico, presente já está a questão da linguagem, que receberá a contribuição forte, importante e, que eu diria, fundamental vinda dos Sofistas.

Mas o que teria acontecido com o pensamento do Hesíodo caso não tivesse sido ele fixado pela escrita?

Poderia ter-se perdido como milhares de outros que lhe antecederam e mesmo que lhe sucederam estão perdidos. Daí a importância inarredável da escrita.

A escrita é uma criação do mundo da cultura, ou seja, é obra do homem, tendo por ele sido idealizada e executada como uma forma de se comunicar com os demais, mas, especialmente, com a finalidade de perpetuar seu pensamento.

A escrita teria nascido há 5.000 anos no Oriente Médio, entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia.

Nessa época, a escrita começa a organizar-se de forma sistemática por exigência de uma sociedade que estava em crescimento.

No entanto, se entendermos como escrita a arte de deixar para a posteridade um vestígio permanente daquele que ocupa ou preocupa o homem, a escrita nasceu antes dos sumérios gravarem suas placas de barro, ou seja, há mais de trinta mil anos, quando nossos primitivos antepassados deixaram escritos na rocha, em cores naturais e utilizando ferramentas como as suas próprias mãos ou simples objetos pontiagudos, desenhos que, simultaneamente, correspondiam a mensagens. Quando os homens que habitavam as cavernas de Altamira, no norte da Espanha, pintavam um bisão ou um cavalo, essa representação não era puramente estética, mas possuía uma função: aludia claramente ao perigo potencial que esse animal constituía, ou ainda, às possibilidades de ser caçado.

Os primeiros caracteres escritos eram desenhos muito simplificados representando o objeto aludido. Assim, uma cabeça de boi representava o animal e a repetição de cabeças o número de reses. São os pictogramas. Todavia, logo se deu um passo para a abstração que a escrita exige, e um símbolo do sol, por exemplo, passou a representar não apenas o astro, mas também a ideia de dia; ou, se surgisse por detrás de uma montanha, a ideia de amanhecer.

Os ideogramas foram um passo importante na criação de um código escrito, especialmente quando passaram a ter um significado fonético.

A escrita dos sumérios era denominada cuneiforme, e já apresentava um certo nível de abstração. (A arte da escrita, nº 2 – Canetas de Colecionador, Editora Salvat, São Paulo-SP, 2003.).

Platão opor-se-á a escrita, embora seja um dos seus maiores usuários, tanto assim que nos deixou seus inúmeros diálogos nessa forma de transmissão de conhecimento e somente por intermédio dela eles chegaram até nós!

É sabido que Sócrates não escreveu nada sobre Filosofia: ‘pois a escrita, o faz explicar Platão no Fedro: é similar nisso à pintura, tem o mesmo defeito; também os produtos desta estão presente diante de ti como pessoas vivas; porém se os interrogas, eles calam majestosamente, e assim sucede com os discursos escritos”.2 [Osório diz: A Platão, que será um eterno contraditória, caberia perguntar-lhe: por que você escreveu?].

"Mas estas são dificuldades menores, se comparadas com as seguintes: como as nações, desprovidas de leis, podiam ter sido fundadas? E como no Egito, antes de Mercúrio, já haviam sido fundadas as dinastias? Como se fossem da essência das leis as letras, e assim não fossem leis aquelas de Esparta, onde em virtude da lei de Licurgo era proibido conhecer as letras! Como não tivessem podido coexistir essas ordens na natureza civil: - de conceber oralmente as leis bem como torná-las públicas oralmente, - e não se encontraram em Homero senão duas sortes de assembleias: uma chamada [em grego. No vernáculo: Conselho], secreta, onde se reuniam os heróis para consultar oralmente as leis; e outra chamada [em grego. No vernáculo: Reunião], pública, na qual também oralmente as tornavam públicas! Como que, finalmente, a providência não tivesse socorrido essa humana necessidade: que, pela falta das letras, todas as nações, em sua barbárie, fundassem primeiramente os costumes, e, civilizadas, fossem governadas mediantes as leis! Assim como na barbárie regressada [A Idade Média] os primeiros direitos das nações novas da Europa nasceram como os costumes, de que os mais antigos são os feudais; o que deve ser lembrado para o que diremos em seguida: que os feudos foram as primeiras fontes de todos os direitos que vieram depois das nações tanto antigas quanto modernas, e, portanto, o direito natural das gentes, não pelas leis, mas pelos costumes humanos se estabeleceram.” (Giambattista Vico, A Ciência Nova. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 69/70).

 

Aceitando-se ou não o acima (“o direito natural das gentes não pelas leis, mas pelos costumes humanos se estabeleceram”), que serve não só para o Direito, mas para todos os ramos do saber, o certo é que todo o conhecimento humano acabou por vir a ser estabelecido/criado pela lei, logo pelas leis escritas, acabou que, sendo pela escrita fixado, o que terminou por redundar em maior conhecimento das leis por parte das pessoas e, também, maior segurança por parte delas.

Sócrates/Platão combateram a escrita! Queriam o “Homem livro”!

Eis o que diz Martin Burckherdt:

 

"Por exemplo, Sócrates nunca se cansa de criticar a devoção às letras. Seu antídoto revela de maneira óbvia o quanto a escrita é notavelmente importante para ele, porém ele cura seus pupilos desse mal tentando, de forma irônica, transformá-los em livros vivos. (Pequena história das grandes ideias, tradução de Petê Rissatti, Tinta Negra: 2011, p. 19).

 

Colhamos, no Fedro, o que Platão disse:

 

"A invenção da escrita

 

SÓCRATES: - Bem, ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, houve um dos velhos deuses daquele país, um deus a que também é consagrada a ave chamada íbis. Quanto ao deus, porém, chamava-se Thoth. Foi ele que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo governava todo o Egito, Tamuz, que residia ao sul do país, na grande cidade que os egípcios chamam Tebas do Egito, e a esse deus davam o nome de Amon. Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes, dizendo que elas deviam ser ensinadas aos egípcios. Mas o outro quis saber a utilidade de cada uma, e enquanto o inventor explicava, ele censurava ou elogiava, conforme essas artes lhe pareciam boas ou más. Dizem que Tamus fez a Thoth diversas exposições sobre cada arte, condenações ou louvores cuja menção seria por demais extensa. Quando chegaram à escrita, disse Thoth: “Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria.” Responde Tamuz: “Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou prejuízo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não inventastes um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites para teus alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem instrução e se consideram homens de grande saber, embora sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em conseqüência, serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios.

FEDRO: - Com que facilidade, Sócrates, inventas histórias egípcias assim como de outras terras, quando isso te apraz!

[...]

SÓCRATES: - Imagina que alguém expõe por escrito as regras da sua arte e um outro aceita o livro como sendo a expressão de uma doutrina clara e profunda; esse homem seria tolo, pois, não entendendo a advertêcia profética de Amon, atribuiria a teorias escritas mais valor do que o de um simples lembrete do assunto tratado. Não é assim?

FEDRO: - Perfeitamente.

SÓCRATES: - O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Também as figuras pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos. Falam das coisas como se as conhecessem, mas quando alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre a mesma coisa. Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por toda parte, não só entre os conhecedores mas também entre os que o não entendem, e nunca se pode dizer para quem serve e para quem não serve. Quando é desprezado ou injustamente censurado, necessita de auxílio do pai, pois não é capaz de defender-se nem de se proteger por si.

[...]

SÓCRATES: - Refiro-me ao discurso conscienciosamente escrito com a ciência da alma, ao discurso que é capaz de defender a si mesmo e que sabe diante de quem convém falar e diante de quem é preferível ficar calado.

[...]

SÓCRATES: - Tu bem vês que aquele que conhece o justo, o bom e o verdadeiro não irá escrever na água essas cousas, nem usará um caniço para semear os seus discursos, pois eles se mostrarão incapazes de ensinar eficientemente a verdade.

FEDRO: - Provavelmente não fará isso.

SÓCRATES: - Claro que não. Naturalmente, semeará nos jardins literários apenas por passatempo. Se escrever, será na intenção de acumular para si mesmo um tesouro de recordações para a velhice, se chegar até lá; porque os velhos esquecem tudo. Escreverá também para os que caminham na mesma rua com ele, e se alegrará vendo crescer as tenras plantas. E enquanto outros se divertem em banquetes e prazeres semelhantes, esse homem se recreará com as coisas que mencionei”. (Fonte: ?)

 

Há sempre quem proponha uma interpretação benevolente para salvar tamanha tolice!

E é tolice por que, na época deles, já havia os incentivadores do usa da escrita, tanto assim que eles se viram compelidos a combatê-los propondo essa passagem vergonhosa.

Foi a dupla xifópaga Sócrates/Platão que, além de proporem o “homem livro”, questionaram a possibilidade de a virtude ser ensinada! “Qual virtude pode ser ensinada, [...] é apenas uma maneira de expressar, em linguagem fora de moda, o que queremos dizer quando afirmamos que pela educação as pessoas podem mudar a sua situação na sociedade.”. (O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyla, 1999, p. 11).

Será que algum maluco, desde há muito e na atualidade ainda duvidaria que a virtude pode – e deve – ser ensinada?

Pois saiba que vários fanáticos ainda repetem essa estupidez!

E são fanáticos por dizerem que estão repetindo apenas para mostrar como ocorreu a evolução histórica, o que é mentira, pois os repetidores não dizem o quê e quem Platão, especialmente, combatia e, o pior, o motivo pelo qual combatia!

Mas qualquer um sabe, e as crianças que leram a “História da carta levada pelo indiozinho” melhor ainda, “que pela educação as pessoas podem mudar a sua situação na sociedade”. (O movimento sofista, idem.).

 

Relembremos a historinha:

 

"Um fazendeiro enviou para outro fazendeiro quatro bananas e uma carta, na qual, além de contar algumas novidades, dizia do envio das quatro bananas. No meio do caminho o portador, um indiozinho, ficou com fome e resolveu comer uma das bananas. Chegando no destino entregou a carta e as três bananas ao destinatário. Este, ao ler a carta, perguntou ao portador pela quarta banana. O portador disse-lhe que eram apenas três as bananas. O destinatário disse que na carta estava dito que eram quatro. Surpreso, o portador pergunta: e essa coisa vê e fala?! Dias depois o patrão do indiozinho envia nova carta ao fazendeiro e também quatro outras bananas. Novamente, com fome, o portador come uma banana, mas, antes, tem o cuidado de sentar-se sobre a carta para que ela não veja o que ele ia fazer e assim contar, de novo, seu ato ao destinatário!”.

 

Essa historinha mostra a importância da escrita e como ela pode sim ajudar, e muito, no ensino da virtude, a fim de que a educação das pessoas possa mudar as suas situações nas sociedades”, como um pouco acima.

Com a escrita veio o problema, também insolúvel, até o presente momento, que permeia a relação entre os homens e a lei, bem como com todos os demais escritos, o qual se tentou solucionar por intermédio da interpretação.

É que, acredita-se, que a escrita seja uma forma de fixação do pensamento, levando, assim, informações sobre ele. E, de fato, em princípio, o é.

Por exemplo: ninguém pode negar que em uma carta em que o informante afirma que envia juntamente com ela quatro frutas, vá quatro frutas!

Porém, como surgiu essa ligação entre pensamento e coisa você já leu acima na exposição do escrito de Jaa Torrano.

Mas este é um conhecimento (pensamento-coisa) superficial, pois, entrando em cena o intérprete, em especial os advogados, sempre prenhes de má fé, podem dizer que o subscritor da carta se esqueceu de entregar as furtas após a entrega da carta ao portador, por exemplo! Ou que, em vez de quatro, contou errado e entregou apenas três e, assim, a interpretação vai ao infinito!

Fundou-se, então, uma ciência para estudar a interpretação, chama-se Hermenêutica, cujo nome origina-se do nome do deus grego Hermes, que era o mensageiro dos deuses: ouvia a mensagem do remetente (um dos deuses) e a transmitia ao destinatário (um dos outros deuses ou um humano)! Era o elo que ligava as duas partes em comunicação. Esta é a função do intérprete, mas como ele pode bem desincumbir-se dela? Infelizmente não temos nenhuma garantia de que ele chegará a tal desiderato, a tal objetivo!

A literalidade (a escrita) é a porta de entrada para interpretação da comunicação escrita. Grave bem: disse-se apenas a porta! E porta não se confunde com toda a casa!

Por falta de coisa melhor, trabalha-se com a hermenêutica, que, sinceramente, é como se trabalhar com ilusão: a ilusão hermenêutica! Mas que não pode ser abandonada enquanto não se encontrar coisa melhor, por que tudo é uma questão de e da linguagem!

 

"A linguagem não é apenas mais um lugar do filosofar, como frequentemente falamos em Filosofia Política, Ética ou Estética, é antes o próprio horizonte do filosofar.

Não há conhecimento que não se comunique, linguisticamente.

O autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.” (Foucault citado por Danilo Marcondes, Textos básicos de linguagem – de Platão a Foucault, Zahar, Rio de Janeiro: 2010, p. 130).

 

Esta afirmação pode até ser bonita, mas não diz nada que contribua para a resolução do problema!

Para que serve a fala? Para nos comunicarmos;

Para que serve nos comunicarmos? Para nos fazermos entender;

Para que serve nos fazermos entender? Para nos comunicarmos.

Se o comunicador (emissor, aquele que emite a mensagem) se fez entender com o seu interlocutor (receptor, aquele que recebe a mensagem) a comunicação atendeu ao seu objetivo.

Interessa a forma pela qual o comunicador se fez entender pelo receptor da mensagem?

Não, acredito que não interessa, o que interessa é que o receptor tenha sido capaz de compreender o teor da mensagem que lhe foi dirigida.

Mas isso se complica quando a comunicação deixa de ser individual, entre dois indivíduos, como o olhar do pai que já diz ao filho que deve retirar-se da conversa entre adultos, mas que não serve para o filho de outro pai!

Algumas formas, obviamente, abreviam o trabalho de decodificação (entendimento) do receptor, especialmente pela sua clareza.

Mas qual seria essa clareza?

Ela depende tanto do emissor quanto do receptor!

Não posso exigir de meu interlocutor com surdez, que compreenda a minha mensagem vocal.

Meu interlocutor mudo não pode exigir que eu entenda a sua linguagem gestual (embora seja aconselhável que eu a saiba, mas aí é outra questão).

Existem várias formas de linguagem, todas elas capazes de atingir o fim de toda comunicação: que é o de que todos os interlocutores entendam-se.

A escrita é apenas uma das formas de linguagem, e está a serviço desta, e não o contrário, ou seja, a linguagem não está a serviço da escrita.

Devemos ver que os próprios signos da escrita variam incomensuravelmente, enormemente, nem por isso devemos dizer que os hieróglifos e ideogramas não comunicam.

Podemos até dizer, acredito, que o talento está mais no receptor que compreende e decodifica a mensagem, do que na própria mensagem e em seu emissor.

Se, por acaso, o acima dito for verdadeiro, por que a preocupação com a escrita dita escorreita, límpida, sem erros?

Por que, numa linguagem escrita, como a da língua portuguesa, por exemplo, onde várias regras comportam inúmeras exceções e inúmeras exceções contam com incontáveis regras, as pessoas se melindram tanto em “corrigir” “o que não tem conserto nem nunca terá”?

Tenho que o domínio da escrita escorreita (de todo elogiável e que deve ser buscado), não deve ser um fim em si mesmo, especialmente para aquele que a domina não diga que não entendeu a mensagem porque, em vez do escritor grafar “invadiu a minha casa”, grafou “invadiu a minha caza”. Isso é preciosismo que em nada contribui para a compreensão mútua, fim da linguagem. Quando muito, serve isso para se fugir, esquivar-se às responsabilidades (em especial quando se é autoridade pública), como, no caso do exemplo citado, sair-se com essa: “devolva-se ao autor para corrigir e voltar em termos”!

Isso sem falar na manutenção da cultura bacharelesca, que dá voltas e voltas e não sai do lugar.

Sobre essa cultura, tem obra recente: “Amar-te a ti nem sei se com carícias”, de Wilson Bueno, Editora Planeta.

No processo comunicacional o que vale é o fim, não a forma, que é meio. Qualquer que seja a forma utilizada, desde que o emissor consiga se fazer entender pelo receptor, a comunicação é válida.

A linguagem gestual, mímica, pode ser eficaz para o fim ao qual ela se direciona. Tanto assim que se paga para assistir um espetáculo mímico!

Ninguém reclama do tipo de sonoridade emitida pelo apito do guarda de trânsito. O importante não é a musicalidade, mas que o guarda se faça ouvir.

No Direito, trabalha-se com um aforismo resumido pelo Direito francês, denominado de "pas de nulité sans grief", que significa que “os atos processuais devem ser aproveitados quando atingirem sua finalidade, mesmo que tenham sido praticados sem a observância das formalidades que eram previstas para a sua prática”. É, no caso, uma repulsa ao formalismo inútil.

Em e na comunicação podemos asseverar que os fins justificam os meios.

Adoniran Barbosa, com sua “táuba de tiro ao Árvaro”, comunica muito mais e de forma mais prazerosa que o acadêmico José Sarney com seus “Marimbondos de fogo”!

A barreira imposta por aqueles que dizem dominar a linguagem funciona, na verdade, como uma forma de manutenção de um poder que o dominador pensa que tem. Explique-se:

Dizem que dominam, porque poucos dominam, ou melhor, ninguém domina, para sermos francos, já que, como dissemos, as divergências entre aqueles que dizem dominar são profundas, como explica Marcos Bagno em sua obra “Preconceito linguístico”.

Forma de manutenção de um poder porque afasta o interlocutor da possível concorrência pela ocupação de um espaço, especialmente com a desqualificação do emissor por não saber dizer o que quer, muito embora o receptor tenha compreendido a mensagem emitida pelo outro. Exemplo claro disso temos na frase, demonstradora de falsa espirituosidade, que diz: “a crase não foi feita para humilhar ninguém”, cuja paternidade é atribuída, dentre outros, ao poeta Ferreira Gullar.

A “inocente” frase é capaz de encerrar qualquer diálogo, especialmente se pronunciada com forte entonação repreensiva e em público, muito embora o receptor esnobe tenha, com ou sem a crase, entendido, perfeitamente, a mensagem que lhe foi dirigida.

Aliás, segundo Mário Sérgio Cortella, “o conhecimento serve para encantar, não para humilhar as pessoas”, como muitos fazem constantemente.

Temos que a busca da linguagem perfeita, meta louvável, não deve ocorrer ao ponto de o interlocutor não responder ao questionamento que lhe é transmitido pelo simples fato de a palavra dita ferir-lhe os ouvidos ou de a palavra escrita ferir-lhe os olhos, embora carreguem consigo a mensagem imediatamente decifrável.

Gabriel Garcia Marquez confessa que, se dependesse de conhecer a gramática espanhola, não seria escritor!

Carlos Heitor Cony (mestre da escrita, e nem tanto da indenização), não sabe dizer, junto com Lygia Fagundes Teles, se após o parêntese, cabe a vírgula!

Gramáticos e filólogos discutem há anos sobre determinadas construções sem que haja convencimento de uma das partes.

Os americanos, que devem ser admirados em poucas coisas, sempre nacionalizam grafias e pronúncias que lhes interessam, numa clara demonstração de que o importante é se fazer entender. Não é sem razão que dois grandes lingüistas são daquelas bandas (Chomsky e Charles Pierce).

Por tudo isso, apelo a todos aqueles que dominam a língua para que, ao invés de simplesmente corrigirem uma grafia ou uma fala, que também se predisponham a discutir o teor da mensagem, já que ela foi compreendida.

Mas, afinal, por que não nos entendemos no amor e na vida, por exemplo?

Descartes cunhou a frase “penso, logo existo[Osório diz: em latim: cogito ergo sum], passando ela à condição de máxima do racionalismo, pois ela leva ao entendimento que o homem é capaz de pensar!

Veio, então, Nietzsche e sobre a máxima cartesiana (Descartes em latim era Cartesius) ponderou:

"Ora, mas para dizer esse 'basta', o que Nietzsche faz para nos convencer? Simples, ele lança mão de duas estratégias. Primeiro: ele ataca a própria figura do sujeito [Osório diz: do homem], mostrando-o como alguma coisa que não tem os poderes que a filosofia lhe conferiu. Segundo: ele ataca a noção de verdade dos lógicos, mostrando-a como nada além de mais um artifício retórico. No caso do sujeito, o que ele faz é defender a ideia de que a vontade autônoma, baseada na liberdade, que seria própria de todo e qualquer sujeito, enquanto sujeito filosófico, não existe.

No caso da verdade, o que ele faz é tentar expor como que o conceito de metáfora está presente em qualquer uso de nossa linguagem e, então, também no que batizamos como verdade.

No primeiro caso, o combate de Nietzsche é simples. Ele repete o 'Eu penso' de Descartes para lembrar que ninguém pode, honestamente, dizer essa frase com o grau afirmativo que em princípio se diz. Ninguém pode dizer 'Eu penso' isso e aquilo e não aquela outra coisa. Não! Nietzsche lembra que o pensamento ganha do 'eu' pois ele, pensamento, é que vem quando ele deseja, sem seguir o sujeito, o eu, e mesmo sem pedir licença para este. Assim, se notarmos bem a experiência do 'Eu penso', veremos que o cogito que ele apresenta e que se faz modelo da subjetividade moderna, se apresenta já com superpoderes de decisão que não possui. Fala como se estivesse exercendo autonomia em um mundo livre e que lhe dá liberdade, mas isso é uma ilusão. Nenhum de nós decide pensar e o que pensar e consegue assim fazer. No meio do que achamos que decidimos pensar, outros pensamentos que não chamamos, não invocamos, não criamos, surgem e ocupam espaço. Certamente, durante as seis meditações, Descartes pensou muito mais coisa do que aquilo que diz que pensou, no exército do seu 'Eu penso', naquela semana que ficou nu diante da lareira. As Meditações relataram apenas o que foi possível dizer. Como se o Eu fosse determinador e determinante do que foi dito durante aqueles dias.

Assim lembrando, Nietzsche quebrou as pernas do 'eu'. Mostrou que a ideia de um sujeito livre, como uma instância que controla o pensamento e a ação, não se verifica.

Então, a própria noção de sujeito filosófico que por definição, em geral, pode ser vista como 'o eu consciente de seus pensamentos e responsável pelos seus atos', não diz algo que possamos ver efetivamente funcionando. Não se trata de driblar a diferença entre sujeito e indivíduo psicológico. Não! Trata-se, sim, de mostrar que o sujeito filosófico é definido de um modo que o faz artificial demais. 'Eu penso' implica um ego livre, autônomo. Ora, mas quando fazemos o exercício de pensar, nós mesmos, a partir da experiência de Descartes (que é um eu empírico que tenta aos poucos funcionar como um sujeito filosófico, um avô do sujeito transcendental), percebemos que não exercemos a autonomia com a qual Descartes diz operar já de início. Ficamos desconfiados, então, que embutir a liberdade da vontade no sujeito é uma operação artificial demais.” (Revista de Filosofia. Volume III. Editora Escala, São Paulo: sem data, pp. 78 e 79).

[Osório diz: um exercício de memória, de lembrança, em que a posição de Nietzsche apareceu muito clara é o seguinte: quantas vezes você, mesmo não querendo pensar nisso, já pensou em você matando seu pai ou mãe, ou em seus filhos ou irmão sendo mortos em acidentes? E tem várias outras coisas que você não quer lembrar, como a ex-namorada, mas ela não “sai de sua cabeça”].

Com Descartes temos a ilusão que pensamos, mas vem Nietzsche e nos mostra que é o pensamento que nos pensa!

Portanto, o “penso logo existo” de Descartes foi desmentido por Nietzsche, pois não somos nós que pensamos, mas o é pensamento que pensa por si mesmo em nós. Não conseguimos pensar o que queremos, é o pensamento que nos vem à mente sem que, muitas vezes, queiramos que ele venha. Assim acontece quando pensamos coisas que não queríamos pensar. Por exemplo, matar a nossa própria mãe!, como já o disse.

O sofista Protágoras colocou-nos o problema da instabilidade do pensar, diante das mudanças constantes das coisas (da natureza).

Não conseguimos estabilizar pensamentos por longo tempo pois as coisas se sucedem na vida constantemente. O que hoje é remédio, amanhã será veneno. O amor de hoje é o ódio de amanhã.

Como, então, estabelecer certezas?

Freud, salvo engano, mostra que a sexualidade é instinto e não pensamento (concordando, assim, com Nietzsche). Tanto que muitos se “castigam” (flagelam) para “espantar/destruir” pensamentos que julgam nefastos. Outros não dão vazão as esses pensamentos por causa da repressão social, a qual temem por medo da repreensão moral que recai sobre os que agem livremente.

Os estudos demonstram que temos determinadas “taras” [Osório diz: desequilíbrio mental] que muitas vezes têm origem em desilusões e repressões. Lembro do caso que me foi relatado de um noivo que, ao ser abandono pela noiva, passou a buscar prazer sexual com garrafas!

O pensamento é tão independente que não escolhemos de quem gostar amorosamente. Às vezes chegamos à raia de gostar de nosso inimigo ou algoz (a afirmação nos é dada pela chamada “Síndrome de Estocolmo”, que ocorre quando a pessoa sequestrada se apaixona pelo seu sequestrador). Acontece e pronto. A única coisa a dizer, parece, é: “Fudeu-se!” ou “Tocar um tango argentino”.

O gostar não é, ou raramente é, recíproco. Quanto mais se quer agradar, por exemplo, mais se contribui para que a pessoa a quem se tenta agradar se afaste daquele que a tenta agradar (ocorrendo assim um agradar que desagrada!). E um dos grandes problemas está no “grau ou limite” do amor dado a outrem. Erra-se por se dar pouco (quando corre-se o risco de parecer desinteressado). Erra-se por se dar muito (quando corre-se o risco de “sufocar” o outro). E o equilíbrio é extremamente difícil de ser encontrado. O que nos leva à famosa indagação: “qual a medida do amor afinal?”.

Santo Agostinho disse que “a medida do amor, é o amor sem medida”. Mas ele, certamente, não falava do amor carnal, sexual, daquele que existe ou pode existir entre um homem e uma mulher. Sua religiosidade talvez não permitisse isso, falava do amor fraternal a existir na humanidade, embora, ele tenha sido um mundano, tanto assim que pediu: “Deus, dei-me a castidade, mas não agora”!

O que se pode observar é que cada ser humano é um universo. Uma individualidade que não se repete. Cada um tem a sua digital única. E como a digital tudo o mais. Nos bilhões de pessoas que habitam a terra, jamais encontraremos duas iguais. Seja em aparência, seja no querer, seja nos gostos etc.

Dir-se-á, romanticamente, que, sendo assim, ninguém doma seu próprio coração para gostar deste e não daquele. É o “coração” quem decide por si mesmo. E, às vezes, chegamos até a perceber a besteira que ele fez mas não temos força para vencê-lo.

(Será que é por ele ser tão rebelde, que temos tantas doenças do coração?).

E se ninguém o doma, é impossível saber o que é o belo, o querido ou o gostoso para mais de uma pessoa. Cada indivíduo decide sozinho quanto a isso. Não adianta conselhos e ponderações. O belo para mim não é o mesmo para ti.

Conselhos, aliás, às vezes funcionam em sentido contrário, levando ou despertando no aconselhado pensamentos que até então ele não tinha e o aconselhador não tinha como, anteriormente, saber disso!

Quando a namorada briga com o namorado por ele está olhando para uma outra mulher, e ele não estava, desperta nele a curiosidade de olhar, até para saber as razões de sua namorada! A partir daí muita coisa pode acontecer, inclusive a namorada ser trocada pela outra que até então não era observada!

As pessoas costumavam, quando da separação e do novo casamento do príncipe Charles, querer fazer o julgamento que somente ele podia fazer!

É imperdoável e incompreensivo ele trocar a bela e jovem Diana pela feia e idosa Camila Parker Bowles!

Não há critério para tal julgamento! Definitivamente.

Somente o transcorrer da vida, que chamamos de tempo é capaz de borrar, porém jamais apagará as marcas de uma paixão, de um amor (embora eu não faça distinção entre ambos, já que estão umbilicalmente ligados).

Como nós nos perdemos na linguagem, achando que ela é capaz de trazer soluções para nossas incertezas, costumamos dizer que uma das saídas é conversar. O que parece ser um engano, pois as palavras nem sempre são postas da maneira que o emissor queria e, muito menos, compreendidas da forma que queria o emissor que o receptor as entendesse. Está formada a confusão. Confusão que é pré-diálogo, pois quem não quer iniciar um relacionamento (entendimento) nem muito menos continuá-lo já tem sua decisão tomada e ela é, quase sempre – e a longo prazo é sempre –, irrevogável.

Muitas vezes, entre o casal, o odor, o cheiro, o hálito, por exemplo, supera o poder das palavras. Se for bom, fica-se com o feio. Se for ruim, abandona-se o bonito.

São tantas as variáveis que é impossível ordená-las, menos ainda controlá-las, pois são voláteis como o pensamento e suas bases.

Além do odor temos ainda o tato. Determinadas carícias são enlouquecedoras. Mas será que elas têm prazo de validade? E esse prazo é maior ou menor dependendo de outras tantas variáveis, como conversa, cheiro e uma certa folga financeira capaz de proporcionar, no mínimo, uma vida sem privações do básico?

Mas o que é o básico?

Prisioneiro deste querer sem querer. Dessas dúvidas irrespondíveis. Desses medos com ou sem motivo. Do amor não correspondido. Do não saber a medida do agir. O que deve o homem fazer?

Héracles (ou Hércules), o maior de todos os heróis gregos, que era filho de Zeus e depois tornou-se um semi-deus,num acesso de loucura, matou todos os filhos de seu primeiro casamento”!

Medéia (depois transformada em Medusa), num acesso de ciúmes, matou os dois filhos que teve com o herói Jasão, para, deste modo, vingar-se da traição do marido!

São casos mitológicos, mas a mitologia foi criada pelo homem a partir do nada?

Responda-me baixinho.

Recentemente, no Rio Grande do Sul, um homem matou a esposa e o filho do casal!

A saída mais cômoda para todos nós é condená-lo!

E você acha que não deveria ser assim? Você pode me perguntar. Ao que eu lhe responderei:

- É claro que ele, o matador, tem que ser condenado. Existe uma lei, a qual ele aderiu, que impõe isso. Ninguém, jamais, “em sã consciência” irá aplaudir tamanha barbaridade.

Mas, apenas para efeito de prolongar nossa conversa, eu perguntaria:

Qual a diferença entre o gaúcho e o herói grego?

Qual a diferença entre o gaúcho e a infeliz Medéia?

Se um semideus praticou o mesmo ato, o que se esperar de um ser humano normal (fraco e inseguro) diante dessa gama infinita de conjecturas, paixões, temores, pulsões, descontroles, ciúmes etc.?

É claro que jamais perdoaremos o infeliz gaúcho. E ele, e nem nós no lugar dele, mereceríamos qualquer perdão.

Mas, vivendo o que ele estava vivendo (ou achava que estava vivendo), será que nas mesmas condições agiríamos diferente?

Será que já superamos a constituição animalesca que nos une aos demais animais ditos irracionais? Onde guardamos nossos desejos primitivos? Nós os controlamos ou eles podem aflorar a qualquer momento, como afloram alguns desejos que conseguimos, a duras penas ou por medo de castigos, reprimir?

Ainda temos muitas máscaras e, inúmeras vezes, não sabemos qual usá-la, ou usamos aquela que, justamente, não caberia ser usada naquela ocasião, para interpretar aquele papel.

Não sejamos hipócritas!

Condenemos aquele homem, mas com a certeza de que, se estivéssemos no lugar dele, talvez os condenados fôssemos nós.

Por fim, um empurrão para o abismo nos é dado por Alejandro Jodorowsky quando crava:

 

Entre o que eu penso, o que quero dizer, o que digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo.

 

Começaremos agora!

 

1Sócrates é convidado por Hermógenes a tomar parte na disputa que está entabulando com Crátilo sobre a justeza dos nomes, ou seja, a relação entre palavras e coisas. Sócrates confessa sua ignorância no referido assunto, mas aceita participar do diálogo. Seus dois interlocutores já possuem posições bemdefinidas. Hermógenes afirma que a correção dos nomes é uma questão simplesmente de convenção e uso da linguagem. Tal posição passou para a história da semântica com o nome de convencionalismo. Crátilo defende a tese segundo a qual, entre palavras e coisas há uma coincidência natural, é o chamado naturalismo linguístico. Duas posições que, além de divergentes, são extremas. E que portanto, como diz Gadamer (1996, p.488), ‘[...] objetivamente não necessitam excluir-se’. O que parece tentar mostrar Platão através de Sócrates que, no decorrer do diálogo, por vezes mordazmente irônico e zombeteiro, aponta para a insuficiência de ambas as teorias, sem contudo explicitar uma solução que, se aparece, só o faz de maneira implícita, cabendo a nós, se possível, explicitá-la através de uma análise do texto platônico.” Diz Fausto dos Santos em Filosofia Aristotélica da linguagem. Argos. Chapecó, 2002: p. 22).

2 Tradução livre de: “Sabido es que Sócrates no escribió nada sobre filosofia: ‘pues la escrita le hace explicar Platón em el Fedro: similar en esto a la pintura, tine el mismo defecto; tambien los productos de ésta están presentes ante ti como personas vivas; pero si los interrogas callan majestosamente, y así sucede com los discursos escritos’”. (Rodolfo Mandolfo, Problemas y metodos de investigacion en la historia de la filosofia, Eudeba Editorial Universitária, Buenos Aires: 1960, p.119).

 

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